Apesar dos sucessivos recordes de mortes pela covid-19 no País nas últimas semanas, ao menos 18 Estados estão flexibilizando medidas de isolamento social. As mudanças recentes incluem a liberação ampla das atividades econômicas, como em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que adotam só o toque de recolher, e a permissão de funcionamento do comércio com restrições de horários, no Ceará. Nesta semana, São Paulo permitiu a retomada de aulas presenciais e de torneios esportivos, além dos serviços de drive-thru e take away no comércio. Especialistas criticam a reabertura no momento de alta de mortes e casos (a média diária de óbitos supera 3 mil vítimas) - parte deles defende o lockdown.
Entre os Estados que adotaram algum tipo de flexibilização das medidas para conter a disseminação da pandemia no último mês estão Alagoas, Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Roraima, Santa Catarina, São Paulo, Tocantins, além do Distrito Federal. Nenhum governador adotou o lockdown mais rigoroso - a exemplo de Araraquara (SP), que conseguiu frear o contágio com restrições rigorosas, com o fechamento até de mercados.
Embora represente um recorte de apenas um setor da economia, pesquisa da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) também exemplifica a queda das restrições. Atualmente, só três Estados mantêm fechados para o público estabelecimentos desse setor: Amapá, Minas e São Paulo. Em todos os outros, os locais estão abertos ou abertos parcialmente. De acordo com os especialistas, aglomerações noturnas estão entre as principais causas da disseminação do novo coronavírus.
Questionados pelo Estadão, representantes das secretarias estaduais de Saúde argumentam que municípios têm autonomia em flexibilizações locais. “O Estado mantém a bandeira preta (a mais restritiva), mas o plano de combate à pandemia permite que os municípios com melhores condições sanitárias possam ter restrições menores. Mas não é para abrir tudo”, explica Bruno Naundor, diretor de Auditoria do SUS da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul.
Das cerca de 22 mil mortes já registradas no Estado, 7350 foram registradas em março, ou 35% do total. Durante uma parte do mês, o governo suspendeu esse modelo de cogestão, que dá autonomia às prefeituras. Hoje, os números permanecem elevados: a ocupação é de 86% dos leitos de UTI no Sistema Único de Saúde (SUS) e, na rede privada, de 102%.
Na Bahia, esse movimento municipal causa preocupação. O secretário da Saúde, Fabio Villas-Boas, explica que o Estado conseguiu conter as taxas de transmissão da doença com medidas de restrição, incluindo o toque de recolher. O patamar de ocupação de UTIs, porém, segue elevado: 85%. “É temerário flexibilizar restrições de forma unilateral. Isso tende a gerar movimentação populacional na direção do município em abertura e aumento de contágio”, alerta.
Em Mato Grosso do Sul, todas as atividades estão liberadas – para conter a disseminação do coronavírus, a principal medida é apenas toque de recolher das 5h às 21h. Novamente, o governo estadual cita a responsabilidade municipal. "O governo de Mato Grosso já estipulou e divulgou as formas como os municípios devem agir em relação às medidas restritivas de enfrentamento à covid-19, como isolamento e distanciamento social. Portanto, diante deste contexto e das orientações do governo, cabe às gestões municipais a decisão de flexibilização do distanciamento e isolamento social, pois a execução de medidas restritivas é uma atribuição dos municípios", diz nota enviada pela pasta da Saúde sul-mato-grossense.
O Rio planeja uma abertura mais ampla. Após duas semanas fechados, o governador em exercício do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PSC), autorizou reabrir bares, lanchonetes, restaurantes e shoppings, que voltaram a funcionar na sexta-feira, dia 9. Espaços culturais e estabelecimentos de lazer, como cinemas, teatros e bibliotecas, também podem funcionar. O horário de todos esses estabelecimentos, no entanto, é reduzido. A cidade continua com toque de recolher das 23h às 5h e as praias, cachoeiras e parques seguem fechados. Nas praias, estão permitidos apenas atividades individuais na água e na areia, porém a prefeitura já estuda autorizar em breve a prática de esportes coletivos em horário reduzido. Shows, eventos e festas continuam proibidos.
Desde o início da pandemia, em março do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro tem sido forte crítico das medidas de isolamento, sob o argumento do risco de desemprego alto. A redução dos contatos sociais é recomendada por especialistas e teve êxito em outros países, como Reino Unido e Portugal, onde as taxas de contágio caíram após o fechamento da economia. Bolsonaro chegou a entrar na Justiça contra os governos do Rio Grande do Sul, Distrito Federal e Bahia para derrubar decretos que previam toque de recolher - a ação foi negada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) sem análise de mérito.
Especialistas condenam flexibilização
O número elevado de casos e de mortes de covid nas últimas semanas indica que este não é o melhor momento de reabertura da economia, mesmo que gradual. A opinião é do epidemiologista Eliseu Alves Waldman. professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). “Os dados mostram que não é o momento de abrir. O grande problema é que o País não tem coordenação única. Com isso, é difícil manter medidas restritivas por longo prazo em função das consequências econômicas. Elas não são pequenas”, afirma.
Domingos Alves, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, compartilha a visão negativa. “Os governadores estão contradizendo os cientistas. Não tivemos queda significativa que justificasse a passagem da fase emergencial para a fase vermelha em São Paulo. O mês de abril será pior que março. Passamos de uma crise sanitária para uma crise funerária”, critica.
"Existem estudos que apontam que o lockdown é tão eficiente quanto à vacinação para conter a disseminação do vírus", diz Flávio Fonseca, virologista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “O principal responsável por esse cenário é a população brasileira que, de uma forma geral, não seguiu com rigor os três pilares da prevenção: evitar aglomeração, promover o distanciamento social e o uso de máscara. Podemos discutir os fatores que levaram a esse comportamento, como a falta de envolvimento do governo central, mas a população nunca aderiu de fato à prevenção”, opina.