Crise global de saúde mental entre jovens chega em ‘fase perigosa’, alertam cientistas; entenda


Formas mais graves, persistentes ou recorrentes de doenças mentais atingiram recorde entre jovens, indica documento publicado por especialistas de várias partes do mundo

Por Leon Ferrari

Enquanto os riscos à saúde física dos jovens de 12 a 25 anos diminuíram significativamente em comparação ao passado – principalmente devido à redução nas doenças infecciosas –, a saúde mental deles tem declinado de forma constante nas últimas duas décadas, sobretudo a partir de 2010, e entrou em uma “fase perigosa”, de acordo com um relatório da comissão de saúde mental da juventude da respeitada revista científica The Lancet Psychiatry. O jornal reuniu os principais especialistas de várias nacionalidades para produzir o artigo, que foi publicado nesta terça-feira, 13.

Segundo relatório, saúde mental dos jovens tem piorado de forma constante e preocupante nos últimos anos Foto: kovop58/Adobe Stock

Após a pandemia da covid-19, que exigiu medidas urgentes como isolamento social, os problemas se intensificaram. De acordo com os pesquisadores, os níveis de “sofrimento emocional”, “episódios de problemas de saúde mental que necessitam de cuidados”, e “formas mais graves, persistentes ou recorrentes de doenças mentais” atingiram recorde nesse grupo. “Os jovens estão exibindo os sinais e sintomas de alerta mais graves de uma sociedade e de um mundo que estão em sérios apuros”, escreveram.

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Fatores de risco, como maus-tratos na infância, bullying, uso indevido de substâncias e determinantes socioeconômicos, a exemplo da pobreza e guerras – amplamente conhecidos por aumentar a vulnerabilidade a doenças mentais quando vivenciadas na infância, adolescência e início da vida adulta –, não são capazes de explicarem por si só o que autoridades têm chamado de crise mundial de saúde mental na juventude. No relatório, os cientistas apontam que é preciso olhar para as “megatendências globais” que chacoalharam o mundo nos últimos 20 anos.

Como essa crise parece ter se expandido especialmente a partir de 2010, autores como o psicólogo americano Jonathan Haidt, autor do best-seller “A Geração Ansiosa” (Companhia das Letras), lançado neste ano, apontam a introdução dos smartphones como uma das principais — e às vezes a única — causas dessa crise.

Apesar de acreditarem que o uso de redes sociais seja uma dessas megatendências, os estudiosos reunidos pela Lancet apontam, porém, que é muito mais provável que a tal crise seja influenciada por um conjunto complexo de mudanças sociais. Elas incluem a crescente precariedade e desigualdade social após quatro décadas de neoliberalismo, além das mudanças climáticas.

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“Essas tendências refletem mudanças estruturais profundas e amplas, que, embora não sejam novas, têm afetado os jovens de maneira mais severa do que antes”, escrevem os autores. “Embora as semelhanças sejam preservadas entre as gerações, ser um jovem navegando a transição para a vida adulta madura hoje é muito diferente do que era há apenas 20 anos”, destacam.

Os autores propõem o termo “adultescência emergente” (emerging adulthood, em inglês) para superar as limitações do conceito de adolescência na atualidade. Segundo eles, esse é um “período sensível” que vai da puberdade até meados ou o final dos 20 anos e é marcado por “mudanças dramáticas e visíveis na maturidade biológica”. Elas são acompanhadas por alterações estruturais e funcionais do cérebro, além de transformações no comportamento social, como passar menos tempo com família e mais com indivíduos da mesma faixa etária.

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Adolescência prolongada

Segundo Christian Kieling, professor do departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um dos autores do relatório, a adolescência tem durado cada vez mais. “Temos o marco do início da adolescência, a puberdade, acontecendo cada vez mais cedo, enquanto uma transição para uma vida adulta acontece cada vez mais tarde”, descreve. “Em gerações anteriores, não era raro que, aos 20 anos de idade, o sujeito já estivesse casado, com filhos e levando uma vida independente dos seus pais. Hoje, esse fenômeno está cada vez mais raro”, observa.

