Psiquiatria e sociedade

Opinião|Como chegamos até aqui - a nova abordagem de Black Mirror


Em sua sexta temporada, Black Mirror se volta para a condição humana

Por Daniel Martins de Barros
Netflix/Divulgação  

Black Mirror está de volta. E vem de roupa nova. A sexta temporada trouxe algumas mudanças de rumo significativas, que surpreenderam (e nem sempre agradaram) o público.

Para mim o saldo é positivo. Até porque, verdade seja dita, a fórmula da série foi aos poucos ficando manjada, o que talvez tenha colocado o criador Charlie Brooker diante do dilema de todo artista de sucesso: oferecer às pessoas ainda mais daquilo que elas esperam, ou optar pela inovação, arriscando-se a desagradar os fãs - e a errar o tom ao se meter num estilo que não domina?

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Brooker claramente optou pela mudança, e se até agora se perguntava "Onde é que vamos parar?", agora parece questionar "Como chegamos até aqui?".

Na primeira história, Joan é péssima (essa ainda situada num futuro próximo), uma mulher fica desesperada ao ver que sua vida está sendo retratada numa série, apenas com alguns ajustes que sempre a fazem parecer pior do que é na vida real. Ao conversar com a executiva da rede de streaming que produz o programa, esta explica que se trata apenas de um piloto - o objetivo é ter episódios sobre todas as pessoas do planeta, de modo que todos possam se identificar e ter uma série para chamar de sua. Confessa ainda que alguns aspectos negativos são exagerados, porque a raiva traz mais engajamento por parte dos telespectadores. Soa bem familiar toda essa estratégia, não?

O episódio seguinte, Loch Henry, já nos transporta para um passado (bem) recente, e conta a história de um casal de jovens cineastas que decide gravar um documentário true crime sobre um serial killer na cidade onde um deles cresceu. A namorada insiste que a história é boa e tem tudo para fazer sucesso, mesmo diante da resistência do rapaz em remexer em temas sensíveis envolvendo sua família. Ele acaba convencido, mas ao longo das filmagens descobre que o caso era muito mais profundo, e só se ignorar sua própria dor poderá seguir em frente com o filme. A empatia pelo sofrimento parece ser aqui um entrave para o sucesso - porque, descobrimos, é exatamente sofrimento o que o público quer ver. O episódio pode, assim, ser lido como uma forma de explicar como chegamos ao ponto de nos entretermos com as emoções negativas, o que desembocará na realidade de Joan é péssima.

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Essa onda de true crime, contudo, também pode ser explicada. E o quarto episódio, Maze Day, distancia-se ainda mais do Black Mirror que conhecemos - tanto no tempo como no estilo - para quem sabe encontrar essa explicação ao nos observar mais de longe. Nessa história, paparazzi perseguem celebridades em busca de flagras reveladores - quanto mais sofridas elas forem, mais valiosas as fotos, refletindo a demanda de um público ávido pelas dores alheias. A curiosidade macabra fica - novamente - acima da empatia, criando uma indústria de entretenimento baseado em dor. E descobrimos, no fim das contas, que mesmo a dor que avidamente consumimos é superficial, a consequência externa de situações mais profundas - e sombrias - do que pode ser capturado em fotografias.

O terceiro e quinto capítulos (Beyond the see e Demônio 79) são localizados no início da segunda metade do século passado, durante a corrida espacial e a guerra fria. Tratam-se de histórias muito bem contadas e que suscitam boas reflexões sobre a natureza humana e também nos ajudam a pensar o presente à luz do passado, embora me pareçam fugir do arco mais explicitamente desenhado pelos outros três episódios.

Apesar do estranhamento com as mudanças, no longo prazo creio que elas serão assimiladas e, em retrospecto, vistas como positivas. Afinal, se formos rigorosos, elas são menos uma inovação do que uma retomada. Depois de tantas histórias futurísticas mal nos lembramos de que o primeiro episódio da primeira temporada também se passava no presente e também já tratava da sede voyeurística da nossa sociedade.

