SÃO PAULO - Os cartórios brasileiros registraram alta de 43% no número de mortes por causa indeterminada notificadas no País desde o início da pandemia de covid-19 em território brasileiro. Os dados, antecipados pelo Estado, foram divulgados nesta segunda-feira, 27, em novo painel do Portal da Transparência do Registro Civil, mantido pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). Segundo especialistas, o aumento de óbitos sem causa definida pode estar associado a vítimas de coronavírus que morreram sem ter o diagnóstico da doença.
A alta refere-se ao período de 26 de fevereiro, data em que o primeiro caso de infecção por coronavírus foi registrado no Brasil, até 17 de abril. O painel traz os dados em tempo real, mas, como os cartórios têm até dez dias para repassar os registros para a Central de Informações do Registro Civil (CRC Nacional), a reportagem optou por um recorte até dez dias atrás.
Em 2020, o País teve 1.329 mortes por causa indeterminada no periodo mencionado. Em 2019, 925 óbitos do tipo foram registrados pelos cartórios no mesmo intervalo. De acordo com especialistas, o dado pode ser mais um indício de subnotificação do número de óbitos por coronavírus no País. Com a falta de testes e a alta demanda sobre o sistema de saúde em algumas regiões, doentes podem estar morrendo sem ter uma avaliação médica.
Para Fátima Marinho, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e integrante do grupo de especialistas que auxiliou a Arpen-Brasil na elaboração do painel, é provável que o aumento de mortes por causa indefinida tenha como uma das razões a morte de pessoas por covid-19 que não tiveram acesso ao sistema de saúde. "Em uma situação de uma doença nova, uma pandemia, a gente espera um aumento de mortes em casa, sem que a pessoa sequer consiga ter atendimento médico. Isso pode estar acontecendo agora", explica.
Pneumologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a médica Margareth Dalcomo diz acreditar que a maioria dos registros está relacionada a mortes por covid-19 não identificadas. "Pode até ser que a pessoa tenha ido a uma unidade de saúde, mas a gravidade não tenha sido notada a tempo. Há casos de pessoas que pioram de forma abrupta, principalmente aquelas com alguma doença crônica ou condição que aumente o risco de complicação", afirma a especialista.
Se analisadas as mortes também por faixa etária, o aumento de óbitos por causa indeterminada é maior entre idosos, principal grupo de risco para complicações do coronavírus. O número de mortes sem causa definida entre pessoas com idade a partir de 60 anos passou de 568 em 2019 para 879 em 2020, alta de 54,8%. Já entre indivíduos com menos de 60 anos, a variação foi de 30,5% - subiu de 321 para 419 no mesmo intervalo de tempo.
Fátima diz que outra razão que pode estar impactando na alta de mortes por causas indeterminadas é o provável crescimento de óbitos por outras causas que não estão chegando aos hospitais pela dificuldade de conseguir leitos no meio da pandemia ou pelo eventual medo de pacientes em procurar unidades de saúde e se contaminarem. "Provavelmente teremos um aumento de mortes por infarto, AVC e outros problemas registrados em casa porque as pessoas estão adiando a ida ao pronto-socorro ou tendo que disputar leitos com pacientes com covid-19", diz ela.
Para Margareth, mesmo em casos de mortes em casa, ocorridas antes de qualquer assistência médica, é fundamental que seja realizado um teste após o óbito para que seja conhecida a causa real do falecimento. "Não tenho dúvidas que um porcentual muito grande de mortes sem causa definida são por covid. Todas essas causas, tanto mortes por problemas respiratórios quanto causas indeterminadas, precisarão ser revisitadas para que possamos determinar o real impacto epidemiológico que o coronavírus causou no Brasil", defende.
Salto em mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave
O portal da transparência mantido pela Arpen-Brasil também passa a disponibilizar o número de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que registrou aumento de 680% entre 26 de fevereiro e 17 de abril de 2019 e o mesmo período de 2020. Os números contemplam casos dessa condição respiratória em que não foi especificado o agente causador da síndrome, que pode ser coronavírus, mas também influenza ou outro vírus respiratório.
De acordo com o portal, o número de mortes do tipo passou de 156 para 1.217 no período citado. A alta nos óbitos por SRAG não especificada registradas em cartórios seriam outro indício de subnotificação. Ela é ainda maior em Estados com muitos casos da doença. No Amazonas, o aumento foi de 1.214%. No Ceará, de 3.828%. Em São Paulo, Estado com o maior número de infectados, o crescimento observado foi de 916%.
Outros dados anteriormente divulgados pela Arpen-Brasil mostravam indícios de que o número de mortes por coronavírus no Brasil pode ser maior que o computado oficialmente pelo Ministério da Saúde. Como revelou o Estado em 13 de abril, o número de registros de mortes por insuficiência respiratória e pneumonia no Brasil teve um salto em março, contrariando tendência de queda que vinha sendo observada nos meses de janeiro e fevereiro. Foram 2.239 mortes a mais em março de 2020 do que no mesmo período de 2019.
O número de mortes suspeitas ou confirmadas por covid-19 registradas nos cartórios também vem se mostrando maior do que as registradas pelo Ministério da Saúde (que considera só os óbitos confirmados por coronavírus). Na tarde desta segunda, por exemplo, os cartórios já registravam 4.839 vítimas com confirmação ou suspeita da doença. Já o Ministério contabilizava 4.543 registros.
Para Luis Carlos Vendramin Júnior, vice-presidente da Arpen-Brasil, a disponibilização dos dados dos cartórios ajudam a entender o avanço da epidemia. "Como temos esses dados com atualização diária, avaliamos que ampliar a transparência e divulgar dados também sobre mortes por SRAG e causas indeterminadas, além das que já vínhamos divulgando, vai auxiliar tanto o poder público quanto a imprensa e a população em geral na análise de números", destacou.
'Pacientes estão esperando em casa'
A neurologista Gisele Sampaio, do Einstein, coordenadora da Rede Brasil AVC, afirma os médicos estão preocupados porque os pacientes não estão chegando com infarto ou AVC. “Há alguns relatos de redução em mais 70%. Esses pacientes estão esperando em casa, com medo da covid-19, ou já chegando ao hospital em quadro grave”, diz.
“Há uma sensação em todo o mundo que o tratamento de AVC está sofrendo prejuízo do ponto de vista do melhor tratamento por causa da pandemia. As pessoas estão deixando de ir ao hospital com a velocidade, agilidade que deveriam. Com isso, os tratamentos de fase aguda, que funcionam nas primeiras horas, não estão sendo feitos. A pessoa chega tardiamente e a sequela é maior”, complementa o neurologista Eli Faria Evaristo, gerente médico do protocolo AVC no Sírio. /COLABOROU GIOVANA GIRARDI