É exatamente nessa faixa etária onde se concentram a incidência (medida da ocorrência de novos casos) e a prevalência (casos novos e já existentes) máximas das doenças mentais, de acordo com os autores. Estudos apontam que elas têm um pico de início aos 15 anos, com 63% até 75% dos casos começando até os 25 anos, diz o relatório.

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“A menos que tratadas de forma eficaz, as doenças mentais são uma das principais causas de morte prematura por doenças físicas e suicídio. Mesmo quando essas doenças não causam morte, elas são a maior e mais rapidamente crescente causa de deficiência e perda de potencial humano e produtividade ao longo da vida”, escreveram.

Apesar disso, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), só 2% dos orçamentos públicos de saúde dos países são direcionados ao bem-estar mental. Presos na dicotomia “atendimento pediátrico e para adultos”, para os autores, os serviços falham em atender o grupo que mais se beneficiaria deles. É como se, magicamente, ao completar 18 anos, o sujeito mudasse imediatamente de status. Para Kieling, essa quebra no sistema de saúde gera confusão. “Ficamos sem a certeza de quem é o responsável (pelo atendimento). É quem cuida de criança ou do adolescente? É quem cuida de adulto?”, questiona.

Com isso, “mesmo quando os jovens recebem intervenções estabelecidas em saúde mental, a eficácia é baixa”, diz a publicação.

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A necessidade de ação agora, explica Kieling, faz face ao envelhecimento populacional. “Provavelmente, o Brasil já atingiu esse pico (de número de jovens de 10 a 24 anos), e a população vai envelhecendo. Infelizmente, sabemos que os transtornos mentais costumam começar cedo na vida. Se não aproveitarmos essa janela de oportunidade, que é esse contingente enorme que nós temos de jovens hoje, para atuar, vamos deixar uma parcela desses transtornos cronificar e serem levados ao longo de todo o ciclo vital.”

‘Megatendências globais’

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Para os autores, uma série de megatendências globais pode influenciar o estado de saúde mental desses jovens ao reconfigurar esse período transitório até a vida adulta. Segundo eles, são grandes e duradouras mudanças sociais, que, em maior ou menor intensidade, devido à globalização, são sentidas em boa parte dos países. Entre elas:

  • Aumento da precariedade: os autores destacam que a adoção do neoliberalismo como modelo político e econômico nos 1980 levou à uma precariedade crescente para alguns segmentos da população. Isso gera um aumento da desigualdade intergeracional, redução da segurança do trabalho dos jovens que adentram o mercado, crescente dívida educacional, além de poucas perspectivas de adquirir um imóvel somado a uma crise de aluguel.
  • Mudanças climáticas: os jovens serão muito provavelmente os que vivenciarão as piores faces dessa crise e sofrem uma “pressão implícita” para criar soluções. Acontece que eles têm pouco ou nenhum poder político para implementá-las.
  • Mídias sociais: segundo os autores, o uso delas aumenta dramaticamente nessa época da vida e pode afetar o desenvolvimento do cérebro e potencializar pressões sociais, como a comparação, já comuns nessa faixa etária. Embora as evidências científicas ainda estejam se consolidando, os cientistas acreditam que haja uma relação bidirecional (ou seja, o uso exagerado pode ser tanto causa quanto consequência da piora do estado de saúde mental).

O nível de evidência científica de hoje não consegue cravar uma relação causal, embora seja provável que elas se confirmem, de acordo com os pesquisadores. No entanto, eles frisam que um transtorno mental não tem uma causa única e, sim, diz respeito à confluência de uma série de fatores de risco e protetores.

Kieling destaca que não é possível desconsiderar a influência da redução dos estigmas — que ainda existem — e o aumento do nosso repertório sobre saúde mental. “Há 20 anos, as pessoas não tinham nem palavras ou conceitos para definir muitas das questões que hoje talvez somos capazes de reconhecer como transtornos mentais”, explica.

Níveis de gravidade

Outra questão muito importante que o relatório traz é a introdução do estadiamento para o campo da saúde mental. Algo que é muito comum para outras doenças, como o câncer, e tem a ver com o entendimento do grau de gravidade de uma doença.

Kieling explica que isso retira as doenças mentais de uma binariedade. “O problema de saúde mental não é binário, no sentido de ‘sim’ ou ‘não’. Uma hora eu não tenho depressão, outra hora eu tenho. São níveis. Algumas pessoas vão progredir, outras não vão progredir, outras podem retroceder, inclusive.”

