Psiquiatria e sociedade

Opinião|Sofrimento não é um tipo de doença que deve ser combatida


Autoengano é um dos fatores por trás das modas diagnósticas. E deve-se evitar cair vítima de ilusões

Por Daniel Martins de Barros
Atualização:

No mundo tereis aflições. Não sou eu que estou dizendo, foi o próprio filho de Deus que nos tirou a esperança de uma vida idílica ao fazer tal afirmação. E, se nos esquecemos disso, caímos vítimas de ilusões perigosas.

A primeira é acreditarmos que o sofrimento será vencido um dia. Buscar alívio é o motor por trás de todo avanço tecnológico, da roda ao ChatGPT, e ao testemunharmos avanços mitigarem dor após dor, podemos nos convencer de que uma hora não sobrará sofrimento a ser debelado. E é quando estamos assim desapercebidos que os golpes nos atingem de forma mais dolorida.

A segunda ilusão é crer que todo sofrimento é um tipo de doença que deve ser combatida. A ideia de doença paradoxalmente se apresenta como uma forma de esperança ou, no mínimo, de alívio. Esperança porque, se estou sofrendo, é em virtude de alguma condição clínica que, quando for diagnosticada, poderá ser curada. E alívio porque, mesmo que não haja cura, encontra-se uma explicação.

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É ilusão acreditarmos que o sofrimento será vencido um dia Foto: Freepik

Esse autoengano é um dos fatores por trás das modas diagnósticas. Sim, tudo o que cerca a atividade humana é influenciado por modas – inclusive os diagnósticos. Há 20 anos, quando eu começava minha carreira como psiquiatra, estava na moda o diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. Tendo passado recentemente por um rebranding, abandonando o assustador nome de psicose maníaco-depressiva, ele se prestava muito bem a explicar os altos e baixos da vida.

A moda tem um lado positivo, não nego, já que muitas pessoas com essa condição que deixariam de ser diagnosticadas acabaram buscando tratamento. Mas passadas duas décadas a vida segue sendo essa montanha-russa com picos e vales, e o entusiasmo pelo diagnóstico passou.

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Antes dele havia sido a síndrome de pânico a estrela da vez. Depois vieram outros: déficit de atenção, personalidade borderline e mais recentemente, burnout e transtorno do espectro do autismo.

Não me entenda mal: todos esses problemas existem de fato e causam muita dor se não tratados. Mas quando eles viram moda perdem o rigor e ampliam indevidamente sua aplicação; em vez de classificar condições clínicas, passam a descrever situações de sofrimento inerentes à condição humana. Deixam de ser diagnósticos e se tornam adjetivos.

Se por um lado essa moda ajuda a divulgar o conhecimento e permite que mais pessoas se tratem, ela invariavelmente leva a distorções e exageros. O que é ruim para as pessoas com as reais condições, cujo sofrimento acaba desqualificado ao ser equiparado a situações corriqueiras, e inútil para a sociedade, que não se verá livre do sofrimento de qualquer forma.

No mundo tereis aflições. Não sou eu que estou dizendo, foi o próprio filho de Deus que nos tirou a esperança de uma vida idílica ao fazer tal afirmação. E, se nos esquecemos disso, caímos vítimas de ilusões perigosas.

A primeira é acreditarmos que o sofrimento será vencido um dia. Buscar alívio é o motor por trás de todo avanço tecnológico, da roda ao ChatGPT, e ao testemunharmos avanços mitigarem dor após dor, podemos nos convencer de que uma hora não sobrará sofrimento a ser debelado. E é quando estamos assim desapercebidos que os golpes nos atingem de forma mais dolorida.

A segunda ilusão é crer que todo sofrimento é um tipo de doença que deve ser combatida. A ideia de doença paradoxalmente se apresenta como uma forma de esperança ou, no mínimo, de alívio. Esperança porque, se estou sofrendo, é em virtude de alguma condição clínica que, quando for diagnosticada, poderá ser curada. E alívio porque, mesmo que não haja cura, encontra-se uma explicação.

