Divisão do SUS para os Yanomami jogou fora 257 mil unidades de medicamentos em 2023


Distrito Sanitário Yanomami (DSEI-YY), que atende a 30 mil indígenas, informou ter descartado centenas de milhares de itens em resposta a questionamento via Lei de Acesso; ministério diz que herdou estoques ‘sem tempo hábil para uso’

Por André Shalders e Gabriel de Sousa

Ao longo do ano de 2023, a unidade do SUS para atendimento aos indígenas da etnia Yanomami, em Roraima, jogou fora centenas de milhares de medicamentos que perderam a validade. Dentre os remédios desperdiçados há pelo menos um lote de uma droga de custo elevado. Foram jogadas fora 1.690 unidades de Paxlovid, um antiviral para combate à covid-19, vendido a quase R$ 5 mil a caixa – no mercado, a quantidade descartada sairia a quase R$ 250 mil. Também foram descartados outros insumos, como milhares de testes rápidos de covid-19 e de HIV. Os Yanomami enfrentam grave crise humanitária nos últimos anos.

Ao Estadão, o Ministério da Saúde afirmou que herdou do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estoques de medicamentos “sem tempo hábil para distribuição e uso”. A pasta disse também que busca reestruturar as políticas de saúde indígena “evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade”. (leia a nota completa no final da reportagem)

Segundo líderes indígenas ouvidos pela reportagem, a Terra Indígena Yanomami sofreu com a falta de medicamentos durante o período em que esses remédios agora descartados estavam válidos, ao longo de 2021 e 2022.

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Medicamentos destinados ao DSEI-YY encontrados numa casa abandonada em Boa Vista (RR) Foto: @urihiyanomami via Instagram

Os medicamentos foram descartados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-YY), uma subdivisão do Sistema Único de Saúde (SUS) voltada ao atendimento deste povo indígena em regiões dos Estados de Roraima e do Amazonas. As informações sobre o descarte foram fornecidas pelo próprio DSEI-YY, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A resposta inclui dois conjuntos de tabelas; no maior deles, o número de unidades de medicamentos descartados soma mais de 257 mil itens.

De longe, as drogas com maior quantidade descartada são a ivermectina (até 48.228 comprimidos) e a cloroquina (até 12.580). As duas drogas foram apostas do governo de Jair Bolsonaro (PL) para o combate à pandemia de Covid-19, embora não exista comprovação da efetividade delas no tratamento da doença. A cloroquina é também usada no tratamento da malária, doença comum na região.

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Uma das tabelas do DSEI-YY menciona quase 40.000 comprimidos do vermífugo Ivermectina descartados Foto: DSEI-YY / Reprodução

A crise humanitária enfrentada pelos Yanomami voltou à cena recentemente, quando dados do Ministério da Saúde (MS) mostraram um possível aumento da mortalidade dos Yanomami no primeiro ano do governo Lula (PT). Segundo os dados obtidos pelo site Poder360, foram 363 óbitos em 2023, ante 343 em 2022 – uma alta de 5,8%. O MS nega o aumento, e diz que há subnotificação das mortes de 2022.

Líderes indígenas ouvidos pelo Estadão atribuem as mortes na região principalmente à destruição do modo de vida tradicional dos Yanomami e à entrada de garimpeiros ilegais no território, expondo os indígenas a doenças e a atos de violência. Além das doenças, os Yanomami sofrem com a desnutrição e a fome. Em janeiro de 2023, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou a investigação de possível crime de genocídio contra os Yanomami por parte do governo Bolsonaro.

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Ao responder aos questionamentos, o DSEI-YY enviou dois conjuntos de tabelas: o primeiro parece ser um resumo de todos os medicamentos vencidos descartados ao longo de 2023, até a data da resposta, em outubro. Neste primeiro conjunto, os remédios descartados somam pouco mais de 150 mil itens, incluindo 43.412 comprimidos do vermífugo ivermectina. O segundo conjunto inclui pouco mais de 50 tabelas de medicamentos descartados ao longo do ano de 2023, somando 257.686 itens.