Isso, segundo ele, exige uma nova organização da maneira como cuidamos dos jovens e lidamos com fatores estressores que os acometem. Sobretudo, reconhece que cada um pode ser afetado de uma maneira diferente. “Quando os sintomas são leves, é possível oferecer cuidados mais leves. Por exemplo, hoje existem até intervenções digitais. Ou podemos indicar uma abordagem psicoterápica mais breve, com poucas consultas, para prevenir que aquilo se instale como um quadro de depressão. Já uma pessoa com um quadro recorrente, crônico, eventualmente até com risco de suicídio, vai precisar de um cuidado bem mais intensivo”, diferencia.

No relatório, fala-se em três categorias principais do estresse mental:

  • Estágio não patológico e autolimitado: uma reação aguda a uma situação de estresse.
  • Estágio de tempo limitado: quando o estresse excessivo é reforçado por preocupações (por exemplo, transtorno de adaptação).
  • Estágio de transtorno patológico: quando os sintomas persistem além da presença da situação estressora (aqui, por exemplo, fala-se em transtorno depressivo maior ou transtorno de estresse pós-traumático).

Preocupação e oportunidade

Segundo os pesquisadores, não tratar adequadamente esses problemas nos custa caro, e custará ainda mais com o envelhecimento populacional, no contexto de um mundo cada vez mais dependente da produtividade das gerações mais novas. Os autores chamam de uma “tempestade perfeita”.

“Os problemas de saúde mental que surgem durante a juventude geralmente interrompem o desenvolvimento e a maturação, minando a conquista de marcos importantes, incluindo a formação de identidade e relacionamentos, a realização educacional e vocacional, a independência financeira e a autonomia pessoal culturalmente apropriada”, destacam.

Segundo os pesquisadores, dados do Global Burden of Disease apontam que os transtornos mentais já são a principal causa de incapacidade – marcada por interrupção de estudos e afastamento do trabalho – para o grupo de 10 a 24 anos, com importante impacto na qualidade de vida.

Ao mesmo tempo que isso preocupa, é também uma oportunidade. “A saúde mental comprometida nos jovens é um fator de risco potente, mas amplamente ignorado, para doenças médicas relacionadas à idade mais tarde na vida. Portanto, a prevenção e o tratamento eficazes dos problemas de saúde mental na juventude, em última análise, ajudarão a reduzir a carga total de doenças ao longo da vida, tornando-o um dos melhores investimentos em reforma de políticas de saúde e sociais, já que o potencial retorno sobre o investimento é enorme”, diz o relatório.

Nesse sentido, eles apontam que é preciso entender o investimento na prevenção e o tratamento desses problemas, como a busca pela “riqueza mental”. “Os jovens não são um peso. Temos neles a possibilidade de mudar o futuro. É preciso investir na saúde mental desse grupo para melhorar a saúde mental da população no futuro”, resume Kieling.

Enquanto os riscos à saúde física dos jovens de 12 a 25 anos diminuíram significativamente em comparação ao passado – principalmente devido à redução nas doenças infecciosas –, a saúde mental deles tem declinado de forma constante nas últimas duas décadas, sobretudo a partir de 2010, e entrou em uma “fase perigosa”, de acordo com um relatório da comissão de saúde mental da juventude da respeitada revista científica The Lancet Psychiatry. O jornal reuniu os principais especialistas de várias nacionalidades para produzir o artigo, que foi publicado nesta terça-feira, 13.

Segundo relatório, saúde mental dos jovens tem piorado de forma constante e preocupante nos últimos anos Foto: kovop58/Adobe Stock

Após a pandemia da covid-19, que exigiu medidas urgentes como isolamento social, os problemas se intensificaram. De acordo com os pesquisadores, os níveis de “sofrimento emocional”, “episódios de problemas de saúde mental que necessitam de cuidados”, e “formas mais graves, persistentes ou recorrentes de doenças mentais” atingiram recorde nesse grupo. “Os jovens estão exibindo os sinais e sintomas de alerta mais graves de uma sociedade e de um mundo que estão em sérios apuros”, escreveram.