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E talvez essa seja a pergunta central de toda a série, no fim das contas: não saberemos como chegamos aqui e nem para onde vamos se antes não respondermos quem somos e, principalmente: quem queremos ser?

Netflix/Divulgação  

Black Mirror está de volta. E vem de roupa nova. A sexta temporada trouxe algumas mudanças de rumo significativas, que surpreenderam (e nem sempre agradaram) o público.

Para mim o saldo é positivo. Até porque, verdade seja dita, a fórmula da série foi aos poucos ficando manjada, o que talvez tenha colocado o criador Charlie Brooker diante do dilema de todo artista de sucesso: oferecer às pessoas ainda mais daquilo que elas esperam, ou optar pela inovação, arriscando-se a desagradar os fãs - e a errar o tom ao se meter num estilo que não domina?

Brooker claramente optou pela mudança, e se até agora se perguntava "Onde é que vamos parar?", agora parece questionar "Como chegamos até aqui?".

Na primeira história, Joan é péssima (essa ainda situada num futuro próximo), uma mulher fica desesperada ao ver que sua vida está sendo retratada numa série, apenas com alguns ajustes que sempre a fazem parecer pior do que é na vida real. Ao conversar com a executiva da rede de streaming que produz o programa, esta explica que se trata apenas de um piloto - o objetivo é ter episódios sobre todas as pessoas do planeta, de modo que todos possam se identificar e ter uma série para chamar de sua. Confessa ainda que alguns aspectos negativos são exagerados, porque a raiva traz mais engajamento por parte dos telespectadores. Soa bem familiar toda essa estratégia, não?

O episódio seguinte, Loch Henry, já nos transporta para um passado (bem) recente, e conta a história de um casal de jovens cineastas que decide gravar um documentário true crime sobre um serial killer na cidade onde um deles cresceu. A namorada insiste que a história é boa e tem tudo para fazer sucesso, mesmo diante da resistência do rapaz em remexer em temas sensíveis envolvendo sua família. Ele acaba convencido, mas ao longo das filmagens descobre que o caso era muito mais profundo, e só se ignorar sua própria dor poderá seguir em frente com o filme. A empatia pelo sofrimento parece ser aqui um entrave para o sucesso - porque, descobrimos, é exatamente sofrimento o que o público quer ver. O episódio pode, assim, ser lido como uma forma de explicar como chegamos ao ponto de nos entretermos com as emoções negativas, o que desembocará na realidade de Joan é péssima.

Essa onda de true crime, contudo, também pode ser explicada. E o quarto episódio, Maze Day, distancia-se ainda mais do Black Mirror que conhecemos - tanto no tempo como no estilo - para quem sabe encontrar essa explicação ao nos observar mais de longe. Nessa história, paparazzi perseguem celebridades em busca de flagras reveladores - quanto mais sofridas elas forem, mais valiosas as fotos, refletindo a demanda de um público ávido pelas dores alheias. A curiosidade macabra fica - novamente - acima da empatia, criando uma indústria de entretenimento baseado em dor. E descobrimos, no fim das contas, que mesmo a dor que avidamente consumimos é superficial, a consequência externa de situações mais profundas - e sombrias - do que pode ser capturado em fotografias.

O terceiro e quinto capítulos (Beyond the see e Demônio 79) são localizados no início da segunda metade do século passado, durante a corrida espacial e a guerra fria. Tratam-se de histórias muito bem contadas e que suscitam boas reflexões sobre a natureza humana e também nos ajudam a pensar o presente à luz do passado, embora me pareçam fugir do arco mais explicitamente desenhado pelos outros três episódios.

Apesar do estranhamento com as mudanças, no longo prazo creio que elas serão assimiladas e, em retrospecto, vistas como positivas. Afinal, se formos rigorosos, elas são menos uma inovação do que uma retomada. Depois de tantas histórias futurísticas mal nos lembramos de que o primeiro episódio da primeira temporada também se passava no presente e também já tratava da sede voyeurística da nossa sociedade.

E talvez essa seja a pergunta central de toda a série, no fim das contas: não saberemos como chegamos aqui e nem para onde vamos se antes não respondermos quem somos e, principalmente: quem queremos ser?

