Check-up do cérebro: exame baseado em realidade virtual e IA avalia a memória; nós testamos


Teste propõe certas tarefas e analisa como respondemos a elas; objetivo é auxiliar na detecção precoce de alterações que podem indicar maior risco de demência

Por Leon Ferrari
Atualização:

Fuja de um incêndio, diz o tablet. Para isso, é preciso acionar um alarme, ligar para os bombeiros e pegar os documentos – tudo no mundo virtual. Parece uma brincadeira, mas o tempo necessário para executar cada tarefa e como é a resposta diante de distrações, entre outras coisas, podem dizer muito sobre a saúde do cérebro e da função cognitiva (a capacidade de processar o pensamento). Essa é a premissa na qual se baseia o exame Altoida, criado por uma empresa suíça de mesmo nome, que usa realidade aumentada e inteligência artificial para detectar precocemente alterações que podem indicar demência.

O aplicativo, que roda tanto em smartphones quanto em tablets, ainda propõe ao paciente atividades cotidianas e analisa a maneira e quanto tempo ele leva para executá-las. Ao final, dá notas (de 0 a 100) para vários domínios cognitivos, como atenção, memória e coordenação motora, que podem servir de apoio para o profissional de saúde fazer o diagnóstico de alguma doença. “Tudo aquilo que o cérebro pensa é traduzido em pequenos movimentos. Esses movimentos são medidos com muita precisão pelos sensores do aparelho”, explicou o neurocientista Ioannis Tarnanas, criador do exame e co-fundador da Altoida, ao Estadão.

Ao todo, o teste demora cerca de 12 minutos, período no qual coleta e avalia mais de 850 parâmetros simultaneamente – tudo isso aparece em relatório emitido imediatamente após o exercício. Por ora, observa Tarnanas, trata-se de um “dispositivo de investigação”, ou seja, não pode ser usado sozinho para cravar um diagnóstico. Os estudos que sustentam o software foram publicados em revistas científicas de peso, como a npj Digital Medicine, do grupo Nature. Outras pesquisas estão em andamento.

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Na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o produto está regularizado desde setembro de 2019. A indicação de uso é para “auxiliar na captura de dados e exibição dos resultados como auxílio aos profissionais de saúde na avaliação da função perceptual e de memória”. Ele pode “detectar micro-erros e micromovimentos precoces e sutis durante as funções cotidianas, anos antes do início dos sintomas neurodegenerativos típicos”, de acordo com o órgão.

A terapeuta ocupacional Viviane Abreu aplica o teste Altoida no repórter Leon Ferrari Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Com a pandemia da covid-19, porém, o aplicativo só começou a ser comercializado no ano passado pela Biocare Sparkia, empresa voltada ao setor de healthcare. O exame já é aplicado em 14 Estados e mais de 40 cidades. Ronald Lorentziadis, CEO da empresa, informou ao Estadão que cerca de 400 profissionais de saúde utilizam o teste no País, e 4 mil pessoas já foram examinadas com ele. Lorentziadis conta que, para além do declínio cognitivo associado à demência, alguns médicos recorrem ao software para detectar prejuízos na capacidade de processar o pensamento decorrentes da menopausa e da própria covid.

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Profissionais que usam o Altoida ainda defendem que ele serve para fazer uma espécie de check-up do cérebro. A ideia, nesse caso, é aplicar o exame com certa regularidade e criar um histórico da função cognitiva do paciente ao longo da vida – assim como acompanhamos parâmetros como colesterol e glicemia. Em termos de evidências científicas, não há um consenso sobre os benefícios disso nem de qual exame deveria ser usado para esse fim.

Qual a ciência por trás do Altoida?

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De acordo com Tarnanas, toda descoberta tecnológica é precedida por uma científica. No caso do Altoida, ela veio de um estudo europeu chamado PharmaCog, que, segundo ele, mostrou que alterações na função da rede cerebral (maneira como a eletricidade do cérebro é gerada e comunicada entre diferentes áreas do órgão) precedem qualquer sintoma de demência. A segunda é dele mesmo: pessoas agem de forma diferente em ambientes de realidade aumentada. “Conectei essas duas descobertas”, explica.

Em certa medida, a grande inspiração que permitiu mesclar os dois achados científicos foi observar sua própria avó. “Ela estava tendo alguns problemas com o cérebro, algumas queixas, mas nenhum médico conseguia entender o que havia de errado com ela.” Segundo ele, as dificuldades ficavam mais evidentes quando ela cozinhava. “Ela repetia receitas que costumava fazer, mas agora estava colocando sal demais ou aumentava muito o fogo. Essas pequenas coisas sinalizavam que alguma estava errada”, fala. “Anos depois, ela foi diagnosticada com Alzheimer.”

Assim, ele percebeu que uma ferramenta que recriasse atividades da vida diária e pudesse medir essas pequenas falhas poderia ser usada para prever demência.

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Hora de experimentar o teste

Este repórter testou o Altoida. Primeiro, em um tablet, completei informações pessoais: idade, escolaridade e etnia. O aplicativo, então, me direcionou para a primeira fase do teste: aprender a usar o programa. A interface é bastante amigável.

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A primeira atividade já é motora, e precisei desenhar um círculo. Depois, calibrei o rastreamento ocular, para o tablet conseguir captar os movimentos de meus olhos enquanto executo as próximas atividades. Por fim, testei a atividade de realidade aumentada, o grande trunfo do teste.

Nela, temos que esconder um objeto, no caso uma estrela, em um dos três locais selecionadas por quem está aplicando o exame – no meu caso, era Viviane Abreu, terapeuta ocupacional, mestre em Gerontologia e ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer. Ela colocou três papéis brancos em diferentes locais do consultório. Pode até parecer moleza, mas não é. Isso porque, como na vida real, enfrento um segundo estímulo: um som agudo. Cada vez que ele é emitido pelo tablet, preciso clicar em um botão.

Essa etapa leva poucos minutos e já estou pronto para as próximas. Nelas, faço as mesmas atividades, duas vezes. Além de me comparar com os demais pacientes da base de dados, o teste me compara comigo mesmo para um resultado mais confiável.

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Exame é divido em três etapas Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Começamos com a atividade motora, mas agora há mais figuras para desenhar. Depois, acompanho um alvo com o dedo. Então, voltamos para atividade de realidade aumentada, só que, dessa vez, são três objetos a serem escondidos e encontrados, e, ao final, preciso responder a perguntas sobre a tarefa – o que escondi primeiro, por exemplo.

Depois de descansar por um minuto, vem a terceira e última fase, em que repito o que já fiz, mas com alguns ajustes. O que muda mesmo é a tarefa de esconder e encontrar objetos. Agora, tenho que fugir de um incêndio e, para isso, preciso lembrar onde coloquei o alarme de fogo, o telefone para ligar aos bombeiros e meus documentos.

Ao final da atividade, recebo imediatamente um boletim, com notas de 0 a 100, para 12 domínios cognitivos, que incluem memória, atenção, planejamento e flexibilidade. Meu resultado: “Parece tudo bem”.

Porém, o teste é bastante sensível e conseguiu captar, por exemplo, que eu estava distraído durante a atividade – afinal, uma equipe de mais três pessoas me acompanhava para filmar e fotografar o processo. Quatro domínios ficaram um pouco abaixo da média, no estrato “média baixa” – velocidade de processamento cognitivo, atenção complexa, percepção visual e inibição –, exatamente aqueles afetados pela distração causada por meus colegas. O interessante, todos caíram na mesma proporção. Prova da sensibilidade do teste, segundo Viviane.

Como o teste foi feito nessas condições, o resultado não é válido. O ideal é só paciente e profissional da saúde.

Repórter Leon Ferrari ao final do exame Altoida Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Como funciona o diagnóstico para demência?

A demência é uma síndrome causada por uma série de doenças – o Alzheimer é a principal delas – que, ao longo do tempo, destroem as células nervosas e danificam o cérebro, geralmente levando ao declínio da função cognitiva, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Algumas causas são reversíveis (quando ela é causada por alterações metabólicas, um trauma ou processo infeccioso), mas, em uma grande parcela dos casos, isso ainda não é possível, embora a ciência e a medicina tenham avançado no sentido de desacelerar e amenizar sintomas.