Fatores de risco, como maus-tratos na infância, bullying, uso indevido de substâncias e determinantes socioeconômicos, a exemplo da pobreza e guerras – amplamente conhecidos por aumentar a vulnerabilidade a doenças mentais quando vivenciadas na infância, adolescência e início da vida adulta –, não são capazes de explicarem por si só o que autoridades têm chamado de crise mundial de saúde mental na juventude. No relatório, os cientistas apontam que é preciso olhar para as “megatendências globais” que chacoalharam o mundo nos últimos 20 anos.

Como essa crise parece ter se expandido especialmente a partir de 2010, autores como o psicólogo americano Jonathan Haidt, autor do best-seller “A Geração Ansiosa” (Companhia das Letras), lançado neste ano, apontam a introdução dos smartphones como uma das principais — e às vezes a única — causas dessa crise.

Apesar de acreditarem que o uso de redes sociais seja uma dessas megatendências, os estudiosos reunidos pela Lancet apontam, porém, que é muito mais provável que a tal crise seja influenciada por um conjunto complexo de mudanças sociais. Elas incluem a crescente precariedade e desigualdade social após quatro décadas de neoliberalismo, além das mudanças climáticas.

“Essas tendências refletem mudanças estruturais profundas e amplas, que, embora não sejam novas, têm afetado os jovens de maneira mais severa do que antes”, escrevem os autores. “Embora as semelhanças sejam preservadas entre as gerações, ser um jovem navegando a transição para a vida adulta madura hoje é muito diferente do que era há apenas 20 anos”, destacam.

Os autores propõem o termo “adultescência emergente” (emerging adulthood, em inglês) para superar as limitações do conceito de adolescência na atualidade. Segundo eles, esse é um “período sensível” que vai da puberdade até meados ou o final dos 20 anos e é marcado por “mudanças dramáticas e visíveis na maturidade biológica”. Elas são acompanhadas por alterações estruturais e funcionais do cérebro, além de transformações no comportamento social, como passar menos tempo com família e mais com indivíduos da mesma faixa etária.

Adolescência prolongada

Segundo Christian Kieling, professor do departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um dos autores do relatório, a adolescência tem durado cada vez mais. “Temos o marco do início da adolescência, a puberdade, acontecendo cada vez mais cedo, enquanto uma transição para uma vida adulta acontece cada vez mais tarde”, descreve. “Em gerações anteriores, não era raro que, aos 20 anos de idade, o sujeito já estivesse casado, com filhos e levando uma vida independente dos seus pais. Hoje, esse fenômeno está cada vez mais raro”, observa.

É exatamente nessa faixa etária onde se concentram a incidência (medida da ocorrência de novos casos) e a prevalência (casos novos e já existentes) máximas das doenças mentais, de acordo com os autores. Estudos apontam que elas têm um pico de início aos 15 anos, com 63% até 75% dos casos começando até os 25 anos, diz o relatório.

“A menos que tratadas de forma eficaz, as doenças mentais são uma das principais causas de morte prematura por doenças físicas e suicídio. Mesmo quando essas doenças não causam morte, elas são a maior e mais rapidamente crescente causa de deficiência e perda de potencial humano e produtividade ao longo da vida”, escreveram.

Apesar disso, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), só 2% dos orçamentos públicos de saúde dos países são direcionados ao bem-estar mental. Presos na dicotomia “atendimento pediátrico e para adultos”, para os autores, os serviços falham em atender o grupo que mais se beneficiaria deles. É como se, magicamente, ao completar 18 anos, o sujeito mudasse imediatamente de status. Para Kieling, essa quebra no sistema de saúde gera confusão. “Ficamos sem a certeza de quem é o responsável (pelo atendimento). É quem cuida de criança ou do adolescente? É quem cuida de adulto?”, questiona.

Com isso, “mesmo quando os jovens recebem intervenções estabelecidas em saúde mental, a eficácia é baixa”, diz a publicação.

A necessidade de ação agora, explica Kieling, faz face ao envelhecimento populacional. “Provavelmente, o Brasil já atingiu esse pico (de número de jovens de 10 a 24 anos), e a população vai envelhecendo. Infelizmente, sabemos que os transtornos mentais costumam começar cedo na vida. Se não aproveitarmos essa janela de oportunidade, que é esse contingente enorme que nós temos de jovens hoje, para atuar, vamos deixar uma parcela desses transtornos cronificar e serem levados ao longo de todo o ciclo vital.”