É ilusão acreditarmos que o sofrimento será vencido um dia Foto: Freepik

Esse autoengano é um dos fatores por trás das modas diagnósticas. Sim, tudo o que cerca a atividade humana é influenciado por modas – inclusive os diagnósticos. Há 20 anos, quando eu começava minha carreira como psiquiatra, estava na moda o diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. Tendo passado recentemente por um rebranding, abandonando o assustador nome de psicose maníaco-depressiva, ele se prestava muito bem a explicar os altos e baixos da vida.

A moda tem um lado positivo, não nego, já que muitas pessoas com essa condição que deixariam de ser diagnosticadas acabaram buscando tratamento. Mas passadas duas décadas a vida segue sendo essa montanha-russa com picos e vales, e o entusiasmo pelo diagnóstico passou.

Antes dele havia sido a síndrome de pânico a estrela da vez. Depois vieram outros: déficit de atenção, personalidade borderline e mais recentemente, burnout e transtorno do espectro do autismo.

Não me entenda mal: todos esses problemas existem de fato e causam muita dor se não tratados. Mas quando eles viram moda perdem o rigor e ampliam indevidamente sua aplicação; em vez de classificar condições clínicas, passam a descrever situações de sofrimento inerentes à condição humana. Deixam de ser diagnósticos e se tornam adjetivos.

Se por um lado essa moda ajuda a divulgar o conhecimento e permite que mais pessoas se tratem, ela invariavelmente leva a distorções e exageros. O que é ruim para as pessoas com as reais condições, cujo sofrimento acaba desqualificado ao ser equiparado a situações corriqueiras, e inútil para a sociedade, que não se verá livre do sofrimento de qualquer forma.

No mundo tereis aflições. Não sou eu que estou dizendo, foi o próprio filho de Deus que nos tirou a esperança de uma vida idílica ao fazer tal afirmação. E, se nos esquecemos disso, caímos vítimas de ilusões perigosas.

A primeira é acreditarmos que o sofrimento será vencido um dia. Buscar alívio é o motor por trás de todo avanço tecnológico, da roda ao ChatGPT, e ao testemunharmos avanços mitigarem dor após dor, podemos nos convencer de que uma hora não sobrará sofrimento a ser debelado. E é quando estamos assim desapercebidos que os golpes nos atingem de forma mais dolorida.

A segunda ilusão é crer que todo sofrimento é um tipo de doença que deve ser combatida. A ideia de doença paradoxalmente se apresenta como uma forma de esperança ou, no mínimo, de alívio. Esperança porque, se estou sofrendo, é em virtude de alguma condição clínica que, quando for diagnosticada, poderá ser curada. E alívio porque, mesmo que não haja cura, encontra-se uma explicação.

É ilusão acreditarmos que o sofrimento será vencido um dia Foto: Freepik

Esse autoengano é um dos fatores por trás das modas diagnósticas. Sim, tudo o que cerca a atividade humana é influenciado por modas – inclusive os diagnósticos. Há 20 anos, quando eu começava minha carreira como psiquiatra, estava na moda o diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. Tendo passado recentemente por um rebranding, abandonando o assustador nome de psicose maníaco-depressiva, ele se prestava muito bem a explicar os altos e baixos da vida.

A moda tem um lado positivo, não nego, já que muitas pessoas com essa condição que deixariam de ser diagnosticadas acabaram buscando tratamento. Mas passadas duas décadas a vida segue sendo essa montanha-russa com picos e vales, e o entusiasmo pelo diagnóstico passou.

Antes dele havia sido a síndrome de pânico a estrela da vez. Depois vieram outros: déficit de atenção, personalidade borderline e mais recentemente, burnout e transtorno do espectro do autismo.

Não me entenda mal: todos esses problemas existem de fato e causam muita dor se não tratados. Mas quando eles viram moda perdem o rigor e ampliam indevidamente sua aplicação; em vez de classificar condições clínicas, passam a descrever situações de sofrimento inerentes à condição humana. Deixam de ser diagnósticos e se tornam adjetivos.

Se por um lado essa moda ajuda a divulgar o conhecimento e permite que mais pessoas se tratem, ela invariavelmente leva a distorções e exageros. O que é ruim para as pessoas com as reais condições, cujo sofrimento acaba desqualificado ao ser equiparado a situações corriqueiras, e inútil para a sociedade, que não se verá livre do sofrimento de qualquer forma.

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Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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