Quando uma família de classe média estabelece prioridades orçamentárias entre as inúmeras demandas dos filhos (garantir o curso de Inglês do mais velho ou a natação do mais novo?), ela aplica um dos critérios usados para decidir se um novo remédio deve ou não ser oferecido no Sistema Único de Saúde (SUS). Esse critério é aquilo que os economistas chamam de custo de oportunidade. Ou seja: o custo de um produto não é só o que se gasta para adquiri-lo. É também o que se deixou de ganhar por não ter usado o dinheiro da melhor forma possível.
No Brasil, esse e outros conceitos econômicos aplicados à saúde são discutidos nas reuniões da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), responsável por avaliar evidências científicas e fazer recomendações de compra de medicamentos e outros produtos ao Ministério da Saúde. Nesta semana, foi esse órgão que rejeitou a oferta no SUS do chamado kit covid, que reúne remédios como hidroxicloroquina e azitromicina, cuja ineficácia foi comprovada em estudos científicos. O presidente Jair Bolsonaro, porém, é defensor desses medicamentos.
Cada avaliação resulta em escolhas complexas porque, além de questões científicas e orçamentárias, envolvem dilemas de vida e morte. Pela primeira vez desde sua criação, há uma década, a Conitec mais desaconselhou do que recomendou a incorporação de novos recursos no SUS em 2021.
Neste ano, houve 36 recomendações de não incorporação, 24 de incorporação e uma de exclusão. O oposto do que ocorreu ao longo da história da comissão. Nos últimos dez anos, a maior parte das demandas analisadas (56,8%) resultou em recomendação de adoção da tecnologia pelo SUS. A Conitec faz a recomendação, mas o Executivo não é obrigado a acatar. Isso significa, portanto, que o Ministério da Saúde ainda pode decidir pela inclusão do kit covid, por exemplo.
Uma das explicações para o aumento das recusas de incorporação é o fato de que muitas das tecnologias avaliadas neste ano foram criadas ou adaptadas com o objetivo de dar uma resposta rápida à pandemia de covid-19. No momento das avaliações, havia poucos estudos disponíveis e incertezas com relação à magnitude dos benefícios à saúde, segundo as avaliações da Conitec.
“Nosso papel é fazer a melhor avaliação possível, de acordo com os critérios estabelecidos e pensar no custo de oportunidade. Se optarmos por uma tecnologia, outras não serão incorporadas porque o cobertor é curto”, diz Vania Canuto, coordenadora da Conitec e diretora do Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias e Inovação em Saúde do Ministério da Saúde.
“Procuramos fazer o melhor uso dos recursos públicos, mas a impopularidade é uma característica da Conitec e de agências semelhantes em outros países”, afirma a economista. Segundo ela, é natural que existam insatisfações e pressões sociais em um mercado multimilionário que envolve fornecedores, pacientes e outros interessados. “Cada doente vai lutar para que sua enfermidade individual receba mais medicamentos e outras tecnologias”, diz.
'Nem tudo que a gente acha que é bom é bom de verdade', diz especialista
As decisões da comissão são embasadas em um parecer técnico feito pelos núcleos de avaliação de tecnologia em saúde (Nats), em geral, ligados a universidades públicas. Esses núcleos levantam as evidências científicas disponíveis e produzem um relatório. Ele é enviado para a análise dos membros do plenário da Conitec. No dia da votação, ocorre uma longa discussão técnica, realizada virtualmente e com vídeos divulgados na íntegra.
A decisão sobre incorporar ou não um produto envolve critérios como eficácia, efetividade (o produto traz benefícios em condições normais de uso ou apenas em estudos bem controlados e em situações específicas?), segurança, custo e benefícios da nova tecnologia.
“Muitas das demandas não são aprovadas porque não existe demonstração de eficácia. A população precisa dessa alfabetização científica. Nem tudo o que a gente acha que é bom é bom de verdade”, afirma o cardiologista Luís Correia, professor adjunto da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, em Salvador.
No plenário da Conitec, o professor de Medicina baseada em evidências representa o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Segundo ele, a população sofre mais ao pensar que alguma coisa não é oferecida no SUS só porque é cara. “Ela precisa saber que, em boa parte das vezes, uma nova tecnologia traz um ganho marginal, um ‘ganhozinho’ a mais”, afirma. “Não é a panaceia propagandeada por muitos dos médicos”.
A polêmica em torno das diretrizes para tratamento ambulatorial dos pacientes com covid demonstra a importância da comissão técnica se manter imune a pressões políticas. No fim de outubro, terminou empatada a votação do parecer técnico que contraindicava o uso de cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina e outras drogas sem eficácia do kit covid.
Cinco dos sete servidores do Ministério da Saúde que participam do plenário da Conitec votaram contra a aprovação do documento. O outro voto contrário à aprovação do parecer foi do representante do Conselho Federal de Medicina (CFM). Em seguida, as diretrizes foram levadas à consulta pública.
