Com falta de médicos e equipamentos de proteção, País pode ter ‘apagão’ de mão de obra


No Brasil, a taxa de médicos por mil habitantes é de 2,1 e cai para menos de 1 em alguns Estados do Norte e Nordeste; hospitais também têm equipes desfalcados de profissionais de enfermagem

Por Fabiana Cambricoli e Paula Felix

Com déficit de profissionais – principalmente no SUS – e falta de equipamentos de proteção para médicos e enfermeiros, o País corre o risco de sofrer um apagão de trabalhadores da saúde caso o surto de coronavírus atinja proporções como as da Itália, Espanha e Estados Unidos.

Segundo conselhos de classe, especialistas e trabalhadores ouvidos pelo Estado, não são apenas leitos e respiradores que serão insuficientes na assistência aos pacientes infectados. Com a carência de profissionais em alguns hospitais do País e a possibilidade de contaminação e consequente afastamento de um grande número de servidores, poderão faltar especialistas na linha de frente do combate ao vírus, como vem ocorrendo em outros países.

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Médicos com equipamentos de proteção atendem paciente com covid-19 em hospital em Milão, na Itália; no Brasil, falta desse tipo de vestimenta pode colocar em risco profissionais de saúde Foto: Flavio Lo Scalzo / Reuters

O Brasil registra um índice de médicos inferior a países desenvolvidos. Enquanto a média das nações da OCDE é de 3,3 profissionais por mil habitantes, no Brasil essa taxa é de 2,1 e cai para menos de 1 em alguns Estados do Norte e Nordeste, segundo o estudo Demografia Médica de 2018, realizado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

"Nos últimos anos, com a abertura de novas faculdades, aumentamos o número de profissionais. Mas o problema não é o número geral, mas sim a distribuição geográfica no País e entre especialidades", afirma Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP e autor do Demografia Médica.

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O grande problema é que eles estão concentrados nos serviços privados. Rede pública e privada têm hoje um número semelhante de médicos, mas a rede pública atende uma parcela maior da população. Para dar certo uma estratégia de assistência, vai ter que haver uma realocação

Mario Scheffer, autor do Demografia Médica

Enfermagem defasada

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Mesmo na área de enfermagem, na qual a oferta de profissionais é maior, parte dos hospitais contrata um número de trabalhadores inferior ao preconizado pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).

Somente em fiscalizações realizadas pelo Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) neste ano em três hospitais paulistas, o órgão encontrou um déficit de 761 enfermeiros e 617 auxiliares e técnicos de enfermagem.

“Por mais que existam profissionais disponíveis no mercado, os hospitais, principalmente da rede pública, trabalham com o mínimo possível de funcionários, longe das condições ideais de qualidade e segurança para o paciente. Com a pandemia, o cenário que já era subdimensionado vai levar os trabalhadores a uma condição de exaustão”, diz Renata Pietro, presidente do Coren-SP.

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De acordo com Ederlon Rezende, membro do conselho consultivo da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), a situação é ainda pior nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI). “Falta espaço, faltam leitos, mas falta principalmente pessoal. Se tivermos alguma situação de colapso do sistema, eu diria que vai ser principalmente por falta de profissionais. Médicos e enfermeiros de outras especialidades provavelmente vão ter de ajudar no atendimento das UTIs”, comenta ele. Há Estados, como Amapá e Roraima, que têm, em todo o seu território, menos de cinco médicos intensivistas.

Faltam equipamentos de proteção

O quadro de carência de profissionais, observado antes mesmo do surto de covid-19, é agravado agora pela falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), como máscaras e luvas. O problema torna os profissionais mais suscetíveis à contaminação. Além do prejuízo para a saúde individual do funcionário, a infecção provoca baixas nas equipes de assistência.

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Apenas nesta semana, o Cofen recebeu cerca de 1,5 mil denúncias de profissionais de enfermagem relatando a falta de EPIs no trabalho. Em pesquisa iniciada nos últimos dias com médicos e ainda em curso, a Associação Médica Brasileira (AMB) recebeu pelo menos 2 mil queixas do tipo.

“Esse é um dos fatores que podem levar a um apagão de profissionais de saúde: muitos que estão na linha de frente vão adoecer. Isso é inevitável. Além disso, podemos chegar a uma situação que, mesmo com contratações extras, a gente não dê conta da alta demanda. Em outros países, eles tiveram que convocar profissionais aposentados”, diz Walkirio Costa Almeida, coordenador do Comitê de Crise Covid-19 do Cofen.

