O Estado do Amazonas foi o primeiro a ver seu sistema de saúde entrar em colapso na pandemia do novo coronavírus, em abril. As cenas que mostravam câmaras frigoríficas nos hospitais e o enterro das vítimas da covid-19 em trincheiras rodaram o mundo. Desde junho, quando Manaus registrou queda no número de novos casos e o Estado anunciou os planos de reabertura econômica, a situação parecia ter melhorado.
Com novos recordes de internação e aumento de 193% nos sepultamentos de dezembro para janeiro, o prefeito da capital, David Almeida (Avante), decretou estado de emergência por 180 dias. O ápice dessa nova crise foi visto nesta quinta-feira, 14, quando o fim do estoque de oxigênio em unidades hospitalares levou pacientes internados à morte por asfixia. Para entender como a capital do Amazonas voltou a essa situação, o Estadão montou uma linha do tempo da pandemia na cidade. Confira:
Colapso
Em abril, em meio ao aumento de casos de covid-19 e das taxas de internação, o sistema de saúde de Manaus entrou em colapso. Além de não ter condições de receber e tratar todos os doentes pelo coronavírus, os hospitais do Estado precisaram ser equipados com contêineres frigoríficos para acondicionamento de corpos das vítimas.
Em 21 de abril, dos 106 sepultamentos realizados na cidade, 36,5% foram de pessoas que morreram em casa, por não terem tido acesso ao atendimento hospitalar. A mesma situação foi registrada nos dias seguintes. Em comparação com o mesmo período antes da pandemia, o Amazonas registrou aumento de 94% das mortes ocorridas em casa.
O caos na cidade também se espalhou pelos cemitérios. Antes da pandemia, a média era de 30 enterros diários. Durante a pandemia, o pico chegou a 167 sepultamentos, no dia 26 de abril. Com o número elevado de mortes, os corpos passaram a ser enterrados em trincheiras.
A cidade registrou algumas das cenas mais impactantes da pandemia. Em abril, vídeos viralizaram nas redes sociais com registros de pacientes e mortos dividindo o mesmo espaço em uma unidade de saúde, e de um paciente respirando numa câmara improvisada e feita de saco plástico.
Reabertura
No dia 1º de junho, o governo estadual liberou a reabertura gradual do comércio. Duas semanas depois, os números do Estado apontaram a redução dos índices de novos casos, óbitos e da taxa de ocupação de leitos por covid-19. Com esses dados, a prefeitura de Manaus desativou o hospital de campanha municipal, após quase dois meses de funcionamento. Foi o início da volta à “normalidade” na capital.
Em julho, com os registros de novos casos ainda em queda, o governo do Amazonas fechou o hospital de referência na Universidade Nilton Lins, inaugurado no pico da pandemia em Manaus. No mesmo mês, a capital se tornou a primeira a retomar aulas presenciais na rede estadual de ensino no Brasil.
Imunidade de rebanho
Em agosto, com três meses de redução dos casos de covid-19 em Manaus, especialistas brasileiros começaram a levantar a hipótese de que o limiar da imunidade coletiva ao vírus teria sido alcançado na região, conhecida por “imunidade de rebanho”. Um grupo internacional liderado por pesquisadores da USP divulgou um artigo que sugeria que quando Manaus vivenciou o pico da epidemia, em meados de maio, aproximadamente 46% da população local já havia contraído o novo coronavírus. Um mês depois, o percentual de infectados teria atingido 65% e, nos dois meses seguintes, teria se estabilizado em torno de 66%, perto do limiar calculado pela fórmula clássica usada na epidemiologia.
Em dezembro, a versão final do estudo foi publicada na revista Science, com a estimativa era de que 76% dos manauaras já tinham imunidade contra o novo coronavírus. Em entrevista à Agência Fapesp, o epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, considera que no caso da covid-19, "falar em imunidade de rebanho ou em tratamento precoce só atrapalha os esforços de controle da doença, pois as medidas de distanciamento social deixam de fazer sentido para a população”. Segundo ele, o cálculo do limiar da imunidade de rebanho é feito em cima da estimativa da taxa de transmissão, “um chute que pode ter um impacto muito grande”.
Novo aumento de casos
Com o comércio, igrejas, escolas, bares e restaurantes em pleno funcionamento, Manaus chegou a registrar novo aumento de casos nas primeiras semanas de setembro. Dos dias 6 a 12, a cidade teve alta de 55,9% no número de infectados pelo novo coronavírus.