Em uma reunião extraordinária realizada nesta terça-feira, 7, a Conitec aprovou essas diretrizes contra o uso ambulatorial do kit covid para atendimento de pacientes com quadros mais leves. O uso hospitalar das drogas ineficazes contra a doença já havia sido contraindicado pela comissão há alguns meses.
“Poucas terapias medicamentosas mostraram-se eficazes no tratamento ambulatorial de paciente com covid-19”, diz o relatório aprovado pelo grupo. “À exceção dos anticorpos monoclonais que apresentaram algum benefício, outras terapias não mostraram benefício significativo na prevenção de desfechos clinicamente relevantes, como necessidade de hospitalização, evolução para ventilação mecânica e mortalidade”, menciona o texto.
No saldo final, o placar ficou em sete votos contrários ao kit covid e seis votos favoráveis. O documento final aprovado será enviado ao secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Helio Angotti.
“É fundamental que a Conitec não seja afetada por questões político-partidárias”, afirma Nelson Mussolini, presidente executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma). Como representante do Conselho Nacional de Saúde (CNS), ele votou a favor da aprovação das diretrizes (e contra, portanto, o kit covid).
“Esse episódio foi ruim porque ele coloca em xeque as posições da Conitec”, diz Mussolini. “A sociedade fica com impressão de que a comissão pode ser pressionada, mas todas as recomendações feitas pela Conitec até hoje são baseadas em parâmetros eminentemente técnicos”, afirma.
Na reunião desta terça, a comissão também discutiu as contribuições da sociedade em consulta pública sobre a incorporação do Regn-Cov2 (casirivimabe e imdevimabe) para o tratamento de infectados pelo vírus da covid, a fim de evitar o agravamento da doença e as internações. Foi a segunda vez que a incorporação do medicamento passou por análise da Conitec, que manteve a recomendação de não incorporação da droga no SUS. Em ambas, a comissão apontou as limitações dos estudos clínicos disponíveis e considerou que persistem as incertezas sobre os benefícios de usar o medicamento no SUS.
Decisões desagradam farmacêuticas e famílias de pacientes
Muitas das decisões são criticadas pelas empresas farmacêuticas e pelas famílias de pacientes que têm alta expectativa em relação aos novos medicamentos. “Todas as indústrias gostariam que seus produtos fossem incorporados, por isso, surgem críticas ao trabalho da comissão”, diz Mussolini.
Segundo ele, nos últimos cinco anos, o sistema de aprovação ou rejeição de uma nova tecnologia no SUS se tornou mais profissional e efetivo. “No início, a Conitec desafiava o registro do produto no país ao dizer que ele não era eficaz ou seguro”, afirma ele. “A comissão evoluiu e não faz mais isso. Se o remédio tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), é porque a eficácia e a segurança foram comprovadas”, afirma.
Mussolini salienta que a Conitec precisa fazer escolhas porque o orçamento do SUS é engessado. “Ninguém pode dizer, no entanto, que a comissão deixou de incorporar um produto que era custo-efetivo e havia clara demonstração de que ele era muito melhor que o existente no mercado”, diz Mussolini. “Isso não acontece”.
Outros países seguem modelo semelhante
Países com sistemas públicos de saúde como Reino Unido, Canadá e Austrália têm agências de avaliação de tecnologia em saúde (ATS) para decidir quais produtos devem ser oferecidos à população. É uma forma de evitar que o dinheiro público seja investido em itens que elevarão o custo do sistema, sem trazer ganhos expressivos de saúde à população.
A Conitec foi inspirada no britânico National Institute for Health and Care Excellence (Nice), um instituto forte e independente. Enquanto ele determina o que deve ser oferecido à população, a Conitec apenas faz recomendações. O Ministério da Saúde pode acatá-las ou não. Na maioria das vezes, a pasta segue o que foi recomendado pela comissão.
Em todo o mundo, o alto impacto orçamentário das novas drogas é um dos fatores que compromete a rápida incorporação dos produtos. “Algumas vezes uma tecnologia pode ser custo-efetiva, mas tem alto impacto orçamentário se for oferecida para um grande número de pessoas”, afirma a economista Vania Canuto, coordenadora da Conitec.
Em outras situações, ocorre o inverso. “Um medicamento para uma doença rara pode não ser tão custo-efetivo por ter um preço unitário elevado e um benefício limitado, mas o impacto orçamentário é menor porque o número de pacientes que precisam do remédio é pequeno”, diz ela.
O recorde de medicamento mais caro do mundo tem sido quebrado cada vez mais rápido. “As novas tecnologias estão muito mais caras. Tem sido um desafio para todos os sistemas de saúde do mundo incorporar medicamentos que custam cerca de US$ 2 milhões”, diz Vania. Atualmente esse é o preço do Zolgensma, terapia gênica aplicada em dose única para o tratamento da atrofia muscular espinhal (AME), nos Estados Unidos.
Aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no ano passado, o tratamento passou por avaliação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). Ela definiu que o preço máximo para comercialização no Brasil deve ser de R$ 2,8 milhões. Um projeto de lei em tramitação no Congresso pretende obrigar o SUS a fornecer essa e outras terapias gênicas para AME, sem que seja necessária a avaliação da Conitec.