Psiquiatria e sociedade

Opinião|Como se vende a alma


O que a gente entrega e o que recebe em troca quando nós vendemos nossa alma?

Por Daniel Martins de Barros

O que a gente entrega e o que recebe em troca quando nós vendemos nossa alma? Quem vende a alma, pensamos logo de cara, deve ter feito por dinheiro. Mas o que exatamente deu?

Gravura clássica para o 'Fausto' de Goethe Foto: Domínio Público

Esse processo pode ser muito mais sutil do que imaginamos – em vez de cenários sombrios ou pactos faustianos macabramente urdidos, ele pode ter lugar em decisões que tomamos no dia a dia e que, sem percebermos, vão esvaziando nossa vida. Nada espalhafatoso, nada escuso. Mas ainda assim, fatal. Deixe-me exemplificar com uma história prosaica. Como já falei em mais de uma ocasião por aqui, uma das coisas que aprendi nesses últimos quase dois anos foi a prestar atenção nas aves. Da incidental curiosidade despertada por um pássaro que cruzou meu caminho, passei a ativamente observar a avifauna onde quer que estivesse. Isso acabou virando um hobby que tem me ajudado a lidar com o estresse dessa pandemia. Comprei guias de observação, tirei meus binóculos do fundo do armário e mandei arrumar uma máquina fotográfica há muito tempo encostada. Meu prazer era localizar um pássaro, observá-lo, tentar identificar a espécie pela forma, tamanho, cores, prestar atenção aos diferentes cantos. Passei então a fotografá-los para ajudar na identificação posterior, sempre um desafio para diletantes neófitos como eu. Algumas fotos ficaram boas, e se tornaram parte do hobby. Até que um dia, estava sem a máquina fotográfica e ouvi alguém bicando perto de mim. Era uma árvore pequena, com galhos finos, não imaginava quem pudesse ser. Procura daqui, olha dali, eis que vejo um pica-pau-anão pela primeira vez. “Que azar”, pensei, “bem quando não estou com minha máquina”. Mas como não poderia fotografá-lo, prestei o máximo de atenção possível aos detalhes, chegando a falar em voz alta para mim mesmo o que estava vendo, para depois identificá-lo de memória com ajuda do guia. Tratava-se de um pica-pau-anão-barrado (Picumnus cirratus), e nem preciso dizer que aquela observação acabou se tornando muito prazerosa, e a identificação, uma grande recompensa. E o que isso tem a ver com a venda da alma? Tudo. Porque o registro fotográfico, que era inicialmente apenas a consequência da observação, foi se transformando num objetivo a ser alcançado, roubando a essência da atividade. A ponto de eu achar que era um azar encontrar um pássaro novo – alegria de qualquer observador de aves – só porque não tinha a máquina em mãos. É assim que se vende uma alma. Na vida, nós fazemos muitas coisas porque elas são importantes ou porque gostamos delas e que geram alguma consequência: nosso trabalho contribui com a sociedade, e consequentemente somos pagos. Nossas palavras consolam as pessoas, atraindo gente para perto de nós. Nossos posts são interessantes, gerando likes. E insidiosamente essas recompensas podem se tornar sedutoras, nos levando a fazer as coisas não mais para contribuir, consolar, ajudar, mas para ganhar dinheiro, atenção, likes. É bom estar atento. Pois quando as consequências de nossas ações se tornam o objetivo principal da vida, nós esquecemos os propósitos originais e perdemos a essência do que fazemos. Risco que pode estar mais perto do que parece. É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’ 

O que a gente entrega e o que recebe em troca quando nós vendemos nossa alma? Quem vende a alma, pensamos logo de cara, deve ter feito por dinheiro. Mas o que exatamente deu?