Para a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), o crescimento estava relacionado ao abandono de medidas de prevenção e à realização de festas e aglomerações. No dia 24 de setembro, o governo do Estado decretou o fechamento de bares, casas de shows, e acesso a praias de recreação em Manaus. No final de outubro, o decreto foi prorrogado. O governador do Estado, Wilson Lima (PSC), disse que apesar de não ter indicativos que apontassem uma segunda onda, “algumas situações têm nos deixado em estado de alerta”.
Em dezembro, o governo do Amazonas anunciou medidas de restrição do funcionamento de atividades não essenciais - a partir do dia 26 - para conter o avanço da doença no período das festividades de fim de ano. Os dados epidemiológicos apresentados pela FVS-AM mostravam elevado número de casos da doença e ocupação dos leitos clínicos e de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) na rede hospitalar estadual e privada de saúde. Após protestos, o governo revogou o decreto e flexibilizou as atividades não essenciais.
Recordes negativos
No dia 27 de dezembro, o Estado voltou a bater recorde de internações em um único dia, com 95 novas hospitalizações, maior número desde maio, quando foram registradas 82 hospitalizações. Segundo a FVS-AM, houve aumento de 61% no número de internados entre os dias 1º e 25 de dezembro.
Com o aumento de casos, câmaras frigoríficas voltaram a ser instaladas nos hospitais de Manaus. No dia 3 de janeiro, a cidade bateu novamente o recorde de internações em um único dia, quando foram registradas 159 hospitalizações na capital.
De dezembro a janeiro, o número de sepultamentos em Manaus cresceu 193%. Em 5 de janeiro, o prefeito da capital, David Almeida (Avante), decretou estado de emergência em Manaus pelo período de 180 dias.
Segundo dados da prefeitura, o número de sepultamentos em Manaus quintuplicou em um mês. Na quarta-feira, 13, dos 198 enterros que ocorreram na capital, 87 tinham confirmação para covid-19 e sete eram de casos suspeitos, um aumento de 450% relacionado ao dia 13 de dezembro, quando foram registrados 36 óbitos, seis com resultado positivo para o vírus.
O crescimento também se repete entre as mortes em domicílio, que quadruplicaram. Em 13 de dezembro, foram registradas 6 pela gestão municipal, número que subiu para 26 em 13 de janeiro.
O número diário de novas internações é o mais alto já registrado, tendo duplicado nas últimas duas semanas. Até quinta-feira, 14, 427 pacientes das redes pública e privada de saúde aguardavam um leito para internação, a maioria em Manaus.
Falta de oxigênio
Nesta quinta-feira, 14, o estoque de oxigênio acabou em vários hospitais da capital, levando pacientes internados à morte por asfixia. A White Martins, produtora de oxigênio hospitalar em Manaus, não está conseguindo atender a “demanda exponencial” do sistema de saúde e tenta viabilizar a importação de oxigênio da operação da empresa em outros locais, como na Venezuela.
Segundo a companhia, a demanda por oxigênio ficou cinco vezes maior nos últimos 15 dias, alcançando um volume de 70 mil metros cúbicos por dia, superando a quantidade necessária diariamente na primeira onda da pandemia, entre abril e maio de 2020, quando o consumo de oxigênio alcançou um pico de volume de 30 mil metros cúbicos por dia.
De acordo com o procurador do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas, Igor da Silva Spindola, a produção local é de cerca de 28 mil metros cúbicos. Ele ingressou com uma ação na Justiça Federal nesta quinta-feira, 14, para cobrarprovidências do governo federal para restabelecer ‘imediatamente’ o fornecimento de oxigênio.“A gente tem oxigênio pelo País, a gente não tem uma logística estabelecida porque tem um vácuo no governo Federal. As pessoas são tiradas do oxigênio, elas sufocam e morrem. Elas são colocadas em máscaras e essas máscaras duram pouquíssimo tempo. Basicamente é isso.”
O prefeito de Manaus, em entrevista ao Estadão, disse que o isolamento geográfico da região afeta a chegada dos tubos de oxigênio necessários no sistema de saúde. “Vocês precisam entender por que Manaus sofre. É que Manaus é cidade-Estado. Nós temos mais da metade da população do Estado morando em Manaus. Todas as UTIs do Estado estão em Manaus”, disse ele.
Causas
Ao Estadão, Jesem Orellana, epidemiologista da Fiocruz-Amazônia, afirmou que desde agosto havia sinais de que a situação ia piorar se não fosse interrompida a circulação do vírus. Ele criticou a divulgação do estudo que apontava que Manaus havia atingido a imunidade de rebanho: “Fizemos um comentário técnico do artigo apontando os erros, mas ele nunca foi retratado. Isso circulou pelo meio político, nas mesas de bar. A partir dali a população relaxou e o final da história é esse que vimos nesta manhã de completo colapso”.