Teve início, nesta segunda-feira, 27, a 77ª Assembleia Mundial de Saúde (AMS), em Genebra, na Suíça. Organizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a assembleia deste ano reúne lideranças globais, incluindo representantes do Brasil, para debater questões relacionadas à saúde pública, o que inclui a adoção de um instrumento internacional com diretrizes de preparação, prevenção e resposta a pandemias. Contudo, o acordo, que tem como objetivo evitar a repetição de falhas observadas durante a covid-19, não ficou pronto por causa da divergência entre os participantes da cúpula.
O início das discussões em torno do instrumento internacional ficou estabelecido pela AMS ainda durante o estado de emergência, em março de 2021, porém, mais de dois anos se passaram e não foram suficientes para que o Órgão Intergovernamental de Negociação (INB), composto por representantes dos Estados-membros, entrasse em consenso dentro do prazo esperado para que a proposta fosse apresentada na AMS deste ano.
Na opinião da coordenação do Grupo de Trabalho de Acordo sobre Pandemias, da Fiocruz/USP, as divergências refletem um conflito de interesses entre o Norte e o Sul global.
Segundo a instituição, em nota sobre o adiamento da conclusão do acordo, houve progresso em várias partes do documento, incluindo capítulos sobre uso de termos, objetivos e princípios, equidade na cadeia de prevenção, fortalecimento regulatório e financiamento sustentável. No entanto, persistem divergências significativas em áreas como “Uma Só Saúde” (One Health, em inglês), transferência de tecnologias e Acesso a Patógenos e Repartição de Benefícios (PABS).
A abordagem “One Health” reconhece a conexão entre a saúde humana, animal, vegetal e ambiental. Defendida pela OMS e por muitos países, ela promove a cooperação em todos os níveis, do local ao global, para enfrentar pandemias, resistência aos antimicrobianos, mudanças climáticas e outras ameaças.
A inclusão de uma seção sobre “One Health” no acordo sobre pandemias é fortemente apoiada pelos países desenvolvidos. Eles defendem ser importante adotar medidas que integrem essas dimensões, como melhorar a vigilância sanitária no comércio de produtos agrícolas. No entanto, alguns países em desenvolvimento temem que essas novas obrigações possam ser usadas para criar barreiras comerciais, favorecendo os países ricos. Por outro lado, os países desenvolvidos argumentam que, sem essa abordagem, a OMS pode demorar a declarar emergências, a exemplo do surto de gripe aviária.
Quanto à transferência de tecnologia, as disputas estão centradas nas implicações dos direitos de propriedade intelectual. Os países em desenvolvimento defendem que as transferências sejam baseadas em termos acordados mutuamente, enquanto os países desenvolvidos preferem um modelo voluntário.
No caso do PABS, o principal conflito entre os países do Norte e do Sul envolve o acesso rápido a patógenos e suas sequências genéticas, além da distribuição de produtos de saúde, como vacinas, e a repartição de benefícios. Embora haja consenso sobre a importância do compartilhamento rápido de dados e informações genéticas, as discussões sobre a quantidade de vacinas a serem doadas à OMS, a regulação de contratos, direitos de propriedade intelectual e a repartição de benefícios financeiros continuam controversas.
Embora o Brasil tenha ficado excluído do rol de lideranças que propuseram a adoção do instrumento internacional em 2021, época da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, o País acabou ganhando destaque no decorrer das negociações. O Embaixador Tovar Nunes, representando a região das Américas, foi um dos seis vice-presidentes do grupo responsável por conduzir a elaboração do acordo (INB). Contudo, o País não ficou isento de críticas. As formas de participação social na elaboração da posição brasileira foram questionadas pela sociedade civil, entre outras razões pela inclusão do setor privado nos espaços de diálogo com movimentos sociais.
Recentemente, em uma sessão informativa convocada pelo Ministério da Saúde, os negociadores brasileiros apresentaram um panorama positivo sobre o progresso das negociações do acordo, mostrando disponibilidade e interesse em resolver as divergências envolvidas na elaboração do documento. Demonstraram otimismo quanto à possibilidade de o instrumento ser aprovado na 77ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS) e avaliaram que não seria necessário estender o prazo para resolver os temas pendentes, apesar dos desafios ainda existentes.
Riscos do adiamento
De acordo com o Grupo de Trabalho de Acordo sobre Pandemias, da Fiocruz/USP, o adiamento da conclusão do acordo sobre o tratado internacional de enfrentamento a pandemias é preocupante. A instituição destaca que a falta de consenso dentro do prazo estipulado revela uma ausência de vontade política, especialmente por parte dos países ricos, para fazer concessões que tornem a resposta internacional a pandemias mais eficiente.
A Fiocruz e a USP alertam para vários riscos associados ao adiamento, destacando quatro principais:
- Lentidão do processo: com o passar do tempo, a urgência e o interesse político em torno do novo instrumento diminuem. A memória da covid-19 vai se tornando cada vez mais distante, enquanto outras agendas e prioridades dos Estados ganham destaque.
- Impacto de eleições: as próximas eleições, particularmente nos Estados Unidos, podem ter um impacto negativo sobre a diplomacia e o multilateralismo. “A possível vitória de um candidato [em menção à Donald Trump] que tentou retirar o país da OMS em 2020 representa uma ameaça significativa, tornando mais difícil a construção de consensos no âmbito da entidade”, destacou a Fiocruz/USP.
- Desinformação e extremismo: segundo o GT de Acordo sobre Pandemias, a desinformação promovida por grupos de extrema direita durante as negociações do acordo gerou enormes danos para a saúde pública. A distorção de elementos cruciais do processo, como as falsas alegações de que os países perderiam sua soberania nacional na resposta às emergências, alimenta a oposição ao acordo em diversos países. “O adiamento está sendo visto por esses grupos como uma vitória, dificultando ainda mais a defesa do acordo devido à complexidade do processo negociador e à falta de um nome adequado para o acordo”, afirma a instituição.
- Falta de participação social: na opinião da Fiocruz/USP, os mecanismos de participação social do INB foram inadequados, oferecendo pouco espaço para a contribuição de entidades e especialistas, especialmente do Sul Global. “Isso deixou brechas para a captura ideológica das consultas públicas por movimentos extremistas”, destaca.
“Por fim, os fatores que determinaram as disfunções da resposta internacional à covid-19 persistem. Caso uma nova pandemia seja declarada neste momento, as disfunções ocorridas tendem a repetir-se, na ausência de compromissos políticos fundamentais capazes de evitá-las. Entre outros exemplos, podemos citar as brutais assimetrias no acesso a vacinas e outros insumos essenciais à resposta às emergências, que foram marca indelével da covid-19″, ressaltou a instituição por meio de nota. / COM AGÊNCIA FIOCRUZ