Cada tabela nesse segundo conjunto é acompanhada de um ofício, assinado por uma farmacêutica, informando a Divisão de Atenção à Saúde Indígena (Diasi) sobre o descarte. Do total jogado fora, 86% perdeu a validade ao longo de 2023, mas há também medicamentos que venceram em anos anteriores (até 2015) e remédios ainda dentro da data de validade. “Trata-se o presente expediente referente a solicitação de descarte de resíduos de serviços de saúde (...), conforme a planilha anexa”, diz um dos ofícios, datado de março de 2023.

Um dos ofícios do DSEI-YY informando sobre o descarte de medicamentos Foto: DSEI-YY / Reprodução
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Alguns dos lotes de medicamentos presentes no segundo conjunto de tabelas também constam do primeiro. Portanto, não é possível somar os dois. No segundo conjunto de tabelas, há menção a 48.228 comprimidos de ivermectina e 12.580 de cloroquina. O primeiro medicamento tem validade de dois anos, e o segundo, de três anos – o que sugere que os estoques foram comprados ainda durante o governo de Jair Bolsonaro.

Num dos casos, há o registro de descarte de 1.690 unidades de Paxlovid 150mg da Pfizer. O antiviral foi desenvolvido para tratar casos de covid-19 durante a pandemia, e não é barato: cada caixa com 30 comprimidos sai entre R$ 4,6 mil e R$ 4,8 mil. Mesmo que as “unidades” sejam comprimidos, e não caixas, o valor total dos medicamentos jogados fora seria de pouco mais de R$ 250 mil, considerando os preços de mercado.

Tabela mostra descarte de 1.690 unidades de Paxlovid Foto: DSEI-YY / Reprodução
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Os materiais descartados incluem ao menos 1.910 testes rápidos de Covid-19 e medicamentos relativamente caros, como ampolas de citrato de fentanila, um analgésico injetável. Neste caso, cada conjunto de 50 ampolas é vendido a R$ 473 – o documento fala em 3.350 dessas, ou seja, pouco mais de R$ 31 mil foram perdidos só neste medicamento. Há ainda 152 testes rápidos de HIV / Aids. Cada um é vendido nas farmácias entre R$ 53,50 e R$ 99. Para tratar e compilar os dados de medicamentos descartados, a reportagem usou a ferramenta Pinpoint, do Google.

A sede do DSEI-YY fica na capital Boa Vista (RR), mas o órgão inclui também 37 polos base e 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI), que atendem um público de quase 28 mil indígenas, espalhados por 366 aldeias. Além dos Yanomami, que formam o grupo mais numeroso, o DSEI-YY atende também às etnias Sanumã, Ninan, Yawari/Xamathari e Yekuana. No fim de 2022, 807 profissionais trabalhavam no DSEI-YY, que foi o primeiro do tipo criado no país, ainda em 1991. Hoje, há 34 DSEIs em funcionamento.

Kleber Karipuna é coordenador-executivo da APIB. Ele considera que o desperdício de medicamentos é grave, especialmente porque os insumos podem estar faltando em outras áreas. É preciso verificar se houve compra em excesso dos produtos; se eles foram acondicionados corretamente e de quem é a responsabilidade – é provável, inclusive, que os medicamentos tenham sido comprados no governo anterior, aponta ele.

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Frasco de Amoxicilina descartado numa casa abandonada em Boa Vista Foto: @urihiyanomami via Instagram

Karipuna diz ainda que a entrada de garimpeiros ilegais nas terras indígenas é hoje o “principal vetor” de aumento da mortalidade dos yanomami. A crise atual é resultado de décadas de negligência do poder público e não será resolvida só pela ação do Ministério da Saúde e da Funai, diz. Outras políticas públicas, como a de segurança, também são necessárias.