Nosso trabalho, que já é desgastante, trará um esgotamento físico e psicológico muito mais intenso com o surto.

Walkirio Costa Almeira, Coordenador do Comite de Crise Covid-19 do Cofen

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Além dos afastamentos por contaminação, há ainda casos de profissionais que entraram de licença por fazer parte de grupos de risco da doença, como idosos ou doentes crônicos.

Dados do governo chinês apontam que cerca de 3 mil profissionais da saúde se contaminaram com o coronavírus durante o surto no país asiático. Na Itália, já foram pelo menos 2,5 mil trabalhadores infectados. Mesmo entre os que tinham EPIs, houve casos de contaminação no momento da retirada do traje especial. 

No Brasil, hospitais como Albert Einstein, Sancta Maggiore, HCor e Servidor de São Paulo já registraram casos da doença entre os funcionários.

“Está faltando álcool em gel. Não tem máscara para todo mundo. Tem colegas que estão comprando touca de cabelo, máscara e avental com o dinheiro do próprio bolso”, conta Natalia (nome fictício), técnica de enfermagem de um hospital estadual da zona norte da capital. Ela não quis se identificar por medo de represálias. “A gente está postando os problemas nas redes sociais e os chefes mandam apagar”, afirma.

Preocupado com a situação, o Cofen decidiu ele próprio abrir um chamamento público para a compra de máscaras de proteção do modelo N95. “Serão R$ 10 milhões para essa compra, mas não sabemos quantas unidades poderemos comprar porque o preço está aumentando”, conta Almeida.

“Temos medo de nos contaminar e levar o vírus para a nossa família. As equipes estão assustadas”, desabafa Natália.

Ministério da Saúde e rede privada tentam reforçar equipes

Preocupados com uma possível carência de profissionais de saúde durante o pico do surto de covid-19 no País, o Ministério da Saúde e a rede privada iniciaram ações para tentar reforçar suas equipes. Entre as estratégias estão, além de contratações extras, a renovação de contratos do Mais Médicos e até convocação de voluntários.

Hospital de campanha que está sendo construído no estádio do Pacaembu Foto: Nilton Fukuda / Estadão

O governo federal já havia anunciado no início de março a abertura de edital extra do Mais Médicos para a contratação de 5,8 mil profissionais. Na última semana, decidiu ainda renovar o contrato de médicos formados no exterior que seriam desligados do programa em abril e divulgou edital para a contratação de cubanos.

Na rede privada, vários hospitais abriram processo seletivo para a contratação de profissionais de diferentes formações. O Hospital Israelita Albert Einstein abriu 1,2 mil vagas temporárias por causa do surto de coronavírus. Há postos para enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, farmacêuticos, auxiliares de farmácia, psicólogos, técnicos de raio X, além de profissionais de apoio, como assistente de atendimento, cozinheiro, auxiliar de cozinha e camareiro.

Além de reforçar a equipe de seus próprios hospitais, o Einstein tenta montar o time de funcionários que atuarão no hospital de campanha montado pela Prefeitura no Pacaembu. A unidade será gerida pela organização social do Einstein. A Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) será responsável pela administração do hospital de campanha do Anhembi e abriu 1,2 mil vagas de trabalho.

A Prevent Senior já contratou 400 profissionais extras por causa da epidemia e abrirá mil novas vagas. A operadora, focada no público idoso e com vários casos confirmados da covid-19, tem dois hospitais dedicados exclusivamente ao atendimento de pacientes contaminados pelo coronavírus.

O Sírio-Libanês abriu cem novas vagas. O Hospital Alemão Oswaldo Cruz já contratou 200 novos profissionais e está em processo seletivo para a admissão de mais 150. O A.C. Camargo Cancer Center também anunciou a contratação de 130 novos profissionais para o período de crise, a maioria técnicos de enfermagem.

Com o aumento de admissões, o Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) viu o número de interessados em emitir o registro profissional triplicar na última semana. Em apenas três dias, 676 profissionais deram entrada no pedido.