Médicos ouvidos pelo Estadão explicaram que o diagnóstico da demência é complexo, majoritariamente clínico e, em geral, motivado por uma queixa – do paciente ou de quem convive com ele. A partir dela, é feita uma sequência de avaliações para determinar do que se trata e eliminar possíveis causas reversíveis. O indivíduo passa por uma entrevista (os especialistas chamam de anamnese), testes neuropsicológicos e exames de sangue e imagem. “Com isso, minha acurácia diagnóstica é de 80%”, afirma o neurologista Ivan Okamoto, do Núcleo de Excelência em Memória (Nemo) do Hospital Israelita Albert Einstein. Caso haja dúvida, outros exames mais recentes que investigam o acúmulo de proteínas associadas à demência podem ser solicitados, como uma biópsia do líquor e o PET amiloide.

Okamoto explica que o exame da Altoida, que ele aplica desde pouco antes da pandemia da covid, integra um rol de possibilidades para a avaliação neuropsicológica, que avalia memória, orientação, funções executivas de organização e planejamento, por exemplo. Mais tradicionais e amplamente aplicados, estão os chamando testes de “lápis e papel”, como o Montreal Cognitive Assessment (Moca) e o teste do relógio (General Practitioner Assessment of Cognition). Algumas dessas avaliações são mais curtas, e outras podem levar horas.

Qual a diferença do Altoida para outros testes?

Dentro do grupo de exames neuropsicólogicos, os mais usados são aqueles chamados de testes de lápis e papel, que, como o próprio termo sugere, exigem que o paciente escreva e desenhe. No teste do relógio, é preciso traçar os ponteiros e as doze divisões e indicar um horário pré-determinado com os ponteiros. Também são feitas perguntas sobre as condições da memória, por exemplo.

“O indivíduo pode dizer ‘sou bom em encontrar xícaras’, dizemos ‘ok, mostre-nos’”, explica Tarnanas, criador do Altoida. “Vamos da teoria à prática.” Ao mesmo tempo, ele consegue medir com mais rigor quanto tempo o paciente usou para executar a tarefa.”

Essa simulação da realidade traz vantagens, segundo Okamoto. “Na minha opinião, cada vez mais nós vamos usar isso como um instrumento, porque ele dá mais precisão. A gente vê a velocidade de processamento, além do certo e errado na pontuação dos testes. Ele consegue medir como você escaneia o seu campo visual. Estou melhorando minha capacidade diagnóstica com um teste simples e rápido.”

Em uma das atividades do exame, é preciso perseguir um alvo com o dedo Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Isso significa que está na hora de descartar os testes clássicos, como o de lápis e papel? Okamoto diz que não. Na avaliação dele, o Altoida é mais um instrumento para melhorar a acurácia diagnóstica de uma síndrome complexa.

Por se tratar de uma tecnologia nova, Claudia Kimie Suemoto, professora associada da disciplina de geriatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que não aplica o teste, adverte que não se pode ter pressa. “Talvez esses bancos de dados que vão ajudar no diagnóstico final ainda não sejam muito robustos”, diz ela, que faz parte do Advisory Council da Alzheimer’s Association International Society to Advance Alzheimer’s Research and Treatment (ISTAART). “A gente sempre precisa de muitos dados pra chegar à conclusão do que é um desempenho normal.”

Em maio deste ano, a OMS divulgou um alerta sobre o uso precipitado de inteligência artificial na saúde. “Os dados usados para treinar a IA podem ser tendenciosos, gerando informações enganosas ou imprecisas que podem representar riscos à saúde, equidade e inclusão”, diz o comunicado.

Garantir a diversidade e expandir a base da dados é uma das prioridades do fornecedor, e o Brasil será fundamental para isso. “Estamos muito interessados na diversidade de nossa coleta de dados, e isso inclui o Brasil em uma posição muito alta”, assegura Tarnanas.

Um check-up para o cérebro?

Rotineiramente fazemos – ou devíamos fazer – alguns exames, o famoso check-up. Em geral, eles incluem um hemograma (exame de sangue), com dosagem para verificar os níveis de colesterol, triglicerídeos e glicemia, por exemplo. A frequência vai depender do histórico de saúde do pacientes, por isso a importância da orientação médica.

Para o cérebro, não existe um procedimento que funcionaria como um check-up para aferir a capacidade de raciocínio ou memória. Okamoto e Claudia destacam que ainda não há um consenso se devemos de fato fazer isso. Claudia diz que, para pacientes idosos, há uma recomendação da Sociedade Americana de Geriatria para que seja feito esse rastreio com algum método psicométrico.

Alguns profissionais que aplicam o Altoida no Brasil, porém, consideram que esse exame pode ser útil para esse acompanhamento. Eles falam em aplicações periódicas do teste em intervalos de seis meses a um ano.

Viviane Abreu, terapeuta ocupacional, mestre em Gerontologia e ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer, que aplica o exame Altoida em São Paulo Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

“Sempre defendi que devemos fazer um check-up cerebral. Fazemos do coração, dos olhos, mas não fazemos um do cérebro, que é a nossa parte nobre”, alega Viviane Abreu. Segundo ela, prevenir doenças, inclusive a demência, passa por entender o que acontece dentro da gente.

Fuja de um incêndio, diz o tablet. Para isso, é preciso acionar um alarme, ligar para os bombeiros e pegar os documentos – tudo no mundo virtual. Parece uma brincadeira, mas o tempo necessário para executar cada tarefa e como é a resposta diante de distrações, entre outras coisas, podem dizer muito sobre a saúde do cérebro e da função cognitiva (a capacidade de processar o pensamento). Essa é a premissa na qual se baseia o exame Altoida, criado por uma empresa suíça de mesmo nome, que usa realidade aumentada e inteligência artificial para detectar precocemente alterações que podem indicar demência.

O aplicativo, que roda tanto em smartphones quanto em tablets, ainda propõe ao paciente atividades cotidianas e analisa a maneira e quanto tempo ele leva para executá-las. Ao final, dá notas (de 0 a 100) para vários domínios cognitivos, como atenção, memória e coordenação motora, que podem servir de apoio para o profissional de saúde fazer o diagnóstico de alguma doença. “Tudo aquilo que o cérebro pensa é traduzido em pequenos movimentos. Esses movimentos são medidos com muita precisão pelos sensores do aparelho”, explicou o neurocientista Ioannis Tarnanas, criador do exame e co-fundador da Altoida, ao Estadão.

Ao todo, o teste demora cerca de 12 minutos, período no qual coleta e avalia mais de 850 parâmetros simultaneamente – tudo isso aparece em relatório emitido imediatamente após o exercício. Por ora, observa Tarnanas, trata-se de um “dispositivo de investigação”, ou seja, não pode ser usado sozinho para cravar um diagnóstico. Os estudos que sustentam o software foram publicados em revistas científicas de peso, como a npj Digital Medicine, do grupo Nature. Outras pesquisas estão em andamento.

Na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o produto está regularizado desde setembro de 2019. A indicação de uso é para “auxiliar na captura de dados e exibição dos resultados como auxílio aos profissionais de saúde na avaliação da função perceptual e de memória”. Ele pode “detectar micro-erros e micromovimentos precoces e sutis durante as funções cotidianas, anos antes do início dos sintomas neurodegenerativos típicos”, de acordo com o órgão.

A terapeuta ocupacional Viviane Abreu aplica o teste Altoida no repórter Leon Ferrari Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Com a pandemia da covid-19, porém, o aplicativo só começou a ser comercializado no ano passado pela Biocare Sparkia, empresa voltada ao setor de healthcare. O exame já é aplicado em 14 Estados e mais de 40 cidades. Ronald Lorentziadis, CEO da empresa, informou ao Estadão que cerca de 400 profissionais de saúde utilizam o teste no País, e 4 mil pessoas já foram examinadas com ele. Lorentziadis conta que, para além do declínio cognitivo associado à demência, alguns médicos recorrem ao software para detectar prejuízos na capacidade de processar o pensamento decorrentes da menopausa e da própria covid.

Profissionais que usam o Altoida ainda defendem que ele serve para fazer uma espécie de check-up do cérebro. A ideia, nesse caso, é aplicar o exame com certa regularidade e criar um histórico da função cognitiva do paciente ao longo da vida – assim como acompanhamos parâmetros como colesterol e glicemia. Em termos de evidências científicas, não há um consenso sobre os benefícios disso nem de qual exame deveria ser usado para esse fim.