Medicamentos vencidos em casa abandonada

No dia 31 de janeiro deste ano, a Polícia Civil de Roraima (PC-RR) encontrou vários sacos de lixo e caixas de medicamentos vencidos numa casa abandonada em Boa Vista. Os produtos eram destinados ao DSEI Yanomami. O flagrante ocorreu durante uma apuração sobre tráfico de drogas no bairro São Francisco, na zona Norte da cidade. Na ocasião, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, disse que os medicamentos já estavam vencidos desde o governo Bolsonaro. As investigações sobre o caso foram repassadas à Polícia Federal (PF).

Esta não é a primeira apuração envolvendo a gestão de medicamentos no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. No fim de 2022, a PF e o Ministério Público Federal (MPF) deflagraram a operação Yoasi, destinada a apurar a suposta fraude na compra de medicação destinada ao DSEI-YY. Dois ex-coordenadores do órgão e um empresário foram alvo da operação. Segundo os investigadores, a empresa deixou de entregar os medicamentos comprados, provocando desabastecimento no DSEI-YY. Em outubro passado, houve uma nova fase da Yoasi, mirando a operação de lavagem do dinheiro desviado.

Tabela mostra relação de medicamentos descartados ao longo de 2023 Foto: DSEI-YY / Reprodução

Apesar disso, na resposta ao pedido de Lei de Acesso à Informação, o DSEI-YY diz que todo o processo de descarte de medicamentos é acompanhado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Controladoria-Geral da União (CGU), sendo que as últimas auditorias desses dois órgãos foram junho e julho de 2023, respectivamente. Os principais motivos para o descarte de medicamentos são “rupturas ou danos nos invólucros das embalagens” e “validade expirada”, segundo a resposta. “O descarte é realizado mediante empresa licitada e contratada para o desenvolvimento de serviço de gestão dos resíduos dos serviços de saúde (...). O protocolo estabelece que toda medicação descartada seja quantificada e identificada quanto ao lote, validade e fabricante”.

Houve falta de medicamentos sob Bolsonaro, diz Yanomami

Segundo o líder indígena Júnior Hekurari Yanomami, morador da comunidade Surucucu, o principal problema enfrentado pela etnia durante o governo Jair Bolsonaro foi a falta de medicamentos – não o excesso.

“Em 2020, nós Yanomami cobramos muito, avisamos muito que o medicamento tava faltando na Terra Indígena Yanomami. Muita gente, muitas crianças morreram por falta de medicamento. Antibióticos, azitromicina, de febre, e outros. Naqueles anos, 2020, 2021, 2022, faltou medicamento na comunidade. E profissionais, também. Na época, denunciamos à Polícia Federal e eles descobriram que havia desvios de medicamentos”, diz ele, que é presidente da Urihi Associação Yanomami. “Eu mesmo denunciei bastante essa falta de medicamentos. Polícia Federal e Ministério Público Federal começaram a investigar e descobriram que tinha muita coisa errada”, conta Júnior Hekurari.

“Em 2021, 2020, a gente também tinha muitos relatos de gestores que desviavam (os medicamentos) para os garimpos, na terra indígena Yanomami”, diz Hekurari. “Gestores que trabalhavam no setor de medicamento também trocavam esses medicamentos por ouro (extraído pelos garimpos). Com certeza aqueles medicamentos (achados em Boa Vista), como a gente denunciava bastante, eles ficaram com medo e esconderam lá. Era para estar na terra indígena. A responsabilidade (é) do governo passado, de deixar o povo Yanomami morrer, por falta de medicamento”, diz ele. Além das doenças, os indígenas também sofrem com a fome.

Ao Estadão, o professor emérito da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Gerson Pianetti afirmou que o descarte dos medicamentos na TI Yanomami revela uma falta de planejamento por parte do DSEI-YY. O especialista explica que o normal é que os fármacos sejam enviados a outras unidades do SUS antes de chegar no prazo de validade, sendo essa uma forma de evitar a escassez de tratamentos para os indígenas.