Até médicos voluntários estão sendo convocados. No Hospital São Paulo, da Unifesp, a ajuda está sendo solicitada para cumprir os plantões noturnos e de fins de semana. O Einstein também fez um cadastro de voluntários diante da procura de profissionais interessados em colaborar: até ontem, 2 mil médicos e outros 1,7 mil profissionais de saúde já haviam se cadastrado.

Com déficit de profissionais – principalmente no SUS – e falta de equipamentos de proteção para médicos e enfermeiros, o País corre o risco de sofrer um apagão de trabalhadores da saúde caso o surto de coronavírus atinja proporções como as da Itália, Espanha e Estados Unidos.

Segundo conselhos de classe, especialistas e trabalhadores ouvidos pelo Estado, não são apenas leitos e respiradores que serão insuficientes na assistência aos pacientes infectados. Com a carência de profissionais em alguns hospitais do País e a possibilidade de contaminação e consequente afastamento de um grande número de servidores, poderão faltar especialistas na linha de frente do combate ao vírus, como vem ocorrendo em outros países.

Médicos com equipamentos de proteção atendem paciente com covid-19 em hospital em Milão, na Itália; no Brasil, falta desse tipo de vestimenta pode colocar em risco profissionais de saúde Foto: Flavio Lo Scalzo / Reuters

O Brasil registra um índice de médicos inferior a países desenvolvidos. Enquanto a média das nações da OCDE é de 3,3 profissionais por mil habitantes, no Brasil essa taxa é de 2,1 e cai para menos de 1 em alguns Estados do Norte e Nordeste, segundo o estudo Demografia Médica de 2018, realizado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

"Nos últimos anos, com a abertura de novas faculdades, aumentamos o número de profissionais. Mas o problema não é o número geral, mas sim a distribuição geográfica no País e entre especialidades", afirma Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP e autor do Demografia Médica.

O grande problema é que eles estão concentrados nos serviços privados. Rede pública e privada têm hoje um número semelhante de médicos, mas a rede pública atende uma parcela maior da população. Para dar certo uma estratégia de assistência, vai ter que haver uma realocação

Mario Scheffer, autor do Demografia Médica

Enfermagem defasada

Mesmo na área de enfermagem, na qual a oferta de profissionais é maior, parte dos hospitais contrata um número de trabalhadores inferior ao preconizado pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).

Somente em fiscalizações realizadas pelo Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) neste ano em três hospitais paulistas, o órgão encontrou um déficit de 761 enfermeiros e 617 auxiliares e técnicos de enfermagem.

“Por mais que existam profissionais disponíveis no mercado, os hospitais, principalmente da rede pública, trabalham com o mínimo possível de funcionários, longe das condições ideais de qualidade e segurança para o paciente. Com a pandemia, o cenário que já era subdimensionado vai levar os trabalhadores a uma condição de exaustão”, diz Renata Pietro, presidente do Coren-SP.

De acordo com Ederlon Rezende, membro do conselho consultivo da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), a situação é ainda pior nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI). “Falta espaço, faltam leitos, mas falta principalmente pessoal. Se tivermos alguma situação de colapso do sistema, eu diria que vai ser principalmente por falta de profissionais. Médicos e enfermeiros de outras especialidades provavelmente vão ter de ajudar no atendimento das UTIs”, comenta ele. Há Estados, como Amapá e Roraima, que têm, em todo o seu território, menos de cinco médicos intensivistas.

Faltam equipamentos de proteção

O quadro de carência de profissionais, observado antes mesmo do surto de covid-19, é agravado agora pela falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), como máscaras e luvas. O problema torna os profissionais mais suscetíveis à contaminação. Além do prejuízo para a saúde individual do funcionário, a infecção provoca baixas nas equipes de assistência.

Apenas nesta semana, o Cofen recebeu cerca de 1,5 mil denúncias de profissionais de enfermagem relatando a falta de EPIs no trabalho. Em pesquisa iniciada nos últimos dias com médicos e ainda em curso, a Associação Médica Brasileira (AMB) recebeu pelo menos 2 mil queixas do tipo.

“Esse é um dos fatores que podem levar a um apagão de profissionais de saúde: muitos que estão na linha de frente vão adoecer. Isso é inevitável. Além disso, podemos chegar a uma situação que, mesmo com contratações extras, a gente não dê conta da alta demanda. Em outros países, eles tiveram que convocar profissionais aposentados”, diz Walkirio Costa Almeida, coordenador do Comitê de Crise Covid-19 do Cofen.

