SÃO PAULO - Cidades de quatro Estados e do Distrito Federal investigam pessoas por burlar o sistema de saúde para receber pela terceira vez uma dose de vacina contra a covid-19. Parte dos casos é de pessoas que tomaram as duas doses da Coronavac e voltaram a procurar postos de vacinação para receber outros imunizantes, como o da Janssen e o da Pfizer. Casos foram encaminhados ao Ministério Público, que cita a possibilidade de responsabilização criminal e cível.
Ao menos 29 pessoas estão sendo investigadas. A cidade do Rio de Janeiro concentra a maior parte dos casos, com 16 registros confirmados. Em São Paulo, municípios da região metropolitana da capital e do interior apuram ocorrências. Há também investigações em curso em Minas Gerais e no Paraná.
Ao menos desde maio, conteúdo falso compartilhado em redes sociais erroneamente aponta que a Organização Mundial da Saúde teria recomendado arevacinação da população que recebeu o imunizante desenvolvido pela empresa chinesa Sinovac, o que não é verdade. Outros boatos também têm levado parte da população a priorizar vacinas de alguns fabricantes.
O caso de maior repercussão ocorreu em Guarulhos, na Grande São Paulo. Uma médica veterinária exibiu em rede social os comprovantes de vacinação de duas doses da Coronavac (em fevereiro e março) e de uma dose do imunizante da Janssen (na quarta-feira, 30).
Na publicação, utilizava o termo "vachina" (geralmente utilizado para desqualificar o imunizante da Sinovac) e contava ter deliberadamente procurado "um bairro meio que de favela", para que não fosse possível fazer a verificação digital no momento da aplicação.
Em nota, a prefeitura de Guarulhos afirmou que tomou conhecimento do ocorrido na quinta-feira, 1º, e encaminhou o caso ao Ministério Público Estadual. Além disso, abriu um inquérito interno para apurar possíveis falhas no processo de vacinação. Casos semelhantes foram identificados em outras partes da região metropolitana de São Paulo e no interior.
Na cidade de São Paulo, a Prefeitura identificou dois médicos que tomaram uma dose extra contra a covid-19. Os casos ocorreram em março e maio deste ano. E, segundo a Secretaria Municipal da Saúde, foram notificados ao Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremesp), que confirmou ao Estadão estar "apurando" sob sigilo.
Em São Caetano, também na Grande São Paulo, duas infrações foram registradas nas últimas semanas. Em ambos os casos, os pacientes estavam vacinados com duas doses da Coronavac, recebidas entre fevereiro e abril deste ano. O primeiro é de um dentista vacinado anteriormente na cidade de Diadema e que recebeu mais uma dose de Pfizer no município do ABC. E o segundo, um professor da cidade de São Paulo, que recebeu a da Janssen.
O erro foi descoberto ao inserir os dados no sistema VaciVida, do governo estadual. Segundo a prefeitura, as irregularidades foram encaminhadas ao Ministério Público, mas a instituição disse não ter sido procurada até as 17 horas desta sexta-feira, 2.
A prefeitura de Limeira detectou dois possíveis casos de "revacinação" em junho deste ano por meio do VaciVida. Em nota, informou que ambos estão sob investigação e que ouvirá os envolvidos. "Tendo confirmação de que elas tomaram a terceira dose dolosamente, a Secretaria de Saúde encaminhará os fatos ao Ministério Público", disse.
Para coibir novos registros de fraude, a gestão municipal orientou que as equipes dos postos de vacinação confiram o CPF dos candidatos antes da aplicação. O número deve ser consultado no sistema estadual online para evitar repetições.
Questionada, a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo informou que os procedimentos envolvidos na vacinação são responsabilidade dos municípios, assim como a notificação de possíveis anomalias nestes procedimentos. Além disso, ressaltou que os municípios recebem recomendações de praxe em um documento técnico, entre elas está a de realizar a conferência dos dados dos pacientes antes da vacinação.
MP do Rio fala que ato pode configurar fraude e dano moral coletivo
No Rio, o Ministério Público estadual anunciou que vai apurar as ocorrências e enviou recomendações à gestão municipal, que também investiga a situação, para evitar novos casos, como averificação prévia de documentos dos pacientes no app "Conecte SUS" ou no Sistema do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI) antes da aplicação.
Segundo o órgão, as pessoas que já tinham o esquema vacinal completo retornaram a um local de aplicação para receber uma dose de outro fabricante. Além disso, recomendou que os cidadãos sejam advertidos sobre a impossibilidade de "revacinação", com alertas sobre a possibilidade de responsabilização criminal e cível. "A 'revacinação' configura fraude, bem como dano moral coletivo", destaca.
A Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais confirmou a identificação de casos do tipo em ao menos três cidades que integram as Superintendências Regionais de Juiz de Fora e Barbacena.
Entre elas, está a cidade de Rio Novo, na região de Juiz de Fora. A Prefeitura confirmou que duas pessoas que já haviam recebido o esquema vacinal completo da Coronavac em outra cidade também tomaram uma dose da Pfizer, no último dia 23. Os agentes de saúde perceberam o erro ao lançar os dados no sistema.
A Secretaria de Saúde de Brasília recebeu três denúncias de professores "revacinados" e está apurando os casos. Por meio de nota, a pasta informou que trabalha em parceria com o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
De acordo com o departamento de Vigilância em Saúde de Paranavaí, no Paraná, algumas pessoas que teriam pedido a terceira dose reclamaram da eficácia da vacina contra o coronavírus, após realizarem testes de anticorpos. Com o resultado de uma baixa taxa de anticorpos, essas pessoas querem ser vacinadas novamente com outra marca de vacina. "Testes imunológicos após vacina contra a covid-19 não devem ser considerados como resultado absoluto, pois não há, até o momento, nenhum estudo que comprove a efetividade do teste", disse a diretora da Vigilância, Keila Stelato.
Autores podem ter de restituir o poder público, aponta especialista
Professor de Direito Penal da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Marco Aurélio Florêncio comenta que os principais enquadramentos discutidos pela Polícia Civil e o Ministério Público neste tipo de caso são de falsidade ideológica, estelionato e infração à medida sanitária.
Para ele, o terceiro dos citados é o que melhor se encaixa nas características do crime. "Me parece que tomar a terceira dose é infringir essa medida sanitária preventiva (assim como desrespeitar decretos que determinam o uso de máscaras, por exemplo)", comenta. "Entendo que é crime sim." Além disso, explica que a pessoa pode responder na esfera civil, a fim de restituir o poder público pelo dano.
Membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), a médica Mônica Levi critica a conduta das pessoas que tomaram a terceira dose, ainda mais em um momento em que grande parte da população ainda não teve acesso ao imunizante. "Estão burlando a ciência, o sistema de vacinação municipal, se aproveitando da ausência temporária de sistema na UBS, é uma fraude. Estão tirando doses de não vacinados. E cabe uma punição pelos órgãos responsáveis."
Ela destaca que não há nenhum estudo em fase avançada que evidenciou a necessidade de aplicação da terceira dose neste momento e que países que cogitaram realizá-la, como Israel, decidiram protelar a ação. "Estão estudando efeito de terceira dose caso se comprove necessidade no mundo real", comentou.