‘Megatendências globais’

Para os autores, uma série de megatendências globais pode influenciar o estado de saúde mental desses jovens ao reconfigurar esse período transitório até a vida adulta. Segundo eles, são grandes e duradouras mudanças sociais, que, em maior ou menor intensidade, devido à globalização, são sentidas em boa parte dos países. Entre elas:

  • Aumento da precariedade: os autores destacam que a adoção do neoliberalismo como modelo político e econômico nos 1980 levou à uma precariedade crescente para alguns segmentos da população. Isso gera um aumento da desigualdade intergeracional, redução da segurança do trabalho dos jovens que adentram o mercado, crescente dívida educacional, além de poucas perspectivas de adquirir um imóvel somado a uma crise de aluguel.
  • Mudanças climáticas: os jovens serão muito provavelmente os que vivenciarão as piores faces dessa crise e sofrem uma “pressão implícita” para criar soluções. Acontece que eles têm pouco ou nenhum poder político para implementá-las.
  • Mídias sociais: segundo os autores, o uso delas aumenta dramaticamente nessa época da vida e pode afetar o desenvolvimento do cérebro e potencializar pressões sociais, como a comparação, já comuns nessa faixa etária. Embora as evidências científicas ainda estejam se consolidando, os cientistas acreditam que haja uma relação bidirecional (ou seja, o uso exagerado pode ser tanto causa quanto consequência da piora do estado de saúde mental).

O nível de evidência científica de hoje não consegue cravar uma relação causal, embora seja provável que elas se confirmem, de acordo com os pesquisadores. No entanto, eles frisam que um transtorno mental não tem uma causa única e, sim, diz respeito à confluência de uma série de fatores de risco e protetores.

Kieling destaca que não é possível desconsiderar a influência da redução dos estigmas — que ainda existem — e o aumento do nosso repertório sobre saúde mental. “Há 20 anos, as pessoas não tinham nem palavras ou conceitos para definir muitas das questões que hoje talvez somos capazes de reconhecer como transtornos mentais”, explica.

Níveis de gravidade

Outra questão muito importante que o relatório traz é a introdução do estadiamento para o campo da saúde mental. Algo que é muito comum para outras doenças, como o câncer, e tem a ver com o entendimento do grau de gravidade de uma doença.

Kieling explica que isso retira as doenças mentais de uma binariedade. “O problema de saúde mental não é binário, no sentido de ‘sim’ ou ‘não’. Uma hora eu não tenho depressão, outra hora eu tenho. São níveis. Algumas pessoas vão progredir, outras não vão progredir, outras podem retroceder, inclusive.”

Isso, segundo ele, exige uma nova organização da maneira como cuidamos dos jovens e lidamos com fatores estressores que os acometem. Sobretudo, reconhece que cada um pode ser afetado de uma maneira diferente. “Quando os sintomas são leves, é possível oferecer cuidados mais leves. Por exemplo, hoje existem até intervenções digitais. Ou podemos indicar uma abordagem psicoterápica mais breve, com poucas consultas, para prevenir que aquilo se instale como um quadro de depressão. Já uma pessoa com um quadro recorrente, crônico, eventualmente até com risco de suicídio, vai precisar de um cuidado bem mais intensivo”, diferencia.

No relatório, fala-se em três categorias principais do estresse mental:

  • Estágio não patológico e autolimitado: uma reação aguda a uma situação de estresse.
  • Estágio de tempo limitado: quando o estresse excessivo é reforçado por preocupações (por exemplo, transtorno de adaptação).
  • Estágio de transtorno patológico: quando os sintomas persistem além da presença da situação estressora (aqui, por exemplo, fala-se em transtorno depressivo maior ou transtorno de estresse pós-traumático).

Preocupação e oportunidade

Segundo os pesquisadores, não tratar adequadamente esses problemas nos custa caro, e custará ainda mais com o envelhecimento populacional, no contexto de um mundo cada vez mais dependente da produtividade das gerações mais novas. Os autores chamam de uma “tempestade perfeita”.