Nosso trabalho, que já é desgastante, trará um esgotamento físico e psicológico muito mais intenso com o surto.

Walkirio Costa Almeira, Coordenador do Comite de Crise Covid-19 do Cofen

Além dos afastamentos por contaminação, há ainda casos de profissionais que entraram de licença por fazer parte de grupos de risco da doença, como idosos ou doentes crônicos.

Dados do governo chinês apontam que cerca de 3 mil profissionais da saúde se contaminaram com o coronavírus durante o surto no país asiático. Na Itália, já foram pelo menos 2,5 mil trabalhadores infectados. Mesmo entre os que tinham EPIs, houve casos de contaminação no momento da retirada do traje especial. 

No Brasil, hospitais como Albert Einstein, Sancta Maggiore, HCor e Servidor de São Paulo já registraram casos da doença entre os funcionários.

“Está faltando álcool em gel. Não tem máscara para todo mundo. Tem colegas que estão comprando touca de cabelo, máscara e avental com o dinheiro do próprio bolso”, conta Natalia (nome fictício), técnica de enfermagem de um hospital estadual da zona norte da capital. Ela não quis se identificar por medo de represálias. “A gente está postando os problemas nas redes sociais e os chefes mandam apagar”, afirma.

Preocupado com a situação, o Cofen decidiu ele próprio abrir um chamamento público para a compra de máscaras de proteção do modelo N95. “Serão R$ 10 milhões para essa compra, mas não sabemos quantas unidades poderemos comprar porque o preço está aumentando”, conta Almeida.

“Temos medo de nos contaminar e levar o vírus para a nossa família. As equipes estão assustadas”, desabafa Natália.

Ministério da Saúde e rede privada tentam reforçar equipes

Preocupados com uma possível carência de profissionais de saúde durante o pico do surto de covid-19 no País, o Ministério da Saúde e a rede privada iniciaram ações para tentar reforçar suas equipes. Entre as estratégias estão, além de contratações extras, a renovação de contratos do Mais Médicos e até convocação de voluntários.

Hospital de campanha que está sendo construído no estádio do Pacaembu Foto: Nilton Fukuda / Estadão

O governo federal já havia anunciado no início de março a abertura de edital extra do Mais Médicos para a contratação de 5,8 mil profissionais. Na última semana, decidiu ainda renovar o contrato de médicos formados no exterior que seriam desligados do programa em abril e divulgou edital para a contratação de cubanos.

Na rede privada, vários hospitais abriram processo seletivo para a contratação de profissionais de diferentes formações. O Hospital Israelita Albert Einstein abriu 1,2 mil vagas temporárias por causa do surto de coronavírus. Há postos para enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, farmacêuticos, auxiliares de farmácia, psicólogos, técnicos de raio X, além de profissionais de apoio, como assistente de atendimento, cozinheiro, auxiliar de cozinha e camareiro.

Além de reforçar a equipe de seus próprios hospitais, o Einstein tenta montar o time de funcionários que atuarão no hospital de campanha montado pela Prefeitura no Pacaembu. A unidade será gerida pela organização social do Einstein. A Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) será responsável pela administração do hospital de campanha do Anhembi e abriu 1,2 mil vagas de trabalho.

A Prevent Senior já contratou 400 profissionais extras por causa da epidemia e abrirá mil novas vagas. A operadora, focada no público idoso e com vários casos confirmados da covid-19, tem dois hospitais dedicados exclusivamente ao atendimento de pacientes contaminados pelo coronavírus.

O Sírio-Libanês abriu cem novas vagas. O Hospital Alemão Oswaldo Cruz já contratou 200 novos profissionais e está em processo seletivo para a admissão de mais 150. O A.C. Camargo Cancer Center também anunciou a contratação de 130 novos profissionais para o período de crise, a maioria técnicos de enfermagem.

Com o aumento de admissões, o Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) viu o número de interessados em emitir o registro profissional triplicar na última semana. Em apenas três dias, 676 profissionais deram entrada no pedido.

Até médicos voluntários estão sendo convocados. No Hospital São Paulo, da Unifesp, a ajuda está sendo solicitada para cumprir os plantões noturnos e de fins de semana. O Einstein também fez um cadastro de voluntários diante da procura de profissionais interessados em colaborar: até ontem, 2 mil médicos e outros 1,7 mil profissionais de saúde já haviam se cadastrado.