Gravura clássica para o 'Fausto' de Goethe Foto: Domínio Público

Esse processo pode ser muito mais sutil do que imaginamos – em vez de cenários sombrios ou pactos faustianos macabramente urdidos, ele pode ter lugar em decisões que tomamos no dia a dia e que, sem percebermos, vão esvaziando nossa vida. Nada espalhafatoso, nada escuso. Mas ainda assim, fatal. Deixe-me exemplificar com uma história prosaica. Como já falei em mais de uma ocasião por aqui, uma das coisas que aprendi nesses últimos quase dois anos foi a prestar atenção nas aves. Da incidental curiosidade despertada por um pássaro que cruzou meu caminho, passei a ativamente observar a avifauna onde quer que estivesse. Isso acabou virando um hobby que tem me ajudado a lidar com o estresse dessa pandemia. Comprei guias de observação, tirei meus binóculos do fundo do armário e mandei arrumar uma máquina fotográfica há muito tempo encostada. Meu prazer era localizar um pássaro, observá-lo, tentar identificar a espécie pela forma, tamanho, cores, prestar atenção aos diferentes cantos. Passei então a fotografá-los para ajudar na identificação posterior, sempre um desafio para diletantes neófitos como eu. Algumas fotos ficaram boas, e se tornaram parte do hobby. Até que um dia, estava sem a máquina fotográfica e ouvi alguém bicando perto de mim. Era uma árvore pequena, com galhos finos, não imaginava quem pudesse ser. Procura daqui, olha dali, eis que vejo um pica-pau-anão pela primeira vez. “Que azar”, pensei, “bem quando não estou com minha máquina”. Mas como não poderia fotografá-lo, prestei o máximo de atenção possível aos detalhes, chegando a falar em voz alta para mim mesmo o que estava vendo, para depois identificá-lo de memória com ajuda do guia. Tratava-se de um pica-pau-anão-barrado (Picumnus cirratus), e nem preciso dizer que aquela observação acabou se tornando muito prazerosa, e a identificação, uma grande recompensa. E o que isso tem a ver com a venda da alma? Tudo. Porque o registro fotográfico, que era inicialmente apenas a consequência da observação, foi se transformando num objetivo a ser alcançado, roubando a essência da atividade. A ponto de eu achar que era um azar encontrar um pássaro novo – alegria de qualquer observador de aves – só porque não tinha a máquina em mãos. É assim que se vende uma alma. Na vida, nós fazemos muitas coisas porque elas são importantes ou porque gostamos delas e que geram alguma consequência: nosso trabalho contribui com a sociedade, e consequentemente somos pagos. Nossas palavras consolam as pessoas, atraindo gente para perto de nós. Nossos posts são interessantes, gerando likes. E insidiosamente essas recompensas podem se tornar sedutoras, nos levando a fazer as coisas não mais para contribuir, consolar, ajudar, mas para ganhar dinheiro, atenção, likes. É bom estar atento. Pois quando as consequências de nossas ações se tornam o objetivo principal da vida, nós esquecemos os propósitos originais e perdemos a essência do que fazemos. Risco que pode estar mais perto do que parece. É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’ 

O que a gente entrega e o que recebe em troca quando nós vendemos nossa alma? Quem vende a alma, pensamos logo de cara, deve ter feito por dinheiro. Mas o que exatamente deu?