Qual a ciência por trás do Altoida?

De acordo com Tarnanas, toda descoberta tecnológica é precedida por uma científica. No caso do Altoida, ela veio de um estudo europeu chamado PharmaCog, que, segundo ele, mostrou que alterações na função da rede cerebral (maneira como a eletricidade do cérebro é gerada e comunicada entre diferentes áreas do órgão) precedem qualquer sintoma de demência. A segunda é dele mesmo: pessoas agem de forma diferente em ambientes de realidade aumentada. “Conectei essas duas descobertas”, explica.

Em certa medida, a grande inspiração que permitiu mesclar os dois achados científicos foi observar sua própria avó. “Ela estava tendo alguns problemas com o cérebro, algumas queixas, mas nenhum médico conseguia entender o que havia de errado com ela.” Segundo ele, as dificuldades ficavam mais evidentes quando ela cozinhava. “Ela repetia receitas que costumava fazer, mas agora estava colocando sal demais ou aumentava muito o fogo. Essas pequenas coisas sinalizavam que alguma estava errada”, fala. “Anos depois, ela foi diagnosticada com Alzheimer.”

Assim, ele percebeu que uma ferramenta que recriasse atividades da vida diária e pudesse medir essas pequenas falhas poderia ser usada para prever demência.

Hora de experimentar o teste

Este repórter testou o Altoida. Primeiro, em um tablet, completei informações pessoais: idade, escolaridade e etnia. O aplicativo, então, me direcionou para a primeira fase do teste: aprender a usar o programa. A interface é bastante amigável.

A primeira atividade já é motora, e precisei desenhar um círculo. Depois, calibrei o rastreamento ocular, para o tablet conseguir captar os movimentos de meus olhos enquanto executo as próximas atividades. Por fim, testei a atividade de realidade aumentada, o grande trunfo do teste.

Nela, temos que esconder um objeto, no caso uma estrela, em um dos três locais selecionadas por quem está aplicando o exame – no meu caso, era Viviane Abreu, terapeuta ocupacional, mestre em Gerontologia e ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer. Ela colocou três papéis brancos em diferentes locais do consultório. Pode até parecer moleza, mas não é. Isso porque, como na vida real, enfrento um segundo estímulo: um som agudo. Cada vez que ele é emitido pelo tablet, preciso clicar em um botão.

Essa etapa leva poucos minutos e já estou pronto para as próximas. Nelas, faço as mesmas atividades, duas vezes. Além de me comparar com os demais pacientes da base de dados, o teste me compara comigo mesmo para um resultado mais confiável.

Exame é divido em três etapas Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Começamos com a atividade motora, mas agora há mais figuras para desenhar. Depois, acompanho um alvo com o dedo. Então, voltamos para atividade de realidade aumentada, só que, dessa vez, são três objetos a serem escondidos e encontrados, e, ao final, preciso responder a perguntas sobre a tarefa – o que escondi primeiro, por exemplo.

Depois de descansar por um minuto, vem a terceira e última fase, em que repito o que já fiz, mas com alguns ajustes. O que muda mesmo é a tarefa de esconder e encontrar objetos. Agora, tenho que fugir de um incêndio e, para isso, preciso lembrar onde coloquei o alarme de fogo, o telefone para ligar aos bombeiros e meus documentos.

Ao final da atividade, recebo imediatamente um boletim, com notas de 0 a 100, para 12 domínios cognitivos, que incluem memória, atenção, planejamento e flexibilidade. Meu resultado: “Parece tudo bem”.

Porém, o teste é bastante sensível e conseguiu captar, por exemplo, que eu estava distraído durante a atividade – afinal, uma equipe de mais três pessoas me acompanhava para filmar e fotografar o processo. Quatro domínios ficaram um pouco abaixo da média, no estrato “média baixa” – velocidade de processamento cognitivo, atenção complexa, percepção visual e inibição –, exatamente aqueles afetados pela distração causada por meus colegas. O interessante, todos caíram na mesma proporção. Prova da sensibilidade do teste, segundo Viviane.

Como o teste foi feito nessas condições, o resultado não é válido. O ideal é só paciente e profissional da saúde.

Repórter Leon Ferrari ao final do exame Altoida Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Como funciona o diagnóstico para demência?

A demência é uma síndrome causada por uma série de doenças – o Alzheimer é a principal delas – que, ao longo do tempo, destroem as células nervosas e danificam o cérebro, geralmente levando ao declínio da função cognitiva, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Algumas causas são reversíveis (quando ela é causada por alterações metabólicas, um trauma ou processo infeccioso), mas, em uma grande parcela dos casos, isso ainda não é possível, embora a ciência e a medicina tenham avançado no sentido de desacelerar e amenizar sintomas.

Médicos ouvidos pelo Estadão explicaram que o diagnóstico da demência é complexo, majoritariamente clínico e, em geral, motivado por uma queixa – do paciente ou de quem convive com ele. A partir dela, é feita uma sequência de avaliações para determinar do que se trata e eliminar possíveis causas reversíveis. O indivíduo passa por uma entrevista (os especialistas chamam de anamnese), testes neuropsicológicos e exames de sangue e imagem. “Com isso, minha acurácia diagnóstica é de 80%”, afirma o neurologista Ivan Okamoto, do Núcleo de Excelência em Memória (Nemo) do Hospital Israelita Albert Einstein. Caso haja dúvida, outros exames mais recentes que investigam o acúmulo de proteínas associadas à demência podem ser solicitados, como uma biópsia do líquor e o PET amiloide.

Okamoto explica que o exame da Altoida, que ele aplica desde pouco antes da pandemia da covid, integra um rol de possibilidades para a avaliação neuropsicológica, que avalia memória, orientação, funções executivas de organização e planejamento, por exemplo. Mais tradicionais e amplamente aplicados, estão os chamando testes de “lápis e papel”, como o Montreal Cognitive Assessment (Moca) e o teste do relógio (General Practitioner Assessment of Cognition). Algumas dessas avaliações são mais curtas, e outras podem levar horas.

Qual a diferença do Altoida para outros testes?

Dentro do grupo de exames neuropsicólogicos, os mais usados são aqueles chamados de testes de lápis e papel, que, como o próprio termo sugere, exigem que o paciente escreva e desenhe. No teste do relógio, é preciso traçar os ponteiros e as doze divisões e indicar um horário pré-determinado com os ponteiros. Também são feitas perguntas sobre as condições da memória, por exemplo.

“O indivíduo pode dizer ‘sou bom em encontrar xícaras’, dizemos ‘ok, mostre-nos’”, explica Tarnanas, criador do Altoida. “Vamos da teoria à prática.” Ao mesmo tempo, ele consegue medir com mais rigor quanto tempo o paciente usou para executar a tarefa.”

Essa simulação da realidade traz vantagens, segundo Okamoto. “Na minha opinião, cada vez mais nós vamos usar isso como um instrumento, porque ele dá mais precisão. A gente vê a velocidade de processamento, além do certo e errado na pontuação dos testes. Ele consegue medir como você escaneia o seu campo visual. Estou melhorando minha capacidade diagnóstica com um teste simples e rápido.”

Em uma das atividades do exame, é preciso perseguir um alvo com o dedo Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Isso significa que está na hora de descartar os testes clássicos, como o de lápis e papel? Okamoto diz que não. Na avaliação dele, o Altoida é mais um instrumento para melhorar a acurácia diagnóstica de uma síndrome complexa.

Por se tratar de uma tecnologia nova, Claudia Kimie Suemoto, professora associada da disciplina de geriatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que não aplica o teste, adverte que não se pode ter pressa. “Talvez esses bancos de dados que vão ajudar no diagnóstico final ainda não sejam muito robustos”, diz ela, que faz parte do Advisory Council da Alzheimer’s Association International Society to Advance Alzheimer’s Research and Treatment (ISTAART). “A gente sempre precisa de muitos dados pra chegar à conclusão do que é um desempenho normal.”