Com déficit de profissionais – principalmente no SUS – e falta de equipamentos de proteção para médicos e enfermeiros, o País corre o risco de sofrer um apagão de trabalhadores da saúde caso o surto de coronavírus atinja proporções como as da Itália, Espanha e Estados Unidos.

Segundo conselhos de classe, especialistas e trabalhadores ouvidos pelo Estado, não são apenas leitos e respiradores que serão insuficientes na assistência aos pacientes infectados. Com a carência de profissionais em alguns hospitais do País e a possibilidade de contaminação e consequente afastamento de um grande número de servidores, poderão faltar especialistas na linha de frente do combate ao vírus, como vem ocorrendo em outros países.

Médicos com equipamentos de proteção atendem paciente com covid-19 em hospital em Milão, na Itália; no Brasil, falta desse tipo de vestimenta pode colocar em risco profissionais de saúde Foto: Flavio Lo Scalzo / Reuters

O Brasil registra um índice de médicos inferior a países desenvolvidos. Enquanto a média das nações da OCDE é de 3,3 profissionais por mil habitantes, no Brasil essa taxa é de 2,1 e cai para menos de 1 em alguns Estados do Norte e Nordeste, segundo o estudo Demografia Médica de 2018, realizado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).

"Nos últimos anos, com a abertura de novas faculdades, aumentamos o número de profissionais. Mas o problema não é o número geral, mas sim a distribuição geográfica no País e entre especialidades", afirma Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP e autor do Demografia Médica.

O grande problema é que eles estão concentrados nos serviços privados. Rede pública e privada têm hoje um número semelhante de médicos, mas a rede pública atende uma parcela maior da população. Para dar certo uma estratégia de assistência, vai ter que haver uma realocação

Mario Scheffer, autor do Demografia Médica

Enfermagem defasada

Mesmo na área de enfermagem, na qual a oferta de profissionais é maior, parte dos hospitais contrata um número de trabalhadores inferior ao preconizado pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).

Somente em fiscalizações realizadas pelo Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) neste ano em três hospitais paulistas, o órgão encontrou um déficit de 761 enfermeiros e 617 auxiliares e técnicos de enfermagem.

“Por mais que existam profissionais disponíveis no mercado, os hospitais, principalmente da rede pública, trabalham com o mínimo possível de funcionários, longe das condições ideais de qualidade e segurança para o paciente. Com a pandemia, o cenário que já era subdimensionado vai levar os trabalhadores a uma condição de exaustão”, diz Renata Pietro, presidente do Coren-SP.

De acordo com Ederlon Rezende, membro do conselho consultivo da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), a situação é ainda pior nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI). “Falta espaço, faltam leitos, mas falta principalmente pessoal. Se tivermos alguma situação de colapso do sistema, eu diria que vai ser principalmente por falta de profissionais. Médicos e enfermeiros de outras especialidades provavelmente vão ter de ajudar no atendimento das UTIs”, comenta ele. Há Estados, como Amapá e Roraima, que têm, em todo o seu território, menos de cinco médicos intensivistas.

Faltam equipamentos de proteção

O quadro de carência de profissionais, observado antes mesmo do surto de covid-19, é agravado agora pela falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), como máscaras e luvas. O problema torna os profissionais mais suscetíveis à contaminação. Além do prejuízo para a saúde individual do funcionário, a infecção provoca baixas nas equipes de assistência.

Apenas nesta semana, o Cofen recebeu cerca de 1,5 mil denúncias de profissionais de enfermagem relatando a falta de EPIs no trabalho. Em pesquisa iniciada nos últimos dias com médicos e ainda em curso, a Associação Médica Brasileira (AMB) recebeu pelo menos 2 mil queixas do tipo.

“Esse é um dos fatores que podem levar a um apagão de profissionais de saúde: muitos que estão na linha de frente vão adoecer. Isso é inevitável. Além disso, podemos chegar a uma situação que, mesmo com contratações extras, a gente não dê conta da alta demanda. Em outros países, eles tiveram que convocar profissionais aposentados”, diz Walkirio Costa Almeida, coordenador do Comitê de Crise Covid-19 do Cofen.