“Os problemas de saúde mental que surgem durante a juventude geralmente interrompem o desenvolvimento e a maturação, minando a conquista de marcos importantes, incluindo a formação de identidade e relacionamentos, a realização educacional e vocacional, a independência financeira e a autonomia pessoal culturalmente apropriada”, destacam.

Segundo os pesquisadores, dados do Global Burden of Disease apontam que os transtornos mentais já são a principal causa de incapacidade – marcada por interrupção de estudos e afastamento do trabalho – para o grupo de 10 a 24 anos, com importante impacto na qualidade de vida.

Ao mesmo tempo que isso preocupa, é também uma oportunidade. “A saúde mental comprometida nos jovens é um fator de risco potente, mas amplamente ignorado, para doenças médicas relacionadas à idade mais tarde na vida. Portanto, a prevenção e o tratamento eficazes dos problemas de saúde mental na juventude, em última análise, ajudarão a reduzir a carga total de doenças ao longo da vida, tornando-o um dos melhores investimentos em reforma de políticas de saúde e sociais, já que o potencial retorno sobre o investimento é enorme”, diz o relatório.

Nesse sentido, eles apontam que é preciso entender o investimento na prevenção e o tratamento desses problemas, como a busca pela “riqueza mental”. “Os jovens não são um peso. Temos neles a possibilidade de mudar o futuro. É preciso investir na saúde mental desse grupo para melhorar a saúde mental da população no futuro”, resume Kieling.

Enquanto os riscos à saúde física dos jovens de 12 a 25 anos diminuíram significativamente em comparação ao passado – principalmente devido à redução nas doenças infecciosas –, a saúde mental deles tem declinado de forma constante nas últimas duas décadas, sobretudo a partir de 2010, e entrou em uma “fase perigosa”, de acordo com um relatório da comissão de saúde mental da juventude da respeitada revista científica The Lancet Psychiatry. O jornal reuniu os principais especialistas de várias nacionalidades para produzir o artigo, que foi publicado nesta terça-feira, 13.

Segundo relatório, saúde mental dos jovens tem piorado de forma constante e preocupante nos últimos anos Foto: kovop58/Adobe Stock

Após a pandemia da covid-19, que exigiu medidas urgentes como isolamento social, os problemas se intensificaram. De acordo com os pesquisadores, os níveis de “sofrimento emocional”, “episódios de problemas de saúde mental que necessitam de cuidados”, e “formas mais graves, persistentes ou recorrentes de doenças mentais” atingiram recorde nesse grupo. “Os jovens estão exibindo os sinais e sintomas de alerta mais graves de uma sociedade e de um mundo que estão em sérios apuros”, escreveram.

Fatores de risco, como maus-tratos na infância, bullying, uso indevido de substâncias e determinantes socioeconômicos, a exemplo da pobreza e guerras – amplamente conhecidos por aumentar a vulnerabilidade a doenças mentais quando vivenciadas na infância, adolescência e início da vida adulta –, não são capazes de explicarem por si só o que autoridades têm chamado de crise mundial de saúde mental na juventude. No relatório, os cientistas apontam que é preciso olhar para as “megatendências globais” que chacoalharam o mundo nos últimos 20 anos.

Como essa crise parece ter se expandido especialmente a partir de 2010, autores como o psicólogo americano Jonathan Haidt, autor do best-seller “A Geração Ansiosa” (Companhia das Letras), lançado neste ano, apontam a introdução dos smartphones como uma das principais — e às vezes a única — causas dessa crise.

Apesar de acreditarem que o uso de redes sociais seja uma dessas megatendências, os estudiosos reunidos pela Lancet apontam, porém, que é muito mais provável que a tal crise seja influenciada por um conjunto complexo de mudanças sociais. Elas incluem a crescente precariedade e desigualdade social após quatro décadas de neoliberalismo, além das mudanças climáticas.

“Essas tendências refletem mudanças estruturais profundas e amplas, que, embora não sejam novas, têm afetado os jovens de maneira mais severa do que antes”, escrevem os autores. “Embora as semelhanças sejam preservadas entre as gerações, ser um jovem navegando a transição para a vida adulta madura hoje é muito diferente do que era há apenas 20 anos”, destacam.

