Embora pareçam dois problemas distintos, as mudanças climáticas e a poluição do ar estão intimamente ligadas. Temperaturas extremas como as que temos vivido aumentam a concentração de poluentes na atmosfera e, consequentemente, pioram a nossa saúde. O primeiro impacto – e mais óbvio – são os danos ao sistema respiratório, com maior prevalência de doenças como asma, bronquite e, mais a longo prazo, câncer pulmonar. Mas não para aí.
Os danos da poluição não se restringem aos nossos pulmões: eles afetam o sistema cardiovascular, aumentando o risco de casos de infarto e acidente vascular cerebral (AVC); elevam a probabilidade de demência; pioram eventos de dor em pacientes com esclerose múltipla; podem levar ao parto prematuro e baixo peso ao nascer e aumentam a chance de câncer de bexiga e esôfago.
O homem tem contribuído com o aumento da poluição e com o aquecimento global por meio de um estilo de vida que usa recursos de forma intensiva – produzimos e consumimos muito e, como resultado, geramos mais gases do efeito estufa, bem como poluentes. Não à toa, a Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que as mudanças climáticas são uma das emergências de saúde mais urgentes da atualidade.
“A mudança do clima afeta a poluição e a saúde como um todo. As duas coisas andam juntas, é impossível separar. Nossos invernos estão ficando mais curtos, enquanto o outono e a primavera estão cada vez mais quentes, secos e longos. As temperaturas mais altas vão bloqueando frentes frias e, com isso, aumentando a concentração de poluentes, o que acaba impactando a saúde geral da população”, descreve Fábio Luiz Teixeira Gonçalves, professor do Departamento de Ciências Atmosféricas do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP).
Os primeiros estudos relacionando a poluição a prejuízos à saúde são da década de 1950, após uma estagnação de massa de ar em Londres, na Inglaterra, provocar mortes de dezenas pessoas em curto espaço de tempo. A cidade possuía muitas indústrias com eletricidade a carvão e o dióxido de enxofre emitido pela queima do carvão se transformava em ácido sulfúrico. Concluiu-se que respirar essa substância não fazia bem para a saúde. “Somente em 1956 foram publicadas as primeiras medidas reguladoras com índices a serem respeitados sobre qualidade do ar”, conta o patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP e um dos principais estudiosos dos impactos da poluição na saúde.
O segundo grande achado dos efeitos danosos da poluição para além das causas respiratórias foi um estudo publicado na década de 1990, que seguiu seis cidades americanas e avaliou as variações de expectativa de vida e os níveis históricos de poluição ao longo de décadas. Os pesquisadores constataram que o risco de morrer por doenças respiratórias e cardiovasculares aumentava com a poluição – ou seja, quanto maior a poluição da cidade, menor a expectativa de vida. Os problemas cardiovasculares mais comuns eram infarto e acidente vascular cerebral (AVC).
“Esse estudo começou em 1970, e só foi publicado em 1993, no New England Journal of Medicine. Foi um grande marco e, a partir daí, começamos a perceber que não havia faixa de segurança nos níveis de poluição. Começaram a surgir padrões globais que seriam seguidos pelo mundo todo. Em 2021, foram atualizadas as diretrizes, baseadas em estudos que avaliam efeitos crônicos de vários poluentes ao longo de anos”, ressalta Saldiva.
Fibrose cardíaca
Agora, um estudo recém-publicado pela equipe de Saldiva, feito em cadáveres, mostrou que aqueles que foram expostos à poluição das grandes cidades (especialmente às partículas de carbono negro) tinham mais fibrose cardíaca – que é um indicador de doenças do coração.
Para chegar à conclusão, os pesquisadores fizeram autópsia de 238 pessoas que morreram e cujos corpos passaram pelo Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), o maior serviço de autópsia médica do Brasil. Eles entrevistaram familiares das vítimas para coletar dados sobre fatores de risco, como tabagismo e hipertensão. Analisaram amostras do tecido pulmonar para estabelecer a presença e a quantidade de carbono negro nos pulmões e a mostras do tecido do coração para identificar a presença de fibrose cardíaca.
Segundo Saldiva, os resultados apontam uma associação significativa entre a quantidade de carbono negro nos pulmões e a fibrose cardíaca nos corpos estudados – o que comprova que quanto mais tempo a pessoa é exposta à poluição, maior a chance de desenvolver fibrose. E, se ela tivesse histórico de hipertensão, esse risco era ainda maior.
“Diversos fatores, entre eles a própria hipertensão, influenciam no desenvolvimento da fibrose cardíaca. O que esse estudo demonstra é que a poluição é mais um fator de risco a ser considerado”, diz o professor, ressaltando que a exposição à poluição não é apenas mais relacionada à emissão dos poluentes, mas também aos níveis socioeconômicos, de moradia e trabalho. “Onde respiramos mais poluição hoje em São Paulo? No trânsito. E quem fica mais tempo no trânsito? As pessoas mais pobres, que estão num corredor de tráfego por horas e recebem uma dose maior de poluentes porque a concentração nesse ambiente é particularmente mais elevada”, analisa.