Em maio deste ano, a OMS divulgou um alerta sobre o uso precipitado de inteligência artificial na saúde. “Os dados usados para treinar a IA podem ser tendenciosos, gerando informações enganosas ou imprecisas que podem representar riscos à saúde, equidade e inclusão”, diz o comunicado.

Garantir a diversidade e expandir a base da dados é uma das prioridades do fornecedor, e o Brasil será fundamental para isso. “Estamos muito interessados na diversidade de nossa coleta de dados, e isso inclui o Brasil em uma posição muito alta”, assegura Tarnanas.

Um check-up para o cérebro?

Rotineiramente fazemos – ou devíamos fazer – alguns exames, o famoso check-up. Em geral, eles incluem um hemograma (exame de sangue), com dosagem para verificar os níveis de colesterol, triglicerídeos e glicemia, por exemplo. A frequência vai depender do histórico de saúde do pacientes, por isso a importância da orientação médica.

Para o cérebro, não existe um procedimento que funcionaria como um check-up para aferir a capacidade de raciocínio ou memória. Okamoto e Claudia destacam que ainda não há um consenso se devemos de fato fazer isso. Claudia diz que, para pacientes idosos, há uma recomendação da Sociedade Americana de Geriatria para que seja feito esse rastreio com algum método psicométrico.

Alguns profissionais que aplicam o Altoida no Brasil, porém, consideram que esse exame pode ser útil para esse acompanhamento. Eles falam em aplicações periódicas do teste em intervalos de seis meses a um ano.

Viviane Abreu, terapeuta ocupacional, mestre em Gerontologia e ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer, que aplica o exame Altoida em São Paulo Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

“Sempre defendi que devemos fazer um check-up cerebral. Fazemos do coração, dos olhos, mas não fazemos um do cérebro, que é a nossa parte nobre”, alega Viviane Abreu. Segundo ela, prevenir doenças, inclusive a demência, passa por entender o que acontece dentro da gente.

Fuja de um incêndio, diz o tablet. Para isso, é preciso acionar um alarme, ligar para os bombeiros e pegar os documentos – tudo no mundo virtual. Parece uma brincadeira, mas o tempo necessário para executar cada tarefa e como é a resposta diante de distrações, entre outras coisas, podem dizer muito sobre a saúde do cérebro e da função cognitiva (a capacidade de processar o pensamento). Essa é a premissa na qual se baseia o exame Altoida, criado por uma empresa suíça de mesmo nome, que usa realidade aumentada e inteligência artificial para detectar precocemente alterações que podem indicar demência.

O aplicativo, que roda tanto em smartphones quanto em tablets, ainda propõe ao paciente atividades cotidianas e analisa a maneira e quanto tempo ele leva para executá-las. Ao final, dá notas (de 0 a 100) para vários domínios cognitivos, como atenção, memória e coordenação motora, que podem servir de apoio para o profissional de saúde fazer o diagnóstico de alguma doença. “Tudo aquilo que o cérebro pensa é traduzido em pequenos movimentos. Esses movimentos são medidos com muita precisão pelos sensores do aparelho”, explicou o neurocientista Ioannis Tarnanas, criador do exame e co-fundador da Altoida, ao Estadão.

Ao todo, o teste demora cerca de 12 minutos, período no qual coleta e avalia mais de 850 parâmetros simultaneamente – tudo isso aparece em relatório emitido imediatamente após o exercício. Por ora, observa Tarnanas, trata-se de um “dispositivo de investigação”, ou seja, não pode ser usado sozinho para cravar um diagnóstico. Os estudos que sustentam o software foram publicados em revistas científicas de peso, como a npj Digital Medicine, do grupo Nature. Outras pesquisas estão em andamento.

Na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o produto está regularizado desde setembro de 2019. A indicação de uso é para “auxiliar na captura de dados e exibição dos resultados como auxílio aos profissionais de saúde na avaliação da função perceptual e de memória”. Ele pode “detectar micro-erros e micromovimentos precoces e sutis durante as funções cotidianas, anos antes do início dos sintomas neurodegenerativos típicos”, de acordo com o órgão.

A terapeuta ocupacional Viviane Abreu aplica o teste Altoida no repórter Leon Ferrari Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Com a pandemia da covid-19, porém, o aplicativo só começou a ser comercializado no ano passado pela Biocare Sparkia, empresa voltada ao setor de healthcare. O exame já é aplicado em 14 Estados e mais de 40 cidades. Ronald Lorentziadis, CEO da empresa, informou ao Estadão que cerca de 400 profissionais de saúde utilizam o teste no País, e 4 mil pessoas já foram examinadas com ele. Lorentziadis conta que, para além do declínio cognitivo associado à demência, alguns médicos recorrem ao software para detectar prejuízos na capacidade de processar o pensamento decorrentes da menopausa e da própria covid.

Profissionais que usam o Altoida ainda defendem que ele serve para fazer uma espécie de check-up do cérebro. A ideia, nesse caso, é aplicar o exame com certa regularidade e criar um histórico da função cognitiva do paciente ao longo da vida – assim como acompanhamos parâmetros como colesterol e glicemia. Em termos de evidências científicas, não há um consenso sobre os benefícios disso nem de qual exame deveria ser usado para esse fim.

Qual a ciência por trás do Altoida?

De acordo com Tarnanas, toda descoberta tecnológica é precedida por uma científica. No caso do Altoida, ela veio de um estudo europeu chamado PharmaCog, que, segundo ele, mostrou que alterações na função da rede cerebral (maneira como a eletricidade do cérebro é gerada e comunicada entre diferentes áreas do órgão) precedem qualquer sintoma de demência. A segunda é dele mesmo: pessoas agem de forma diferente em ambientes de realidade aumentada. “Conectei essas duas descobertas”, explica.

Em certa medida, a grande inspiração que permitiu mesclar os dois achados científicos foi observar sua própria avó. “Ela estava tendo alguns problemas com o cérebro, algumas queixas, mas nenhum médico conseguia entender o que havia de errado com ela.” Segundo ele, as dificuldades ficavam mais evidentes quando ela cozinhava. “Ela repetia receitas que costumava fazer, mas agora estava colocando sal demais ou aumentava muito o fogo. Essas pequenas coisas sinalizavam que alguma estava errada”, fala. “Anos depois, ela foi diagnosticada com Alzheimer.”

Assim, ele percebeu que uma ferramenta que recriasse atividades da vida diária e pudesse medir essas pequenas falhas poderia ser usada para prever demência.

Hora de experimentar o teste

Este repórter testou o Altoida. Primeiro, em um tablet, completei informações pessoais: idade, escolaridade e etnia. O aplicativo, então, me direcionou para a primeira fase do teste: aprender a usar o programa. A interface é bastante amigável.

A primeira atividade já é motora, e precisei desenhar um círculo. Depois, calibrei o rastreamento ocular, para o tablet conseguir captar os movimentos de meus olhos enquanto executo as próximas atividades. Por fim, testei a atividade de realidade aumentada, o grande trunfo do teste.

Nela, temos que esconder um objeto, no caso uma estrela, em um dos três locais selecionadas por quem está aplicando o exame – no meu caso, era Viviane Abreu, terapeuta ocupacional, mestre em Gerontologia e ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer. Ela colocou três papéis brancos em diferentes locais do consultório. Pode até parecer moleza, mas não é. Isso porque, como na vida real, enfrento um segundo estímulo: um som agudo. Cada vez que ele é emitido pelo tablet, preciso clicar em um botão.

Essa etapa leva poucos minutos e já estou pronto para as próximas. Nelas, faço as mesmas atividades, duas vezes. Além de me comparar com os demais pacientes da base de dados, o teste me compara comigo mesmo para um resultado mais confiável.

Exame é divido em três etapas Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Começamos com a atividade motora, mas agora há mais figuras para desenhar. Depois, acompanho um alvo com o dedo. Então, voltamos para atividade de realidade aumentada, só que, dessa vez, são três objetos a serem escondidos e encontrados, e, ao final, preciso responder a perguntas sobre a tarefa – o que escondi primeiro, por exemplo.

Depois de descansar por um minuto, vem a terceira e última fase, em que repito o que já fiz, mas com alguns ajustes. O que muda mesmo é a tarefa de esconder e encontrar objetos. Agora, tenho que fugir de um incêndio e, para isso, preciso lembrar onde coloquei o alarme de fogo, o telefone para ligar aos bombeiros e meus documentos.

