A cannabis medicinal passou a ser notada no Brasil também pelos dentistas, que começam a se organizar em grupos de estudos sobre casos clínicos e pesquisas científicas para melhor embasar seus métodos e aplicações em clínicas espalhadas pelo País.
Poucos profissionais da área já prescrevem THC e CDB e apenas uma pequena porcentagem dos mais de 180 mil pacientes de cannabis medicinal no Brasil é derivado da odontologia.
Desde que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a cannabis medicinal no País, médicos e cirurgiões-dentistas receberam as mesmas permissões de prescrição e uso. Porém, por haver muito mais pesquisas a respeito da efetividade da planta na Medicina do que na Odontologia, a primeira acabou por se desenvolver muito mais depressa. Estima-se que 2.100 dos 502 mil médicos em atividade hoje no Brasil prescrevam a substância. Não há dado oficial, mas um porcentagem ainda menor dos cerca de 550 mil dentistas prescreve cannabis.
Neste ano, a Anvisa incluiu o campo “CRO”, referente ao Conselho Regional de Odontologia, nos formulários de pedidos de importação pela RDC 660. Até o ano passado, os dentistas tinham de usar seus números de registro no campo “CRM (Conselho Regional de Medicina)”, o que dificultava o processo de importação em alguns casos.
Para integrar interessados em adotar a cannabis na prática clínica, Conselhos Regionais de Odontologia, como os de São Paulo, Rio, Alagoas e Distrito Federal, criaram grupos de trabalho dentro de seus conselhos para gerar mais debate sobre o tema. Organizações de profissionais, como a Sbocan (Sociedade Brasileira de Odontologia Canabinoide), também existem com o propósito de fomentar a troca de ideias sobre a cannabis como mais uma ferramenta da prática.
A ideia é oferecer canais para tirar dúvidas e comentar casos clínicos, além do suporte jurídico aos profissionais que tiverem receio quanto à legalidade da prescrição. Os associados contam ainda com o acesso a um compilado de artigos científicos e cursos e têm o perfil incluído em uma lista de dentistas prescritores disponibilizada à população. Segundo especialistas, por ser um campo mais recente da pesquisa, é importante estar atento aos dados e resultados de estudos para entender quais são as evidências científicas já consolidadas e aquelas que ainda estão sob revisão.
A presidente da Sbocan, Endy Lacet, é reconhecida como a primeira dentista no Brasil a utilizar a terapia canabinoide na Odontologia, em 2015. Ela foi uma das fundadoras da Abrace, uma das mais consolidadas associações de pacientes de cannabis medicinal do País.
Endy ainda estava na faculdade quando atendeu uma criança autista, que saia correndo pelo hospital sem deixar que a equipe tirasse o raio x de sua boca. Ela, então, apresentou a proposta de entrar com a terapia canabinoide e foi chancelada pelos professores.
O garoto, previamente medicado com azeite de maconha, permitiu que lhe fossem feitas três restaurações na sessão seguinte. “A mãe chorou. Nunca tinha visto um remédio que acalmasse o filho a tal ponto dele não sentir medo”, conta ela, que optou pela estratégia de sedação multimodal, que preconiza estruturar o paciente previamente em vez de aplicar uma bomba de sedativos quando ele chega na cadeira do dentista.
Silvana Vasconcellos sofre de esclerose múltipla há 16 anos e é paciente de Endy por causa de uma neuralgia do nervo trigêmeo, que, há cinco anos, a faz padecer de uma dor facial intensa. “Comecei a usar a cannabis no início do ano e notei grande melhora. Diminuiu minha medicação para a neuralgia de 900 mg para 300 mg por dia”, comemora.
Segundo Endy, dá para usar a cannabis como coadjuvante ou adjuvante, sem excluir, necessariamente, outros medicamentos. “O negócio é pensar na melhor forma de tratamento para ter qualidade de vida, minimizando os efeitos colaterais que, muitas vezes, são até mais fortes que os efeitos terapêuticos”, aponta. “Com a terapia canabinóide, não há efeitos colaterais que prejudiquem outros sistemas; pelo contrário, ela ajuda a modular os outros sistemas.”