Casos de câncer
Evidências científicas também têm demonstrado aumento de casos de câncer de pulmão em mulheres jovens não fumantes, além de tumores de bexiga e de esôfago – todos relacionados à exposição à poluição do ar.
“Não é uma certeza ainda, mas há muitas evidências nesse sentido. Tudo o que um maço de cigarro provoca no corpo, por exemplo, é reproduzido em dose menor com a poluição. É claro que os riscos do cigarro são muito maiores do que os da poluição. O problema é que a poluição é inescapável, todo mundo respira ar poluído. E esse é um risco para o qual a pessoa não tem escolha individual [como escolher parar de fumar], ela depende de políticas públicas. Não tem como comprar ar engarrafado”, pontua o professor Saldiva.
Leia Também:
Prematuridade e baixo peso
Outro efeito reconhecido dos poluentes é no desenvolvimento dos bebês durante a gestação – eles invadem o organismo da mãe, atravessam a placenta e aumentam o risco dessa criança nascer prematura ou com baixo peso (menos do que 2,5 kg).
Estudos encontraram partículas de materiais poluentes comumente detectados em grandes cidades na placenta de mulheres grávidas. Além disso, a exposição à poluição aumenta a possibilidade de a gestante de desenvolver hipertensão gestacional e pré-eclâmpsia (os riscos são maiores no primeiro e terceiro trimestres da gestação).
“Embora a placenta tenha a função de filtrar um monte de coisas, ela não segura tudo. Essas micropartículas entram pelo pulmão da mãe e se espalham por todo organismo. Elas atravessam a placenta e chegam ao feto, promovendo uma reação inflamatória”, explica Saldiva.
Declínio cognitivo e demência
Outro estudo recém-publicado constatou impacto da poluição no cérebro, acelerando o declínio cognitivo e quadros de demência. Os pesquisadores acompanharam uma coorte de 25.233 enfermeiros dinamarqueses entre 1993 e 2020 e, no período, 1.409 desenvolveram demência. Após fazer ajustes para estilo de vida, condição socioeconômica e ruídos de tráfego, os cientistas constataram que a exposição prolongada à poluição estava associada ao risco de desenvolver demência ao longo da vida.
Um fato interessante, no entanto, é que essa relação não foi encontrada nos enfermeiros fisicamente ativos, o que sugere que a atividade física pode ser um fator que ajuda a proteger e, assim, diminuir os riscos.
“A poluição tem efeitos sistêmicos, inclusive com maior risco para Alzheimer em pessoas que vivem próximas a regiões com muita poluição. Esse estudo dinamarquês é mais uma evidência a ser somada às outras. Quanto mais multifatorial a doença, mas tempo você demora para determinar a casualidade”, comenta Saldiva.
Esclerose múltipla
Já um estudo brasileiro publicado no ano passado na revista científica Sclerosis constatou que a poluição do ar também está relacionada a mais casos de internação por crises de dor causadas por desconforto térmico (frio ou calor) em pessoas com esclerose múltipla. Os pesquisadores, junto com o professor Gonçalves do IAG-USP, avaliaram casos entre 2008 e 2015.
Alguns estudos anteriores já demonstravam uma possível ligação entre poluição atmosférica e as hospitalizações por esclerose múltipla – já que exposições a certos poluentes podem aumentar a resposta inflamatória sistêmica e a neuroinflamação. “O nosso estudo constatou que o dióxido de enxofre presente no ar também afeta a bainha de mielina e aumenta crises de dor em pessoas que sofrem de esclerose múltipla”, conta o professor Gonçalves.
A esclerose múltipla é uma doença neurológica autoimune, caracterizada por uma inflamação e doença desmielinizante, em que a bainha de mielina vai sendo destruída e, consequentemente, diminui a função neurológica do paciente. Acredita-se que a doença seja causada por alguma predisposição genética e fatores ambientais que podem promover uma disfunção do sistema imunológico. Mas os motivos exatos ainda são desconhecidos.
Mais problemas
A poluição também está associada a problemas de pele, mas é mais difícil de comprovar esse elo, porque quase não há base dados para serem feitos estudos sobre o tema – dificilmente alguém será hospitalizado por uma dermatite na pele, por exemplo.
Os rins também ficam sobrecarregados com a poluição, especialmente em pessoas que não se hidratam corretamente. “Temos que beber muita água para que o organismo possa limpar essa poluição que inalamos o tempo todo. Se não bebemos água, não eliminamos esses poluentes que são cancerígenos e ainda sobrecarregamos os rins”, diz o professor Gonçalves.