Ao final da atividade, recebo imediatamente um boletim, com notas de 0 a 100, para 12 domínios cognitivos, que incluem memória, atenção, planejamento e flexibilidade. Meu resultado: “Parece tudo bem”.

Porém, o teste é bastante sensível e conseguiu captar, por exemplo, que eu estava distraído durante a atividade – afinal, uma equipe de mais três pessoas me acompanhava para filmar e fotografar o processo. Quatro domínios ficaram um pouco abaixo da média, no estrato “média baixa” – velocidade de processamento cognitivo, atenção complexa, percepção visual e inibição –, exatamente aqueles afetados pela distração causada por meus colegas. O interessante, todos caíram na mesma proporção. Prova da sensibilidade do teste, segundo Viviane.

Como o teste foi feito nessas condições, o resultado não é válido. O ideal é só paciente e profissional da saúde.

Repórter Leon Ferrari ao final do exame Altoida Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Como funciona o diagnóstico para demência?

A demência é uma síndrome causada por uma série de doenças – o Alzheimer é a principal delas – que, ao longo do tempo, destroem as células nervosas e danificam o cérebro, geralmente levando ao declínio da função cognitiva, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Algumas causas são reversíveis (quando ela é causada por alterações metabólicas, um trauma ou processo infeccioso), mas, em uma grande parcela dos casos, isso ainda não é possível, embora a ciência e a medicina tenham avançado no sentido de desacelerar e amenizar sintomas.

Médicos ouvidos pelo Estadão explicaram que o diagnóstico da demência é complexo, majoritariamente clínico e, em geral, motivado por uma queixa – do paciente ou de quem convive com ele. A partir dela, é feita uma sequência de avaliações para determinar do que se trata e eliminar possíveis causas reversíveis. O indivíduo passa por uma entrevista (os especialistas chamam de anamnese), testes neuropsicológicos e exames de sangue e imagem. “Com isso, minha acurácia diagnóstica é de 80%”, afirma o neurologista Ivan Okamoto, do Núcleo de Excelência em Memória (Nemo) do Hospital Israelita Albert Einstein. Caso haja dúvida, outros exames mais recentes que investigam o acúmulo de proteínas associadas à demência podem ser solicitados, como uma biópsia do líquor e o PET amiloide.

Okamoto explica que o exame da Altoida, que ele aplica desde pouco antes da pandemia da covid, integra um rol de possibilidades para a avaliação neuropsicológica, que avalia memória, orientação, funções executivas de organização e planejamento, por exemplo. Mais tradicionais e amplamente aplicados, estão os chamando testes de “lápis e papel”, como o Montreal Cognitive Assessment (Moca) e o teste do relógio (General Practitioner Assessment of Cognition). Algumas dessas avaliações são mais curtas, e outras podem levar horas.

Qual a diferença do Altoida para outros testes?

Dentro do grupo de exames neuropsicólogicos, os mais usados são aqueles chamados de testes de lápis e papel, que, como o próprio termo sugere, exigem que o paciente escreva e desenhe. No teste do relógio, é preciso traçar os ponteiros e as doze divisões e indicar um horário pré-determinado com os ponteiros. Também são feitas perguntas sobre as condições da memória, por exemplo.

“O indivíduo pode dizer ‘sou bom em encontrar xícaras’, dizemos ‘ok, mostre-nos’”, explica Tarnanas, criador do Altoida. “Vamos da teoria à prática.” Ao mesmo tempo, ele consegue medir com mais rigor quanto tempo o paciente usou para executar a tarefa.”

Essa simulação da realidade traz vantagens, segundo Okamoto. “Na minha opinião, cada vez mais nós vamos usar isso como um instrumento, porque ele dá mais precisão. A gente vê a velocidade de processamento, além do certo e errado na pontuação dos testes. Ele consegue medir como você escaneia o seu campo visual. Estou melhorando minha capacidade diagnóstica com um teste simples e rápido.”

Em uma das atividades do exame, é preciso perseguir um alvo com o dedo Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Isso significa que está na hora de descartar os testes clássicos, como o de lápis e papel? Okamoto diz que não. Na avaliação dele, o Altoida é mais um instrumento para melhorar a acurácia diagnóstica de uma síndrome complexa.

Por se tratar de uma tecnologia nova, Claudia Kimie Suemoto, professora associada da disciplina de geriatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que não aplica o teste, adverte que não se pode ter pressa. “Talvez esses bancos de dados que vão ajudar no diagnóstico final ainda não sejam muito robustos”, diz ela, que faz parte do Advisory Council da Alzheimer’s Association International Society to Advance Alzheimer’s Research and Treatment (ISTAART). “A gente sempre precisa de muitos dados pra chegar à conclusão do que é um desempenho normal.”

Em maio deste ano, a OMS divulgou um alerta sobre o uso precipitado de inteligência artificial na saúde. “Os dados usados para treinar a IA podem ser tendenciosos, gerando informações enganosas ou imprecisas que podem representar riscos à saúde, equidade e inclusão”, diz o comunicado.

Garantir a diversidade e expandir a base da dados é uma das prioridades do fornecedor, e o Brasil será fundamental para isso. “Estamos muito interessados na diversidade de nossa coleta de dados, e isso inclui o Brasil em uma posição muito alta”, assegura Tarnanas.

Um check-up para o cérebro?

Rotineiramente fazemos – ou devíamos fazer – alguns exames, o famoso check-up. Em geral, eles incluem um hemograma (exame de sangue), com dosagem para verificar os níveis de colesterol, triglicerídeos e glicemia, por exemplo. A frequência vai depender do histórico de saúde do pacientes, por isso a importância da orientação médica.

Para o cérebro, não existe um procedimento que funcionaria como um check-up para aferir a capacidade de raciocínio ou memória. Okamoto e Claudia destacam que ainda não há um consenso se devemos de fato fazer isso. Claudia diz que, para pacientes idosos, há uma recomendação da Sociedade Americana de Geriatria para que seja feito esse rastreio com algum método psicométrico.

Alguns profissionais que aplicam o Altoida no Brasil, porém, consideram que esse exame pode ser útil para esse acompanhamento. Eles falam em aplicações periódicas do teste em intervalos de seis meses a um ano.

Viviane Abreu, terapeuta ocupacional, mestre em Gerontologia e ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer, que aplica o exame Altoida em São Paulo Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

“Sempre defendi que devemos fazer um check-up cerebral. Fazemos do coração, dos olhos, mas não fazemos um do cérebro, que é a nossa parte nobre”, alega Viviane Abreu. Segundo ela, prevenir doenças, inclusive a demência, passa por entender o que acontece dentro da gente.

Fuja de um incêndio, diz o tablet. Para isso, é preciso acionar um alarme, ligar para os bombeiros e pegar os documentos – tudo no mundo virtual. Parece uma brincadeira, mas o tempo necessário para executar cada tarefa e como é a resposta diante de distrações, entre outras coisas, podem dizer muito sobre a saúde do cérebro e da função cognitiva (a capacidade de processar o pensamento). Essa é a premissa na qual se baseia o exame Altoida, criado por uma empresa suíça de mesmo nome, que usa realidade aumentada e inteligência artificial para detectar precocemente alterações que podem indicar demência.

O aplicativo, que roda tanto em smartphones quanto em tablets, ainda propõe ao paciente atividades cotidianas e analisa a maneira e quanto tempo ele leva para executá-las. Ao final, dá notas (de 0 a 100) para vários domínios cognitivos, como atenção, memória e coordenação motora, que podem servir de apoio para o profissional de saúde fazer o diagnóstico de alguma doença. “Tudo aquilo que o cérebro pensa é traduzido em pequenos movimentos. Esses movimentos são medidos com muita precisão pelos sensores do aparelho”, explicou o neurocientista Ioannis Tarnanas, criador do exame e co-fundador da Altoida, ao Estadão.

Ao todo, o teste demora cerca de 12 minutos, período no qual coleta e avalia mais de 850 parâmetros simultaneamente – tudo isso aparece em relatório emitido imediatamente após o exercício. Por ora, observa Tarnanas, trata-se de um “dispositivo de investigação”, ou seja, não pode ser usado sozinho para cravar um diagnóstico. Os estudos que sustentam o software foram publicados em revistas científicas de peso, como a npj Digital Medicine, do grupo Nature. Outras pesquisas estão em andamento.

