Uma onda de raiva que toma conta do corpo quando você fica (ou acha que fica) na posição de perder o ser amado. Pode ser por causa de uma conversa com alguém do sexo oposto, do aviso de uma mensagem na tela do celular ou de uma frase ambígua. É normal querermos eliminar qualquer insegurança ou ameaça que surja em um relacionamento – e, por isso mesmo, todo mundo já sentiu ou sentirá, pelo menos uma vez, ciúme.
Na nossa sociedade, porém, o ciúme é visto como amor. E, por isso, reforçado em músicas, novelas, filmes, séries e tantas outras produções. Segundo os especialistas, ele até pode ser considerado um cuidado – a própria etimologia da palavra indica isso, já que vem do grego zelus. Mas está longe de ser um gesto romântico.
“Isso tem a ver com a nossa cultura de posse, de que o outro é meu. E a gente é tão acostumado com essa dinâmica que se o outro não demonstra ciúmes, entendemos que ele não sente amor. Aí, vamos fortalecendo a ideia de que o amor tem que ter controle”, resume a psicanalista e psicóloga Natália Marques.
Claro que é natural ter o sentimento, mas é preciso cuidado para não arremessar no outro uma emoção que tem origem na sua própria insegurança. “Eu era muito insegura com os relacionamentos de amizade do meu ex-namorado com outras mulheres. Sentia que não era tão interessante quanto elas, e isso me trazia muita dor”, confessa a publicitária Jacqueline Balaton, de 27 anos.
Seu grande medo era ser trocada. “Por mais que ele me amasse muito e eu tivesse a plena certeza de que ele não me trairia, a possibilidade de ele me trocar por uma pessoa melhor sempre voltava para a minha cabeça.” E quando o receio aparecia, Jacqueline entrava em um surto de ciúmes, que ela afirma ser parecido com o da sua ansiedade. “Na hora, não conseguia ver nada além daquela dor. Então, só esperava o pico passar”, conta.
Ao perceber como isso estava atrapalhando sua rotina e seu relacionamento, ela decidiu levar o assunto para terapia, que fazia desde os 15 anos. “Passei por um processo de entender o meu lugar dentro da vida de uma pessoa. E percebi que o fato de ela ter outros relacionamentos não me torna melhor ou pior do que ninguém”, diz Jacqueline, que também passou a dedicar mais tempo para si mesma, desenvolvendo sua autoestima.
De onde vem o ciúme?
De acordo com a psicologia evolucionista, o ciúme sempre existiu. O homem, graças à incerteza da paternidade, se tornou mais vulnerável ao ciúme sexual – afinal, era muito trabalhoso criar um filho que não fosse seu. Já a mulher, por nunca ter dúvidas sobre a maternidade, passou a ter medo do abandono do parceiro, nutrindo um ciúme mais emocional.
Independentemente da origem e das características do sentimento, o fato é que a maioria das pessoas ciumentas sofre de baixa autoestima. “Hoje em dia, a gente fala muito de autoestima como se fosse uma coisa fácil de adquirir. Mas ela é algo anterior, ou seja, é formada a partir do que a gente recebeu na nossa primeira infância”, explica Natália.
Assim, os vínculos afetivos, as crenças e os comportamentos interferem nessa construção. Também é importante levar em conta o ambiente em que se vive e as questões culturais.
“A pessoa que não recebeu afeição da mãe, por exemplo, vai buscar relações em que ela quer ser tudo para o outro, e que o outro seja tudo para ela. Dessa maneira, ela para de investir nos seus próprios interesses para focar somente naquela relação”, descreve a psicanalista.
Em seus estudos, a psicóloga e neuropsicóloga Andrea Stravogiannis, autora do livro “Ciúme Excessivo & Amor Patológico”, lançado recentemente pela Editora Literare Books, também percebeu a relação entre ciúmes e falta de confiança. “Os ciumentos excessivos têm baixa autoestima pelo fato de não se sentirem queridos e amados, além de passar boa parte do tempo achando que estão sendo traídos”, diz.
E se a baixa autoestima favorece o surgimento do ciúme, a constante preocupação com o relacionamento contribui para uma pior percepção sobre si mesmo. É um ciclo vicioso.
Há ainda um outro tipo de ciúmes, explicado por Freud, que é o projetado. “Muitas vezes, a própria pessoa tem o desejo de trair, que ela nega, e projeta no outro”, explica Natália.
Desejo de controle
O perigo de tratar o ciúme como algo normal ou até positivo está na dificuldade de identificar que ele passou do ponto e se tornou prejudicial. Em seu livro, Andrea explica que o sentimento até pode ser saudável quando é pontual e não vem acompanhado da tentativa de controlar o outro. Mas, dependendo da duração e do grau de interferência na vida de ambas as partes envolvidas na relação amorosa, pode ser considerado patológico.
“O ciúme excessivo ocorre quando a pessoa acredita cegamente que está sendo traída, sem nenhuma prova concreta. Ela se baseia em situações imaginárias e vive em constante desconfiança, o que a leva a querer controlar o outro. E dificilmente são casos isolados”, explica Andrea.