Como é a utilização
Assim como na Medicina, a cannabis vem demonstrando versatilidade em seus possíveis usos na Odontologia, podendo ser empregada antes, durante ou após o tratamento. Ela pode, por exemplo, ser utilizada em procedimentos como restaurações, na modulação de sedação e como analgésico pós-operatório ou para osteoindução – a formação de um novo osso pela influência de agentes indutores.
O tetrahidrocanabinol é responsável por tratar, sobretudo, casos de dor, enquanto o canabidiol é mais indicado para inflamações. Considerados igualmente importantes pelos dentistas, os dois canabinóides e a centena de outros que os acompanham nas versões full spectrum da planta têm apresentado bons resultados para bruxismo, dores dentárias ou neuropáticas, enxertos, DTM (disfunção da articulação temporomandibular), inflamações, cicatrizações, periodontite e controle bacteriano.
Embora a terapia canabinóide aplicada à Odontologia não seja novidade no mundo, ela ainda não se popularizou. Estados Unidos e Canadá são os países que se destacam nessa área, desde o atendimento clínico, até, e cada vez mais, a criação de produtos para a higiene bucal, como pastas de dente e enxaguante à base da planta.
Guilherme Martins, vice-presidente da Sbocan e dono do canal Odontologia Canabinoide no YouTube, já conseguiu cerca de mil autorizações na Anvisa para prescrições de cannabis. Segundo ele, os possíveis efeitos colaterais são pequenos, facilmente reconhecíveis e dimensionados na terapêutica. Geralmente, nada além de sonolência, enjoos ou incremento do apetite.
No entanto, isso não significa que a cannabis não tenha contra-indicação. Pacientes com doenças crônicas renais e hepáticas, distúrbios psiquiátricos e gestantes, por exemplo, não devem fazer tratamento odontológico com a substância.
Ele afirma evitar o uso do THC em menores de idade. “Utilizo com parcimônia o THC e observo interações medicamentosas, especialmente com outras medicações controladas”, aponta Martins.
Às vezes, as interações acontecem por descuido, como tomar as gotas de maconha ao mesmo tempo em que engole um medicamento alopático. “Costumo orientar a não tomar na mesma hora, porque cada um tem um mecanismo diferente, e tomar ao mesmo tempo dá um ‘tilt’ no seu organismo. Por isso, é sempre melhor tomar o óleo com pelo menos uma hora de diferença de outra substância”, complementa Endy.
O que diz o conselho federal
“É importante que o profissional tenha a formação de base, que conheça os endocanabinoides produzidos pelo nosso corpo e os fitocanabinoides encontrados na cannabis antes de prescrever”, orienta João Paulo Tanganeli, presidente do grupo de trabalho de canabinóides na odontologia do CRO-SP.
A maior entidade de classe do setor, o Conselho Federal de Odontologia (CFO), apoia a utilização da cannabis, mas reforça a necessidade de qualidade da formação recebida por quem a administra. “Se o profissional conhecer o medicamento, souber como trabalhar com ele, não há problema de usá-lo. Isso vale para todos os medicamentos, não apenas para a cannabis”, diz Evaristo Volpato, diretor do conselho da entidade desde 2018.
O próximo passo aguardado pelo setor é a adequação da RDC 327/19, resolução que dispõe sobre as autorizações para a fabricação, importação, comercialização e prescrição de produtos nacionais, além da venda nas farmácias, de cannabis para fins medicinais e que acabou deixando os dentistas de fora. “Nem todas (as farmácias) aceitam prescrição de dentista”, revela Claudia Tambeli, que usa a substância em tratamentos no seu consultório.
A resolução 327 esteve com consulta pública aberta até o último dia 17 e agora o texto se encontra na etapa de revisão, que deve ser publicada nos próximos meses.