Na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o produto está regularizado desde setembro de 2019. A indicação de uso é para “auxiliar na captura de dados e exibição dos resultados como auxílio aos profissionais de saúde na avaliação da função perceptual e de memória”. Ele pode “detectar micro-erros e micromovimentos precoces e sutis durante as funções cotidianas, anos antes do início dos sintomas neurodegenerativos típicos”, de acordo com o órgão.

A terapeuta ocupacional Viviane Abreu aplica o teste Altoida no repórter Leon Ferrari Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Com a pandemia da covid-19, porém, o aplicativo só começou a ser comercializado no ano passado pela Biocare Sparkia, empresa voltada ao setor de healthcare. O exame já é aplicado em 14 Estados e mais de 40 cidades. Ronald Lorentziadis, CEO da empresa, informou ao Estadão que cerca de 400 profissionais de saúde utilizam o teste no País, e 4 mil pessoas já foram examinadas com ele. Lorentziadis conta que, para além do declínio cognitivo associado à demência, alguns médicos recorrem ao software para detectar prejuízos na capacidade de processar o pensamento decorrentes da menopausa e da própria covid.

Profissionais que usam o Altoida ainda defendem que ele serve para fazer uma espécie de check-up do cérebro. A ideia, nesse caso, é aplicar o exame com certa regularidade e criar um histórico da função cognitiva do paciente ao longo da vida – assim como acompanhamos parâmetros como colesterol e glicemia. Em termos de evidências científicas, não há um consenso sobre os benefícios disso nem de qual exame deveria ser usado para esse fim.

Qual a ciência por trás do Altoida?

De acordo com Tarnanas, toda descoberta tecnológica é precedida por uma científica. No caso do Altoida, ela veio de um estudo europeu chamado PharmaCog, que, segundo ele, mostrou que alterações na função da rede cerebral (maneira como a eletricidade do cérebro é gerada e comunicada entre diferentes áreas do órgão) precedem qualquer sintoma de demência. A segunda é dele mesmo: pessoas agem de forma diferente em ambientes de realidade aumentada. “Conectei essas duas descobertas”, explica.

Em certa medida, a grande inspiração que permitiu mesclar os dois achados científicos foi observar sua própria avó. “Ela estava tendo alguns problemas com o cérebro, algumas queixas, mas nenhum médico conseguia entender o que havia de errado com ela.” Segundo ele, as dificuldades ficavam mais evidentes quando ela cozinhava. “Ela repetia receitas que costumava fazer, mas agora estava colocando sal demais ou aumentava muito o fogo. Essas pequenas coisas sinalizavam que alguma estava errada”, fala. “Anos depois, ela foi diagnosticada com Alzheimer.”

Assim, ele percebeu que uma ferramenta que recriasse atividades da vida diária e pudesse medir essas pequenas falhas poderia ser usada para prever demência.

Hora de experimentar o teste

Este repórter testou o Altoida. Primeiro, em um tablet, completei informações pessoais: idade, escolaridade e etnia. O aplicativo, então, me direcionou para a primeira fase do teste: aprender a usar o programa. A interface é bastante amigável.

A primeira atividade já é motora, e precisei desenhar um círculo. Depois, calibrei o rastreamento ocular, para o tablet conseguir captar os movimentos de meus olhos enquanto executo as próximas atividades. Por fim, testei a atividade de realidade aumentada, o grande trunfo do teste.

Nela, temos que esconder um objeto, no caso uma estrela, em um dos três locais selecionadas por quem está aplicando o exame – no meu caso, era Viviane Abreu, terapeuta ocupacional, mestre em Gerontologia e ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer. Ela colocou três papéis brancos em diferentes locais do consultório. Pode até parecer moleza, mas não é. Isso porque, como na vida real, enfrento um segundo estímulo: um som agudo. Cada vez que ele é emitido pelo tablet, preciso clicar em um botão.

Essa etapa leva poucos minutos e já estou pronto para as próximas. Nelas, faço as mesmas atividades, duas vezes. Além de me comparar com os demais pacientes da base de dados, o teste me compara comigo mesmo para um resultado mais confiável.

Exame é divido em três etapas Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Começamos com a atividade motora, mas agora há mais figuras para desenhar. Depois, acompanho um alvo com o dedo. Então, voltamos para atividade de realidade aumentada, só que, dessa vez, são três objetos a serem escondidos e encontrados, e, ao final, preciso responder a perguntas sobre a tarefa – o que escondi primeiro, por exemplo.

Depois de descansar por um minuto, vem a terceira e última fase, em que repito o que já fiz, mas com alguns ajustes. O que muda mesmo é a tarefa de esconder e encontrar objetos. Agora, tenho que fugir de um incêndio e, para isso, preciso lembrar onde coloquei o alarme de fogo, o telefone para ligar aos bombeiros e meus documentos.

Ao final da atividade, recebo imediatamente um boletim, com notas de 0 a 100, para 12 domínios cognitivos, que incluem memória, atenção, planejamento e flexibilidade. Meu resultado: “Parece tudo bem”.

Porém, o teste é bastante sensível e conseguiu captar, por exemplo, que eu estava distraído durante a atividade – afinal, uma equipe de mais três pessoas me acompanhava para filmar e fotografar o processo. Quatro domínios ficaram um pouco abaixo da média, no estrato “média baixa” – velocidade de processamento cognitivo, atenção complexa, percepção visual e inibição –, exatamente aqueles afetados pela distração causada por meus colegas. O interessante, todos caíram na mesma proporção. Prova da sensibilidade do teste, segundo Viviane.

Como o teste foi feito nessas condições, o resultado não é válido. O ideal é só paciente e profissional da saúde.

Repórter Leon Ferrari ao final do exame Altoida Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Como funciona o diagnóstico para demência?

A demência é uma síndrome causada por uma série de doenças – o Alzheimer é a principal delas – que, ao longo do tempo, destroem as células nervosas e danificam o cérebro, geralmente levando ao declínio da função cognitiva, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Algumas causas são reversíveis (quando ela é causada por alterações metabólicas, um trauma ou processo infeccioso), mas, em uma grande parcela dos casos, isso ainda não é possível, embora a ciência e a medicina tenham avançado no sentido de desacelerar e amenizar sintomas.

Médicos ouvidos pelo Estadão explicaram que o diagnóstico da demência é complexo, majoritariamente clínico e, em geral, motivado por uma queixa – do paciente ou de quem convive com ele. A partir dela, é feita uma sequência de avaliações para determinar do que se trata e eliminar possíveis causas reversíveis. O indivíduo passa por uma entrevista (os especialistas chamam de anamnese), testes neuropsicológicos e exames de sangue e imagem. “Com isso, minha acurácia diagnóstica é de 80%”, afirma o neurologista Ivan Okamoto, do Núcleo de Excelência em Memória (Nemo) do Hospital Israelita Albert Einstein. Caso haja dúvida, outros exames mais recentes que investigam o acúmulo de proteínas associadas à demência podem ser solicitados, como uma biópsia do líquor e o PET amiloide.

Okamoto explica que o exame da Altoida, que ele aplica desde pouco antes da pandemia da covid, integra um rol de possibilidades para a avaliação neuropsicológica, que avalia memória, orientação, funções executivas de organização e planejamento, por exemplo. Mais tradicionais e amplamente aplicados, estão os chamando testes de “lápis e papel”, como o Montreal Cognitive Assessment (Moca) e o teste do relógio (General Practitioner Assessment of Cognition). Algumas dessas avaliações são mais curtas, e outras podem levar horas.

Qual a diferença do Altoida para outros testes?

Dentro do grupo de exames neuropsicólogicos, os mais usados são aqueles chamados de testes de lápis e papel, que, como o próprio termo sugere, exigem que o paciente escreva e desenhe. No teste do relógio, é preciso traçar os ponteiros e as doze divisões e indicar um horário pré-determinado com os ponteiros. Também são feitas perguntas sobre as condições da memória, por exemplo.

“O indivíduo pode dizer ‘sou bom em encontrar xícaras’, dizemos ‘ok, mostre-nos’”, explica Tarnanas, criador do Altoida. “Vamos da teoria à prática.” Ao mesmo tempo, ele consegue medir com mais rigor quanto tempo o paciente usou para executar a tarefa.”