Gravura clássica para o 'Fausto' de Goethe Foto: Domínio Público

Esse processo pode ser muito mais sutil do que imaginamos – em vez de cenários sombrios ou pactos faustianos macabramente urdidos, ele pode ter lugar em decisões que tomamos no dia a dia e que, sem percebermos, vão esvaziando nossa vida. Nada espalhafatoso, nada escuso. Mas ainda assim, fatal. Deixe-me exemplificar com uma história prosaica. Como já falei em mais de uma ocasião por aqui, uma das coisas que aprendi nesses últimos quase dois anos foi a prestar atenção nas aves. Da incidental curiosidade despertada por um pássaro que cruzou meu caminho, passei a ativamente observar a avifauna onde quer que estivesse. Isso acabou virando um hobby que tem me ajudado a lidar com o estresse dessa pandemia. Comprei guias de observação, tirei meus binóculos do fundo do armário e mandei arrumar uma máquina fotográfica há muito tempo encostada. Meu prazer era localizar um pássaro, observá-lo, tentar identificar a espécie pela forma, tamanho, cores, prestar atenção aos diferentes cantos. Passei então a fotografá-los para ajudar na identificação posterior, sempre um desafio para diletantes neófitos como eu. Algumas fotos ficaram boas, e se tornaram parte do hobby. Até que um dia, estava sem a máquina fotográfica e ouvi alguém bicando perto de mim. Era uma árvore pequena, com galhos finos, não imaginava quem pudesse ser. Procura daqui, olha dali, eis que vejo um pica-pau-anão pela primeira vez. “Que azar”, pensei, “bem quando não estou com minha máquina”. Mas como não poderia fotografá-lo, prestei o máximo de atenção possível aos detalhes, chegando a falar em voz alta para mim mesmo o que estava vendo, para depois identificá-lo de memória com ajuda do guia. Tratava-se de um pica-pau-anão-barrado (Picumnus cirratus), e nem preciso dizer que aquela observação acabou se tornando muito prazerosa, e a identificação, uma grande recompensa. E o que isso tem a ver com a venda da alma? Tudo. Porque o registro fotográfico, que era inicialmente apenas a consequência da observação, foi se transformando num objetivo a ser alcançado, roubando a essência da atividade. A ponto de eu achar que era um azar encontrar um pássaro novo – alegria de qualquer observador de aves – só porque não tinha a máquina em mãos. É assim que se vende uma alma. Na vida, nós fazemos muitas coisas porque elas são importantes ou porque gostamos delas e que geram alguma consequência: nosso trabalho contribui com a sociedade, e consequentemente somos pagos. Nossas palavras consolam as pessoas, atraindo gente para perto de nós. Nossos posts são interessantes, gerando likes. E insidiosamente essas recompensas podem se tornar sedutoras, nos levando a fazer as coisas não mais para contribuir, consolar, ajudar, mas para ganhar dinheiro, atenção, likes. É bom estar atento. Pois quando as consequências de nossas ações se tornam o objetivo principal da vida, nós esquecemos os propósitos originais e perdemos a essência do que fazemos. Risco que pode estar mais perto do que parece. É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’ 

O que a gente entrega e o que recebe em troca quando nós vendemos nossa alma? Quem vende a alma, pensamos logo de cara, deve ter feito por dinheiro. Mas o que exatamente deu?

Gravura clássica para o 'Fausto' de Goethe Foto: Domínio Público

Esse processo pode ser muito mais sutil do que imaginamos – em vez de cenários sombrios ou pactos faustianos macabramente urdidos, ele pode ter lugar em decisões que tomamos no dia a dia e que, sem percebermos, vão esvaziando nossa vida. Nada espalhafatoso, nada escuso. Mas ainda assim, fatal. Deixe-me exemplificar com uma história prosaica. Como já falei em mais de uma ocasião por aqui, uma das coisas que aprendi nesses últimos quase dois anos foi a prestar atenção nas aves. Da incidental curiosidade despertada por um pássaro que cruzou meu caminho, passei a ativamente observar a avifauna onde quer que estivesse. Isso acabou virando um hobby que tem me ajudado a lidar com o estresse dessa pandemia. Comprei guias de observação, tirei meus binóculos do fundo do armário e mandei arrumar uma máquina fotográfica há muito tempo encostada. Meu prazer era localizar um pássaro, observá-lo, tentar identificar a espécie pela forma, tamanho, cores, prestar atenção aos diferentes cantos. Passei então a fotografá-los para ajudar na identificação posterior, sempre um desafio para diletantes neófitos como eu. Algumas fotos ficaram boas, e se tornaram parte do hobby. Até que um dia, estava sem a máquina fotográfica e ouvi alguém bicando perto de mim. Era uma árvore pequena, com galhos finos, não imaginava quem pudesse ser. Procura daqui, olha dali, eis que vejo um pica-pau-anão pela primeira vez. “Que azar”, pensei, “bem quando não estou com minha máquina”. Mas como não poderia fotografá-lo, prestei o máximo de atenção possível aos detalhes, chegando a falar em voz alta para mim mesmo o que estava vendo, para depois identificá-lo de memória com ajuda do guia. Tratava-se de um pica-pau-anão-barrado (Picumnus cirratus), e nem preciso dizer que aquela observação acabou se tornando muito prazerosa, e a identificação, uma grande recompensa. E o que isso tem a ver com a venda da alma? Tudo. Porque o registro fotográfico, que era inicialmente apenas a consequência da observação, foi se transformando num objetivo a ser alcançado, roubando a essência da atividade. A ponto de eu achar que era um azar encontrar um pássaro novo – alegria de qualquer observador de aves – só porque não tinha a máquina em mãos. É assim que se vende uma alma. Na vida, nós fazemos muitas coisas porque elas são importantes ou porque gostamos delas e que geram alguma consequência: nosso trabalho contribui com a sociedade, e consequentemente somos pagos. Nossas palavras consolam as pessoas, atraindo gente para perto de nós. Nossos posts são interessantes, gerando likes. E insidiosamente essas recompensas podem se tornar sedutoras, nos levando a fazer as coisas não mais para contribuir, consolar, ajudar, mas para ganhar dinheiro, atenção, likes. É bom estar atento. Pois quando as consequências de nossas ações se tornam o objetivo principal da vida, nós esquecemos os propósitos originais e perdemos a essência do que fazemos. Risco que pode estar mais perto do que parece. É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’ 