Netflix/Divulgação  

Black Mirror está de volta. E vem de roupa nova. A sexta temporada trouxe algumas mudanças de rumo significativas, que surpreenderam (e nem sempre agradaram) o público.

Para mim o saldo é positivo. Até porque, verdade seja dita, a fórmula da série foi aos poucos ficando manjada, o que talvez tenha colocado o criador Charlie Brooker diante do dilema de todo artista de sucesso: oferecer às pessoas ainda mais daquilo que elas esperam, ou optar pela inovação, arriscando-se a desagradar os fãs - e a errar o tom ao se meter num estilo que não domina?

Brooker claramente optou pela mudança, e se até agora se perguntava "Onde é que vamos parar?", agora parece questionar "Como chegamos até aqui?".

Na primeira história, Joan é péssima (essa ainda situada num futuro próximo), uma mulher fica desesperada ao ver que sua vida está sendo retratada numa série, apenas com alguns ajustes que sempre a fazem parecer pior do que é na vida real. Ao conversar com a executiva da rede de streaming que produz o programa, esta explica que se trata apenas de um piloto - o objetivo é ter episódios sobre todas as pessoas do planeta, de modo que todos possam se identificar e ter uma série para chamar de sua. Confessa ainda que alguns aspectos negativos são exagerados, porque a raiva traz mais engajamento por parte dos telespectadores. Soa bem familiar toda essa estratégia, não?

O episódio seguinte, Loch Henry, já nos transporta para um passado (bem) recente, e conta a história de um casal de jovens cineastas que decide gravar um documentário true crime sobre um serial killer na cidade onde um deles cresceu. A namorada insiste que a história é boa e tem tudo para fazer sucesso, mesmo diante da resistência do rapaz em remexer em temas sensíveis envolvendo sua família. Ele acaba convencido, mas ao longo das filmagens descobre que o caso era muito mais profundo, e só se ignorar sua própria dor poderá seguir em frente com o filme. A empatia pelo sofrimento parece ser aqui um entrave para o sucesso - porque, descobrimos, é exatamente sofrimento o que o público quer ver. O episódio pode, assim, ser lido como uma forma de explicar como chegamos ao ponto de nos entretermos com as emoções negativas, o que desembocará na realidade de Joan é péssima.

Essa onda de true crime, contudo, também pode ser explicada. E o quarto episódio, Maze Day, distancia-se ainda mais do Black Mirror que conhecemos - tanto no tempo como no estilo - para quem sabe encontrar essa explicação ao nos observar mais de longe. Nessa história, paparazzi perseguem celebridades em busca de flagras reveladores - quanto mais sofridas elas forem, mais valiosas as fotos, refletindo a demanda de um público ávido pelas dores alheias. A curiosidade macabra fica - novamente - acima da empatia, criando uma indústria de entretenimento baseado em dor. E descobrimos, no fim das contas, que mesmo a dor que avidamente consumimos é superficial, a consequência externa de situações mais profundas - e sombrias - do que pode ser capturado em fotografias.

O terceiro e quinto capítulos (Beyond the see e Demônio 79) são localizados no início da segunda metade do século passado, durante a corrida espacial e a guerra fria. Tratam-se de histórias muito bem contadas e que suscitam boas reflexões sobre a natureza humana e também nos ajudam a pensar o presente à luz do passado, embora me pareçam fugir do arco mais explicitamente desenhado pelos outros três episódios.

Apesar do estranhamento com as mudanças, no longo prazo creio que elas serão assimiladas e, em retrospecto, vistas como positivas. Afinal, se formos rigorosos, elas são menos uma inovação do que uma retomada. Depois de tantas histórias futurísticas mal nos lembramos de que o primeiro episódio da primeira temporada também se passava no presente e também já tratava da sede voyeurística da nossa sociedade.

E talvez essa seja a pergunta central de toda a série, no fim das contas: não saberemos como chegamos aqui e nem para onde vamos se antes não respondermos quem somos e, principalmente: quem queremos ser?

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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