Essa simulação da realidade traz vantagens, segundo Okamoto. “Na minha opinião, cada vez mais nós vamos usar isso como um instrumento, porque ele dá mais precisão. A gente vê a velocidade de processamento, além do certo e errado na pontuação dos testes. Ele consegue medir como você escaneia o seu campo visual. Estou melhorando minha capacidade diagnóstica com um teste simples e rápido.”

Em uma das atividades do exame, é preciso perseguir um alvo com o dedo Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Isso significa que está na hora de descartar os testes clássicos, como o de lápis e papel? Okamoto diz que não. Na avaliação dele, o Altoida é mais um instrumento para melhorar a acurácia diagnóstica de uma síndrome complexa.

Por se tratar de uma tecnologia nova, Claudia Kimie Suemoto, professora associada da disciplina de geriatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que não aplica o teste, adverte que não se pode ter pressa. “Talvez esses bancos de dados que vão ajudar no diagnóstico final ainda não sejam muito robustos”, diz ela, que faz parte do Advisory Council da Alzheimer’s Association International Society to Advance Alzheimer’s Research and Treatment (ISTAART). “A gente sempre precisa de muitos dados pra chegar à conclusão do que é um desempenho normal.”

Em maio deste ano, a OMS divulgou um alerta sobre o uso precipitado de inteligência artificial na saúde. “Os dados usados para treinar a IA podem ser tendenciosos, gerando informações enganosas ou imprecisas que podem representar riscos à saúde, equidade e inclusão”, diz o comunicado.

Garantir a diversidade e expandir a base da dados é uma das prioridades do fornecedor, e o Brasil será fundamental para isso. “Estamos muito interessados na diversidade de nossa coleta de dados, e isso inclui o Brasil em uma posição muito alta”, assegura Tarnanas.

Um check-up para o cérebro?

Rotineiramente fazemos – ou devíamos fazer – alguns exames, o famoso check-up. Em geral, eles incluem um hemograma (exame de sangue), com dosagem para verificar os níveis de colesterol, triglicerídeos e glicemia, por exemplo. A frequência vai depender do histórico de saúde do pacientes, por isso a importância da orientação médica.

Para o cérebro, não existe um procedimento que funcionaria como um check-up para aferir a capacidade de raciocínio ou memória. Okamoto e Claudia destacam que ainda não há um consenso se devemos de fato fazer isso. Claudia diz que, para pacientes idosos, há uma recomendação da Sociedade Americana de Geriatria para que seja feito esse rastreio com algum método psicométrico.

Alguns profissionais que aplicam o Altoida no Brasil, porém, consideram que esse exame pode ser útil para esse acompanhamento. Eles falam em aplicações periódicas do teste em intervalos de seis meses a um ano.

Viviane Abreu, terapeuta ocupacional, mestre em Gerontologia e ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer, que aplica o exame Altoida em São Paulo Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

“Sempre defendi que devemos fazer um check-up cerebral. Fazemos do coração, dos olhos, mas não fazemos um do cérebro, que é a nossa parte nobre”, alega Viviane Abreu. Segundo ela, prevenir doenças, inclusive a demência, passa por entender o que acontece dentro da gente.

Fuja de um incêndio, diz o tablet. Para isso, é preciso acionar um alarme, ligar para os bombeiros e pegar os documentos – tudo no mundo virtual. Parece uma brincadeira, mas o tempo necessário para executar cada tarefa e como é a resposta diante de distrações, entre outras coisas, podem dizer muito sobre a saúde do cérebro e da função cognitiva (a capacidade de processar o pensamento). Essa é a premissa na qual se baseia o exame Altoida, criado por uma empresa suíça de mesmo nome, que usa realidade aumentada e inteligência artificial para detectar precocemente alterações que podem indicar demência.

O aplicativo, que roda tanto em smartphones quanto em tablets, ainda propõe ao paciente atividades cotidianas e analisa a maneira e quanto tempo ele leva para executá-las. Ao final, dá notas (de 0 a 100) para vários domínios cognitivos, como atenção, memória e coordenação motora, que podem servir de apoio para o profissional de saúde fazer o diagnóstico de alguma doença. “Tudo aquilo que o cérebro pensa é traduzido em pequenos movimentos. Esses movimentos são medidos com muita precisão pelos sensores do aparelho”, explicou o neurocientista Ioannis Tarnanas, criador do exame e co-fundador da Altoida, ao Estadão.

Ao todo, o teste demora cerca de 12 minutos, período no qual coleta e avalia mais de 850 parâmetros simultaneamente – tudo isso aparece em relatório emitido imediatamente após o exercício. Por ora, observa Tarnanas, trata-se de um “dispositivo de investigação”, ou seja, não pode ser usado sozinho para cravar um diagnóstico. Os estudos que sustentam o software foram publicados em revistas científicas de peso, como a npj Digital Medicine, do grupo Nature. Outras pesquisas estão em andamento.

Na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o produto está regularizado desde setembro de 2019. A indicação de uso é para “auxiliar na captura de dados e exibição dos resultados como auxílio aos profissionais de saúde na avaliação da função perceptual e de memória”. Ele pode “detectar micro-erros e micromovimentos precoces e sutis durante as funções cotidianas, anos antes do início dos sintomas neurodegenerativos típicos”, de acordo com o órgão.

A terapeuta ocupacional Viviane Abreu aplica o teste Altoida no repórter Leon Ferrari Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Com a pandemia da covid-19, porém, o aplicativo só começou a ser comercializado no ano passado pela Biocare Sparkia, empresa voltada ao setor de healthcare. O exame já é aplicado em 14 Estados e mais de 40 cidades. Ronald Lorentziadis, CEO da empresa, informou ao Estadão que cerca de 400 profissionais de saúde utilizam o teste no País, e 4 mil pessoas já foram examinadas com ele. Lorentziadis conta que, para além do declínio cognitivo associado à demência, alguns médicos recorrem ao software para detectar prejuízos na capacidade de processar o pensamento decorrentes da menopausa e da própria covid.

Profissionais que usam o Altoida ainda defendem que ele serve para fazer uma espécie de check-up do cérebro. A ideia, nesse caso, é aplicar o exame com certa regularidade e criar um histórico da função cognitiva do paciente ao longo da vida – assim como acompanhamos parâmetros como colesterol e glicemia. Em termos de evidências científicas, não há um consenso sobre os benefícios disso nem de qual exame deveria ser usado para esse fim.

Qual a ciência por trás do Altoida?

De acordo com Tarnanas, toda descoberta tecnológica é precedida por uma científica. No caso do Altoida, ela veio de um estudo europeu chamado PharmaCog, que, segundo ele, mostrou que alterações na função da rede cerebral (maneira como a eletricidade do cérebro é gerada e comunicada entre diferentes áreas do órgão) precedem qualquer sintoma de demência. A segunda é dele mesmo: pessoas agem de forma diferente em ambientes de realidade aumentada. “Conectei essas duas descobertas”, explica.

Em certa medida, a grande inspiração que permitiu mesclar os dois achados científicos foi observar sua própria avó. “Ela estava tendo alguns problemas com o cérebro, algumas queixas, mas nenhum médico conseguia entender o que havia de errado com ela.” Segundo ele, as dificuldades ficavam mais evidentes quando ela cozinhava. “Ela repetia receitas que costumava fazer, mas agora estava colocando sal demais ou aumentava muito o fogo. Essas pequenas coisas sinalizavam que alguma estava errada”, fala. “Anos depois, ela foi diagnosticada com Alzheimer.”

Assim, ele percebeu que uma ferramenta que recriasse atividades da vida diária e pudesse medir essas pequenas falhas poderia ser usada para prever demência.

Hora de experimentar o teste

Este repórter testou o Altoida. Primeiro, em um tablet, completei informações pessoais: idade, escolaridade e etnia. O aplicativo, então, me direcionou para a primeira fase do teste: aprender a usar o programa. A interface é bastante amigável.

A primeira atividade já é motora, e precisei desenhar um círculo. Depois, calibrei o rastreamento ocular, para o tablet conseguir captar os movimentos de meus olhos enquanto executo as próximas atividades. Por fim, testei a atividade de realidade aumentada, o grande trunfo do teste.

