É comum que muitas crianças e muitos adolescentes tenham certa aversão às aulas de matemática. Isso é até esperado, já que uma boa parcela não consegue enxergar um uso prático de equações e raízes quadradas, por exemplo. A situação gera um desinteresse pela disciplina, muitas vezes ignorado pelos pais. Mas, quando as notas no boletim ficam baixas, aí o estudante costuma ser cobrado para se empenhar mais – como se fosse uma questão de preguiça. O problema é que essa dificuldade pode sinalizar de fato algo mais complexo: a discalculia.
Trata-se de um transtorno específico de aprendizagem que normalmente não é valorizado no ensino básico e, por isso, só costuma ser diagnosticado muitos anos após o início do processo de alfabetização.
“Não é incomum que esse diagnóstico só aconteça na adolescência porque, em geral, as dificuldades matemáticas da criança no ensino básico não são valorizadas. Muitas vezes, os próprios pais alegam que também tinham problemas com a disciplina na infância”, diz Sônia Rodrigues, neuropsicopedagoga do Instituto Interdisciplinar do Neurodesenvolvimento, presidente do Capítulo Paulista da Associação Brasileira de Psicomotricidade e membro da diretoria da Associação Brasileira de Neurologia, Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (Abenepi).
Segundo Sônia, se a criança em idade escolar se atrapalha com leitura ou escrita, quase imediatamente pais e professores ficam mais atentos, começam a investigar e entram com processo de intervenção e reforço na escola.
“Se essas tentativas não resolvem, os pais procuram ajuda de especialistas da área da saúde, em geral um neuropediatra, um psicólogo, um fonoaudiólogo. Mas o mesmo não acontece com a matemática” nota a especialista. “A percepção é de que todos têm alguma dificuldade com a disciplina e que isso uma hora vai passar”, acrescenta.
Como identificar a discalculia?
De acordo com a psicopedagoga Rita Thompson, representante da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a discalculia é um problema causado por uma má formação neurológica, que se manifesta com problemas no aprendizado de números. A disfunção acomete áreas do sistema nervoso central responsáveis pelo processamento dos cálculos matemáticos – ou seja, é uma condição clínica que causa prejuízo especificamente na matemática, não em outras áreas do conhecimento.
Sônia informa que o sulco intraparietal cerebral, responsável pelo senso numérico, é uma das principais áreas afetadas, porém, outras regiões também podem estar disfuncionais, como é o caso do córtex temporo-parietal (que faz a recuperação de fatos aritméticos na memória de longo prazo) e regiões occipito-temporais (responsáveis pelo processamento visual de informações visuais numéricas).
É importante destacar que não se trata de uma lesão cerebral, mas, sim, de uma disfunção no processamento da matemática. “Essa criança não terá trabalho para aprender a ler e a escrever. A dificuldade é no processamento dos cálculos”, reforça a neuropsicopedagoga.
“Essa questão não é causada por deficiência intelectual, má escolarização, déficits visuais ou auditivos, e não tem ligação com níveis de QI e inteligência”, acrescenta Rita.
Prevalência
Não existem números específicos de incidência desse distúrbio, mas estima-se que entre 3% e 5% dos escolares tenham algum tipo de transtorno de aprendizagem. Entre eles, estão a dislexia (que é a dificuldade com a leitura), a discalculia e a disgrafia.
Se não forem identificados adequadamente, esses quadros podem levar a problemas e sofrimento ao longo da vida.
Apesar de ser incomum, é possível reconhecer fatores de risco para o transtorno na criança no início da idade escolar. Mas, para isso, é importante que os professores do ensino infantil estejam atentos aos sinais.
Rita aponta a necessidade de olhar para competências numéricas precoces, como discriminação de quantidades, habilidade de contagem, conceito de adição e de subtração, compreensão do sistema decimal e reconhecimento de numerais e símbolos. Entraves nesses pontos podem surgir durante o desenvolvimento acadêmico da criança e sinalizar que é o momento de buscar apoio profissional.
Como é o diagnóstico?
Deve-se primeiro investigar se a dificuldade de matemática não é decorrente de fatores pedagógicos (como método inadequado de ensino ou de aprendizagem), falta de estímulo, desmotivação e por aí vai.
Excluída essa possibilidade, o diagnóstico da discalculia é essencialmente clínico e deve envolver uma equipe multiprofissional que vai avaliar diferentes áreas do neurodesenvolvimento.
É preciso levar em consideração uma série de fatores, que envolvem desde habilidades de linguagem, memória, atenção, funções executivas e orientação espacial até aspectos ambientes e emocionais.