Nosso trabalho, que já é desgastante, trará um esgotamento físico e psicológico muito mais intenso com o surto.

Walkirio Costa Almeira, Coordenador do Comite de Crise Covid-19 do Cofen

Além dos afastamentos por contaminação, há ainda casos de profissionais que entraram de licença por fazer parte de grupos de risco da doença, como idosos ou doentes crônicos.

Dados do governo chinês apontam que cerca de 3 mil profissionais da saúde se contaminaram com o coronavírus durante o surto no país asiático. Na Itália, já foram pelo menos 2,5 mil trabalhadores infectados. Mesmo entre os que tinham EPIs, houve casos de contaminação no momento da retirada do traje especial. 

No Brasil, hospitais como Albert Einstein, Sancta Maggiore, HCor e Servidor de São Paulo já registraram casos da doença entre os funcionários.

“Está faltando álcool em gel. Não tem máscara para todo mundo. Tem colegas que estão comprando touca de cabelo, máscara e avental com o dinheiro do próprio bolso”, conta Natalia (nome fictício), técnica de enfermagem de um hospital estadual da zona norte da capital. Ela não quis se identificar por medo de represálias. “A gente está postando os problemas nas redes sociais e os chefes mandam apagar”, afirma.

Preocupado com a situação, o Cofen decidiu ele próprio abrir um chamamento público para a compra de máscaras de proteção do modelo N95. “Serão R$ 10 milhões para essa compra, mas não sabemos quantas unidades poderemos comprar porque o preço está aumentando”, conta Almeida.

“Temos medo de nos contaminar e levar o vírus para a nossa família. As equipes estão assustadas”, desabafa Natália.

Ministério da Saúde e rede privada tentam reforçar equipes

Preocupados com uma possível carência de profissionais de saúde durante o pico do surto de covid-19 no País, o Ministério da Saúde e a rede privada iniciaram ações para tentar reforçar suas equipes. Entre as estratégias estão, além de contratações extras, a renovação de contratos do Mais Médicos e até convocação de voluntários.

Hospital de campanha que está sendo construído no estádio do Pacaembu Foto: Nilton Fukuda / Estadão

O governo federal já havia anunciado no início de março a abertura de edital extra do Mais Médicos para a contratação de 5,8 mil profissionais. Na última semana, decidiu ainda renovar o contrato de médicos formados no exterior que seriam desligados do programa em abril e divulgou edital para a contratação de cubanos.

Na rede privada, vários hospitais abriram processo seletivo para a contratação de profissionais de diferentes formações. O Hospital Israelita Albert Einstein abriu 1,2 mil vagas temporárias por causa do surto de coronavírus. Há postos para enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, farmacêuticos, auxiliares de farmácia, psicólogos, técnicos de raio X, além de profissionais de apoio, como assistente de atendimento, cozinheiro, auxiliar de cozinha e camareiro.

Além de reforçar a equipe de seus próprios hospitais, o Einstein tenta montar o time de funcionários que atuarão no hospital de campanha montado pela Prefeitura no Pacaembu. A unidade será gerida pela organização social do Einstein. A Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) será responsável pela administração do hospital de campanha do Anhembi e abriu 1,2 mil vagas de trabalho.

A Prevent Senior já contratou 400 profissionais extras por causa da epidemia e abrirá mil novas vagas. A operadora, focada no público idoso e com vários casos confirmados da covid-19, tem dois hospitais dedicados exclusivamente ao atendimento de pacientes contaminados pelo coronavírus.

O Sírio-Libanês abriu cem novas vagas. O Hospital Alemão Oswaldo Cruz já contratou 200 novos profissionais e está em processo seletivo para a admissão de mais 150. O A.C. Camargo Cancer Center também anunciou a contratação de 130 novos profissionais para o período de crise, a maioria técnicos de enfermagem.

Com o aumento de admissões, o Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) viu o número de interessados em emitir o registro profissional triplicar na última semana. Em apenas três dias, 676 profissionais deram entrada no pedido.

Até médicos voluntários estão sendo convocados. No Hospital São Paulo, da Unifesp, a ajuda está sendo solicitada para cumprir os plantões noturnos e de fins de semana. O Einstein também fez um cadastro de voluntários diante da procura de profissionais interessados em colaborar: até ontem, 2 mil médicos e outros 1,7 mil profissionais de saúde já haviam se cadastrado.

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