Nela, temos que esconder um objeto, no caso uma estrela, em um dos três locais selecionadas por quem está aplicando o exame – no meu caso, era Viviane Abreu, terapeuta ocupacional, mestre em Gerontologia e ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer. Ela colocou três papéis brancos em diferentes locais do consultório. Pode até parecer moleza, mas não é. Isso porque, como na vida real, enfrento um segundo estímulo: um som agudo. Cada vez que ele é emitido pelo tablet, preciso clicar em um botão.

Essa etapa leva poucos minutos e já estou pronto para as próximas. Nelas, faço as mesmas atividades, duas vezes. Além de me comparar com os demais pacientes da base de dados, o teste me compara comigo mesmo para um resultado mais confiável.

Exame é divido em três etapas Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Começamos com a atividade motora, mas agora há mais figuras para desenhar. Depois, acompanho um alvo com o dedo. Então, voltamos para atividade de realidade aumentada, só que, dessa vez, são três objetos a serem escondidos e encontrados, e, ao final, preciso responder a perguntas sobre a tarefa – o que escondi primeiro, por exemplo.

Depois de descansar por um minuto, vem a terceira e última fase, em que repito o que já fiz, mas com alguns ajustes. O que muda mesmo é a tarefa de esconder e encontrar objetos. Agora, tenho que fugir de um incêndio e, para isso, preciso lembrar onde coloquei o alarme de fogo, o telefone para ligar aos bombeiros e meus documentos.

Ao final da atividade, recebo imediatamente um boletim, com notas de 0 a 100, para 12 domínios cognitivos, que incluem memória, atenção, planejamento e flexibilidade. Meu resultado: “Parece tudo bem”.

Porém, o teste é bastante sensível e conseguiu captar, por exemplo, que eu estava distraído durante a atividade – afinal, uma equipe de mais três pessoas me acompanhava para filmar e fotografar o processo. Quatro domínios ficaram um pouco abaixo da média, no estrato “média baixa” – velocidade de processamento cognitivo, atenção complexa, percepção visual e inibição –, exatamente aqueles afetados pela distração causada por meus colegas. O interessante, todos caíram na mesma proporção. Prova da sensibilidade do teste, segundo Viviane.

Como o teste foi feito nessas condições, o resultado não é válido. O ideal é só paciente e profissional da saúde.

Repórter Leon Ferrari ao final do exame Altoida Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Como funciona o diagnóstico para demência?

A demência é uma síndrome causada por uma série de doenças – o Alzheimer é a principal delas – que, ao longo do tempo, destroem as células nervosas e danificam o cérebro, geralmente levando ao declínio da função cognitiva, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Algumas causas são reversíveis (quando ela é causada por alterações metabólicas, um trauma ou processo infeccioso), mas, em uma grande parcela dos casos, isso ainda não é possível, embora a ciência e a medicina tenham avançado no sentido de desacelerar e amenizar sintomas.

Médicos ouvidos pelo Estadão explicaram que o diagnóstico da demência é complexo, majoritariamente clínico e, em geral, motivado por uma queixa – do paciente ou de quem convive com ele. A partir dela, é feita uma sequência de avaliações para determinar do que se trata e eliminar possíveis causas reversíveis. O indivíduo passa por uma entrevista (os especialistas chamam de anamnese), testes neuropsicológicos e exames de sangue e imagem. “Com isso, minha acurácia diagnóstica é de 80%”, afirma o neurologista Ivan Okamoto, do Núcleo de Excelência em Memória (Nemo) do Hospital Israelita Albert Einstein. Caso haja dúvida, outros exames mais recentes que investigam o acúmulo de proteínas associadas à demência podem ser solicitados, como uma biópsia do líquor e o PET amiloide.

Okamoto explica que o exame da Altoida, que ele aplica desde pouco antes da pandemia da covid, integra um rol de possibilidades para a avaliação neuropsicológica, que avalia memória, orientação, funções executivas de organização e planejamento, por exemplo. Mais tradicionais e amplamente aplicados, estão os chamando testes de “lápis e papel”, como o Montreal Cognitive Assessment (Moca) e o teste do relógio (General Practitioner Assessment of Cognition). Algumas dessas avaliações são mais curtas, e outras podem levar horas.

Qual a diferença do Altoida para outros testes?

Dentro do grupo de exames neuropsicólogicos, os mais usados são aqueles chamados de testes de lápis e papel, que, como o próprio termo sugere, exigem que o paciente escreva e desenhe. No teste do relógio, é preciso traçar os ponteiros e as doze divisões e indicar um horário pré-determinado com os ponteiros. Também são feitas perguntas sobre as condições da memória, por exemplo.

“O indivíduo pode dizer ‘sou bom em encontrar xícaras’, dizemos ‘ok, mostre-nos’”, explica Tarnanas, criador do Altoida. “Vamos da teoria à prática.” Ao mesmo tempo, ele consegue medir com mais rigor quanto tempo o paciente usou para executar a tarefa.”

Essa simulação da realidade traz vantagens, segundo Okamoto. “Na minha opinião, cada vez mais nós vamos usar isso como um instrumento, porque ele dá mais precisão. A gente vê a velocidade de processamento, além do certo e errado na pontuação dos testes. Ele consegue medir como você escaneia o seu campo visual. Estou melhorando minha capacidade diagnóstica com um teste simples e rápido.”

Em uma das atividades do exame, é preciso perseguir um alvo com o dedo Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

Isso significa que está na hora de descartar os testes clássicos, como o de lápis e papel? Okamoto diz que não. Na avaliação dele, o Altoida é mais um instrumento para melhorar a acurácia diagnóstica de uma síndrome complexa.

Por se tratar de uma tecnologia nova, Claudia Kimie Suemoto, professora associada da disciplina de geriatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que não aplica o teste, adverte que não se pode ter pressa. “Talvez esses bancos de dados que vão ajudar no diagnóstico final ainda não sejam muito robustos”, diz ela, que faz parte do Advisory Council da Alzheimer’s Association International Society to Advance Alzheimer’s Research and Treatment (ISTAART). “A gente sempre precisa de muitos dados pra chegar à conclusão do que é um desempenho normal.”

Em maio deste ano, a OMS divulgou um alerta sobre o uso precipitado de inteligência artificial na saúde. “Os dados usados para treinar a IA podem ser tendenciosos, gerando informações enganosas ou imprecisas que podem representar riscos à saúde, equidade e inclusão”, diz o comunicado.

Garantir a diversidade e expandir a base da dados é uma das prioridades do fornecedor, e o Brasil será fundamental para isso. “Estamos muito interessados na diversidade de nossa coleta de dados, e isso inclui o Brasil em uma posição muito alta”, assegura Tarnanas.

Um check-up para o cérebro?

Rotineiramente fazemos – ou devíamos fazer – alguns exames, o famoso check-up. Em geral, eles incluem um hemograma (exame de sangue), com dosagem para verificar os níveis de colesterol, triglicerídeos e glicemia, por exemplo. A frequência vai depender do histórico de saúde do pacientes, por isso a importância da orientação médica.

Para o cérebro, não existe um procedimento que funcionaria como um check-up para aferir a capacidade de raciocínio ou memória. Okamoto e Claudia destacam que ainda não há um consenso se devemos de fato fazer isso. Claudia diz que, para pacientes idosos, há uma recomendação da Sociedade Americana de Geriatria para que seja feito esse rastreio com algum método psicométrico.

Alguns profissionais que aplicam o Altoida no Brasil, porém, consideram que esse exame pode ser útil para esse acompanhamento. Eles falam em aplicações periódicas do teste em intervalos de seis meses a um ano.

Viviane Abreu, terapeuta ocupacional, mestre em Gerontologia e ex-presidente da Associação Brasileira de Alzheimer, que aplica o exame Altoida em São Paulo Foto: TABA BENEDICTO/ESTADÃO

“Sempre defendi que devemos fazer um check-up cerebral. Fazemos do coração, dos olhos, mas não fazemos um do cérebro, que é a nossa parte nobre”, alega Viviane Abreu. Segundo ela, prevenir doenças, inclusive a demência, passa por entender o que acontece dentro da gente.

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