Os autores propõem o termo “adultescência emergente” (emerging adulthood, em inglês) para superar as limitações do conceito de adolescência na atualidade. Segundo eles, esse é um “período sensível” que vai da puberdade até meados ou o final dos 20 anos e é marcado por “mudanças dramáticas e visíveis na maturidade biológica”. Elas são acompanhadas por alterações estruturais e funcionais do cérebro, além de transformações no comportamento social, como passar menos tempo com família e mais com indivíduos da mesma faixa etária.

Adolescência prolongada

Segundo Christian Kieling, professor do departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um dos autores do relatório, a adolescência tem durado cada vez mais. “Temos o marco do início da adolescência, a puberdade, acontecendo cada vez mais cedo, enquanto uma transição para uma vida adulta acontece cada vez mais tarde”, descreve. “Em gerações anteriores, não era raro que, aos 20 anos de idade, o sujeito já estivesse casado, com filhos e levando uma vida independente dos seus pais. Hoje, esse fenômeno está cada vez mais raro”, observa.

É exatamente nessa faixa etária onde se concentram a incidência (medida da ocorrência de novos casos) e a prevalência (casos novos e já existentes) máximas das doenças mentais, de acordo com os autores. Estudos apontam que elas têm um pico de início aos 15 anos, com 63% até 75% dos casos começando até os 25 anos, diz o relatório.

“A menos que tratadas de forma eficaz, as doenças mentais são uma das principais causas de morte prematura por doenças físicas e suicídio. Mesmo quando essas doenças não causam morte, elas são a maior e mais rapidamente crescente causa de deficiência e perda de potencial humano e produtividade ao longo da vida”, escreveram.

Apesar disso, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), só 2% dos orçamentos públicos de saúde dos países são direcionados ao bem-estar mental. Presos na dicotomia “atendimento pediátrico e para adultos”, para os autores, os serviços falham em atender o grupo que mais se beneficiaria deles. É como se, magicamente, ao completar 18 anos, o sujeito mudasse imediatamente de status. Para Kieling, essa quebra no sistema de saúde gera confusão. “Ficamos sem a certeza de quem é o responsável (pelo atendimento). É quem cuida de criança ou do adolescente? É quem cuida de adulto?”, questiona.

Com isso, “mesmo quando os jovens recebem intervenções estabelecidas em saúde mental, a eficácia é baixa”, diz a publicação.

A necessidade de ação agora, explica Kieling, faz face ao envelhecimento populacional. “Provavelmente, o Brasil já atingiu esse pico (de número de jovens de 10 a 24 anos), e a população vai envelhecendo. Infelizmente, sabemos que os transtornos mentais costumam começar cedo na vida. Se não aproveitarmos essa janela de oportunidade, que é esse contingente enorme que nós temos de jovens hoje, para atuar, vamos deixar uma parcela desses transtornos cronificar e serem levados ao longo de todo o ciclo vital.”

‘Megatendências globais’

Para os autores, uma série de megatendências globais pode influenciar o estado de saúde mental desses jovens ao reconfigurar esse período transitório até a vida adulta. Segundo eles, são grandes e duradouras mudanças sociais, que, em maior ou menor intensidade, devido à globalização, são sentidas em boa parte dos países. Entre elas:

  • Aumento da precariedade: os autores destacam que a adoção do neoliberalismo como modelo político e econômico nos 1980 levou à uma precariedade crescente para alguns segmentos da população. Isso gera um aumento da desigualdade intergeracional, redução da segurança do trabalho dos jovens que adentram o mercado, crescente dívida educacional, além de poucas perspectivas de adquirir um imóvel somado a uma crise de aluguel.
  • Mudanças climáticas: os jovens serão muito provavelmente os que vivenciarão as piores faces dessa crise e sofrem uma “pressão implícita” para criar soluções. Acontece que eles têm pouco ou nenhum poder político para implementá-las.
  • Mídias sociais: segundo os autores, o uso delas aumenta dramaticamente nessa época da vida e pode afetar o desenvolvimento do cérebro e potencializar pressões sociais, como a comparação, já comuns nessa faixa etária. Embora as evidências científicas ainda estejam se consolidando, os cientistas acreditam que haja uma relação bidirecional (ou seja, o uso exagerado pode ser tanto causa quanto consequência da piora do estado de saúde mental).