O maior medo do ciumento não é ser abandonado: é ser passado para trás. Por isso, age de forma impulsiva e desequilibrada, especialmente tentando manipular o parceiro. “O controle é uma consequência do ciúme. A pessoa controla os passos, as redes, os e-mails e os pertences do outro na tentativa de desvendar uma possível traição. Algo que o faria se sentir mais seguro”, diz Andrea.
Esse tipo de comportamento é tão comum que fez um novo tipo de serviço surgir: são os perfis nas redes sociais dedicados a realizar “testes de fidelidade”. A ideia é que qualquer um possa contratar uma mulher ou um homem para paquerar o(a) parceiro(a) e, assim, ter a certeza de que não seria traído. Desde setembro de 2022, Letícia Coelho, de 23 anos, trabalha com isso.”Tenho três planos de testes, com valores diferentes.”
Ao contratá-la, a cliente passa o número do namorado ou marido e Letícia começa a flertar com o alvo, na tentativa de descobrir sua reação. “Na maioria das vezes, são mulheres que já foram traídas e estão passando por um momento difícil na relação ou estão percebendo mudanças no parceiro”, diz. “Elas querem ter certeza de que isso não é coisa da própria cabeça”, acrescenta. Caso haja reciprocidade, Letícia expõe a conversa para a contratante, que decide o que fazer com a informação. “Nem todas as meninas se separam”, conta.
“Para mim, é bem difícil dar a notícia de que o parceiro foi infiel. Eu me coloco no lugar delas. Mas, ao mesmo tempo, sei que é libertador”, afirma.
O impacto das redes sociais na desconfiança
De maneira geral, a internet facilita a insegurança do casal – seja por comparação, seja porque qualquer “curtida” pode ser mal interpretada. Um estudo realizado com 308 estudantes usuários do Facebook mostrou que quanto maior o tempo gasto na rede social, maior o sentimento de ciúme apresentado pelo participante.
“As redes sociais são um campo muito aberto para o nosso imaginário”, define Natália. “Então, eu imagino que se a pessoa curtiu, está fazendo tal coisa e pensando em alguém, quando, na verdade, tudo isso é uma fantasia minha”, exemplifica a psicanalista.
Nesse campo da fantasia, o mais grave dos tipos de ciúmes pode aflorar: o delirante. “Nele, a pessoa perde o contato com a realidade, ou seja, mesmo diante de pistas e evidências, continua acreditando na traição. Geralmente esse quadro está associado a transtornos psicóticos ou ao uso de substâncias como álcool e cocaína”, explica Andrea.
Como curar o ciúme?
Em primeiro lugar, não sinta culpa por ter esse sentimento. A culpa faz com que a gente se feche, e isso impede o uso da ferramenta mais importante de todas: o diálogo.
“O ciúme é um problema conjugal. E, diante dessa corresponsabilidade, o que proponho é uma conversa entre o casal para entender o que os dois sentem diante do ciúme. Ambos devem falar sobre a angústia que sentem, acolher o sentimento do outro sem julgamento, e mostrar disposição para superarem juntos”, incentiva Andrea.
O papo deve ser feito em um momento calmo, sem agressividade ou acusações. Deixe a onda de raiva passar e, só então, exponha os gatilhos, os sentimentos gerados e até as propostas para melhorar – lembrando que cada casal vai ter o seu combinado, dentro daquilo que é saudável para ambos. É essencial ter em mente também que as coisas não mudarão de uma hora para outra. Trata-se de um processo.
Além disso, a terapia cognitivo comportamental individual e a terapia de casal podem ajudar. O tratamento é o lugar para a pessoa desenvolver outras formas de lidar com o ciúme, a partir de descobertas sobre as origens do sentimento na sua própria história de vida.
“Diante disso, o paciente começa a compreender a si e seus comportamentos, incluindo como se valoriza e se aprecia como pessoa”, diz Andrea. Em outros casos, pode ser necessário um acompanhamento medicamentoso. “Não para o ciúme em si, mas para as comorbidades psiquiátricas associadas, tais como depressão e/ou ansiedade”, pontua.
Em seus estudos, Andrea observou que 50% dos ciumentos patológicos afirmaram já terem tentado o suicídio, com o intuito de acabar com o sofrimento. Por outro lado, em relacionamentos abusivos, o ciúme, especialmente o delirante, pode gerar violência psicológica e física.
Como o parceiro pode ajudar?
A partir do momento em que um casal encontra a fonte de ciúmes, é preciso analisar o que o outro pode estar fazendo para contribuir com isso. Ou seja, diferenciar o que é insegurança própria e o que é de fato um comportamento nocivo do(a) parceiro(a).
“Se a pessoa identificar que o problema é dela também, pode se perguntar por que precisa dessa dinâmica em uma relação”, sugere Natália. Nesse caso, a terapia também pode ajudar.
Um relacionamento amoroso saudável é pautado por confiança, leveza e admiração mútua. Quando ele traz mais dúvidas, acusações e medos do que momentos de prazer, é sinal de que algo está errado. “Se sentimos que a nossa liberdade foi tolhida ou que estamos tolhendo a liberdade alheia por insegurança, e que a relação nos traz baixa autoestima, dúvidas sobre como devemos nos comportar e até mesmo medo, é hora de repensá-la”, aconselha Andrea.