O que a gente entrega e o que recebe em troca quando nós vendemos nossa alma? Quem vende a alma, pensamos logo de cara, deve ter feito por dinheiro. Mas o que exatamente deu?

Gravura clássica para o 'Fausto' de Goethe Foto: Domínio Público

Esse processo pode ser muito mais sutil do que imaginamos – em vez de cenários sombrios ou pactos faustianos macabramente urdidos, ele pode ter lugar em decisões que tomamos no dia a dia e que, sem percebermos, vão esvaziando nossa vida. Nada espalhafatoso, nada escuso. Mas ainda assim, fatal. Deixe-me exemplificar com uma história prosaica. Como já falei em mais de uma ocasião por aqui, uma das coisas que aprendi nesses últimos quase dois anos foi a prestar atenção nas aves. Da incidental curiosidade despertada por um pássaro que cruzou meu caminho, passei a ativamente observar a avifauna onde quer que estivesse. Isso acabou virando um hobby que tem me ajudado a lidar com o estresse dessa pandemia. Comprei guias de observação, tirei meus binóculos do fundo do armário e mandei arrumar uma máquina fotográfica há muito tempo encostada. Meu prazer era localizar um pássaro, observá-lo, tentar identificar a espécie pela forma, tamanho, cores, prestar atenção aos diferentes cantos. Passei então a fotografá-los para ajudar na identificação posterior, sempre um desafio para diletantes neófitos como eu. Algumas fotos ficaram boas, e se tornaram parte do hobby. Até que um dia, estava sem a máquina fotográfica e ouvi alguém bicando perto de mim. Era uma árvore pequena, com galhos finos, não imaginava quem pudesse ser. Procura daqui, olha dali, eis que vejo um pica-pau-anão pela primeira vez. “Que azar”, pensei, “bem quando não estou com minha máquina”. Mas como não poderia fotografá-lo, prestei o máximo de atenção possível aos detalhes, chegando a falar em voz alta para mim mesmo o que estava vendo, para depois identificá-lo de memória com ajuda do guia. Tratava-se de um pica-pau-anão-barrado (Picumnus cirratus), e nem preciso dizer que aquela observação acabou se tornando muito prazerosa, e a identificação, uma grande recompensa. E o que isso tem a ver com a venda da alma? Tudo. Porque o registro fotográfico, que era inicialmente apenas a consequência da observação, foi se transformando num objetivo a ser alcançado, roubando a essência da atividade. A ponto de eu achar que era um azar encontrar um pássaro novo – alegria de qualquer observador de aves – só porque não tinha a máquina em mãos. É assim que se vende uma alma. Na vida, nós fazemos muitas coisas porque elas são importantes ou porque gostamos delas e que geram alguma consequência: nosso trabalho contribui com a sociedade, e consequentemente somos pagos. Nossas palavras consolam as pessoas, atraindo gente para perto de nós. Nossos posts são interessantes, gerando likes. E insidiosamente essas recompensas podem se tornar sedutoras, nos levando a fazer as coisas não mais para contribuir, consolar, ajudar, mas para ganhar dinheiro, atenção, likes. É bom estar atento. Pois quando as consequências de nossas ações se tornam o objetivo principal da vida, nós esquecemos os propósitos originais e perdemos a essência do que fazemos. Risco que pode estar mais perto do que parece. É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’ 

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Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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