O nível de evidência científica de hoje não consegue cravar uma relação causal, embora seja provável que elas se confirmem, de acordo com os pesquisadores. No entanto, eles frisam que um transtorno mental não tem uma causa única e, sim, diz respeito à confluência de uma série de fatores de risco e protetores.

Kieling destaca que não é possível desconsiderar a influência da redução dos estigmas — que ainda existem — e o aumento do nosso repertório sobre saúde mental. “Há 20 anos, as pessoas não tinham nem palavras ou conceitos para definir muitas das questões que hoje talvez somos capazes de reconhecer como transtornos mentais”, explica.

Níveis de gravidade

Outra questão muito importante que o relatório traz é a introdução do estadiamento para o campo da saúde mental. Algo que é muito comum para outras doenças, como o câncer, e tem a ver com o entendimento do grau de gravidade de uma doença.

Kieling explica que isso retira as doenças mentais de uma binariedade. “O problema de saúde mental não é binário, no sentido de ‘sim’ ou ‘não’. Uma hora eu não tenho depressão, outra hora eu tenho. São níveis. Algumas pessoas vão progredir, outras não vão progredir, outras podem retroceder, inclusive.”

Isso, segundo ele, exige uma nova organização da maneira como cuidamos dos jovens e lidamos com fatores estressores que os acometem. Sobretudo, reconhece que cada um pode ser afetado de uma maneira diferente. “Quando os sintomas são leves, é possível oferecer cuidados mais leves. Por exemplo, hoje existem até intervenções digitais. Ou podemos indicar uma abordagem psicoterápica mais breve, com poucas consultas, para prevenir que aquilo se instale como um quadro de depressão. Já uma pessoa com um quadro recorrente, crônico, eventualmente até com risco de suicídio, vai precisar de um cuidado bem mais intensivo”, diferencia.

No relatório, fala-se em três categorias principais do estresse mental:

  • Estágio não patológico e autolimitado: uma reação aguda a uma situação de estresse.
  • Estágio de tempo limitado: quando o estresse excessivo é reforçado por preocupações (por exemplo, transtorno de adaptação).
  • Estágio de transtorno patológico: quando os sintomas persistem além da presença da situação estressora (aqui, por exemplo, fala-se em transtorno depressivo maior ou transtorno de estresse pós-traumático).

Preocupação e oportunidade

Segundo os pesquisadores, não tratar adequadamente esses problemas nos custa caro, e custará ainda mais com o envelhecimento populacional, no contexto de um mundo cada vez mais dependente da produtividade das gerações mais novas. Os autores chamam de uma “tempestade perfeita”.

“Os problemas de saúde mental que surgem durante a juventude geralmente interrompem o desenvolvimento e a maturação, minando a conquista de marcos importantes, incluindo a formação de identidade e relacionamentos, a realização educacional e vocacional, a independência financeira e a autonomia pessoal culturalmente apropriada”, destacam.

Segundo os pesquisadores, dados do Global Burden of Disease apontam que os transtornos mentais já são a principal causa de incapacidade – marcada por interrupção de estudos e afastamento do trabalho – para o grupo de 10 a 24 anos, com importante impacto na qualidade de vida.

Ao mesmo tempo que isso preocupa, é também uma oportunidade. “A saúde mental comprometida nos jovens é um fator de risco potente, mas amplamente ignorado, para doenças médicas relacionadas à idade mais tarde na vida. Portanto, a prevenção e o tratamento eficazes dos problemas de saúde mental na juventude, em última análise, ajudarão a reduzir a carga total de doenças ao longo da vida, tornando-o um dos melhores investimentos em reforma de políticas de saúde e sociais, já que o potencial retorno sobre o investimento é enorme”, diz o relatório.

Nesse sentido, eles apontam que é preciso entender o investimento na prevenção e o tratamento desses problemas, como a busca pela “riqueza mental”. “Os jovens não são um peso. Temos neles a possibilidade de mudar o futuro. É preciso investir na saúde mental desse grupo para melhorar a saúde mental da população no futuro”, resume Kieling.

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