Parece simples, mas há casos de pessoas que demoram anos para chegar ao diagnóstico correto e só descobrem o problema na adolescência, depois de passar por diferentes profissionais e tratar equivocadamente outros problemas.
“Os adolescentes com discalculia costumam adotar estratégias básicas e primárias para solucionar problemas de matemática, como fazer contas de somar com os dedos ou usar risquinhos no papel para conseguir contar”, conta Sônia.
Desempenho ruim
Dados do Saeb 2021 (Sistema de Avaliação da Educação Básica), exame realizado pelo governo federal a cada dois anos, apontam que nos anos iniciais do ensino fundamental em escolas públicas e privadas, a aprendizagem de matemática dos alunos do 5º ano caiu 11 pontos em comparação com o exame anterior (foi de 228 para 217 pontos).
Isso significa que esses estudantes não seriam capazes de converter mais de uma hora inteira em minutos, por exemplo, ou resolver problemas como adição e subtração de cédulas e moedas. No caso dos alunos do 9º ano, a proficiência caiu de 263 para 256 pontos e, para os estudantes do ensino médio, a queda foi de sete pontos: de 277 para 270.
“No 5º ano, somente 51% das crianças têm bom desempenho em matemática. Quando olhamos para os alunos do 9º ano, isso cai para em torno de 25%. No ensino médio, é pior ainda: somente 10% dos estudantes têm bom desempenho. A grande maioria tem dificuldade e o ponto é exatamente esse: nem toda criança apresenta discalculia, mas é preciso perceber os sinais para fazer as intervenções mais precocemente”, alertou Sônia.
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Existe tratamento?
Por ser um déficit relacionado a determinadas áreas do cérebro, o transtorno é uma condição permanente e não há cura.
Por outro lado, quanto mais cedo a discalculia for identificada e tratada, melhor será o prognóstico. Afinal, o cérebro responde melhor a estímulos em idades precoces, em função da melhor plasticidade cerebral.
Em geral, após o diagnóstico, são feitas intervenções voltadas para as defasagens identificadas e adotadas estratégias para ensinar a criança a lidar com a dificuldade.
A intervenção não envolve apenas o contexto clínico, mas também o pedagógico – já que é na escola que a criança passa a maior parte do tempo. O objetivo é atuar nas funções cerebrais que estão defasadas para que a criança adquira habilidades para lidar com os obstáculos do dia a dia.
O tipo de intervenção varia de caso a caso, pois há pessoas com diferentes níveis de disfunção – de leve à grave. “É preciso desenvolver um programa escolar específico para a criança, com adaptações necessárias à idade, ao nível de desenvolvimento e às dificuldades que apresenta”, ensina Sônia.
Sem o diagnóstico correto, muitas crianças podem desenvolver outros transtornos, como ansiedade e depressão. “Na prática, o que se observa é que quando damos um nome para a dificuldade, tiramos um peso muito grande daquela criança. Por isso, é importante estarmos sempre atentos”, informa Sônia.
O tempo de intervenção depende de quando começou o processo, do nível de gravidade e da aderência da criança, família e escola. “Em geral, permanece até que ela adquira conhecimentos elementares e tenha ferramentas para lidar com as dificuldades”, finaliza a neuropsicopedagoga.
Os principais sintomas de discalculia
A discalculia está presente antes de a criança entrar na escola e pode ser observada em situações cotidianas, em brincadeiras e interações sociais. Os principais sintomas são:
- Dificuldade para contar, especialmente de trás para a frente;
- Atraso na aprendizagem para somar números;
- Dificuldade para saber qual o número maior, quando comparado números simples como 2 e 6;
- A criança não consegue criar estratégias para fazer contas, como contar nos dedos;
- Dificuldade para distinguir sinais de cálculos matemáticos;
- Dificuldade para organizar os problemas matemáticos e terminar cálculos;
- Dificuldade para entender ou associar um número com uma palavra, por exemplo, que o número 7 é o mesmo que a palavra “sete” e que ambos significam “sete itens”;
- Dificuldade para entender frases matemáticas como “maior que” e “menor que”;
- Evitar situações que necessitam da compreensão de números, como jogos que envolvem matemática;
- Dificuldade para estimar o tempo;
- Dificuldade para entender velocidade e distância;
- Dificuldade extrema para cálculos mais complexos do que somar;
- Evitar fazer atividades que possam envolver matemática.
Fonte: Rita Thompson, psicopedagoga e representante da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)