“É uma questão muito grave. São medicamentos que estão fazendo falta no tratamento das pessoas e isso se configura, para mim, um crime. Não se sabe também como esses medicamentos estão sendo descartados, então pode até se configurar um crime ambiental também por conta da contaminação”, afirma.

Em 2022, a Procuradoria da República em Roraima, braço do Ministério Público Federal naquele Estado, instaurou um inquérito civil para investigar as “reiteradas notícias de desabastecimento dos estoques de medicamentos” no DSEI Yanomami. Na época, a apuração encontrou “graves irregularidades no recebimento, cadastramento e distribuição de fármacos contratados, resultando no desabastecimento farmacêutico generalizado das unidades de saúde da TI Yanomami”, segundo nota assinada por procuradores da 6ª Câmara da Procuradoria-Geral da República (PGR), que trata de temas ligados aos indígenas.

Leia a nota do Ministério da Saúde

O Ministério da Saúde informa que, no início de 2023, a atual gestão se deparou com um cenário de crise humanitária do povo Yanomami causado pela desassistência e desestruturação da saúde indígena nos últimos anos. A Pasta também herdou estoques de medicamentos sem tempo hábil para distribuição e uso, comprados sem critérios ou planejamento. Desde então, o Ministério está reestruturando as políticas de saúde indígena e retomou a gestão dos estoques, evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade.

Desde o início da operação de emergência no território, todos os medicamentos e insumos necessários para salvar vidas são utilizados pelas equipes de saúde. Não há falta de medicamentos ou insumos para assistência dessa população. Os medicamentos que foram comprados nos anos anteriores e estavam com a data de validade próxima do vencimento, foram descartados.

Para mitigar a perda de insumos, o Ministério instituiu, em 2023, um comitê permanente para monitorar a situação e adotar ações emergenciais como pactuação junto aos estados, municípios e DSEIs para racionalizar a distribuição do estoque atual, dando prioridade aos itens de menor prazo de validade.

Ao longo do ano de 2023, a unidade do SUS para atendimento aos indígenas da etnia Yanomami, em Roraima, jogou fora centenas de milhares de medicamentos que perderam a validade. Dentre os remédios desperdiçados há pelo menos um lote de uma droga de custo elevado. Foram jogadas fora 1.690 unidades de Paxlovid, um antiviral para combate à covid-19, vendido a quase R$ 5 mil a caixa – no mercado, a quantidade descartada sairia a quase R$ 250 mil. Também foram descartados outros insumos, como milhares de testes rápidos de covid-19 e de HIV. Os Yanomami enfrentam grave crise humanitária nos últimos anos.

Ao Estadão, o Ministério da Saúde afirmou que herdou do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estoques de medicamentos “sem tempo hábil para distribuição e uso”. A pasta disse também que busca reestruturar as políticas de saúde indígena “evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade”. (leia a nota completa no final da reportagem)

Segundo líderes indígenas ouvidos pela reportagem, a Terra Indígena Yanomami sofreu com a falta de medicamentos durante o período em que esses remédios agora descartados estavam válidos, ao longo de 2021 e 2022.

Medicamentos destinados ao DSEI-YY encontrados numa casa abandonada em Boa Vista (RR) Foto: @urihiyanomami via Instagram

Os medicamentos foram descartados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-YY), uma subdivisão do Sistema Único de Saúde (SUS) voltada ao atendimento deste povo indígena em regiões dos Estados de Roraima e do Amazonas. As informações sobre o descarte foram fornecidas pelo próprio DSEI-YY, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A resposta inclui dois conjuntos de tabelas; no maior deles, o número de unidades de medicamentos descartados soma mais de 257 mil itens.

De longe, as drogas com maior quantidade descartada são a ivermectina (até 48.228 comprimidos) e a cloroquina (até 12.580). As duas drogas foram apostas do governo de Jair Bolsonaro (PL) para o combate à pandemia de Covid-19, embora não exista comprovação da efetividade delas no tratamento da doença. A cloroquina é também usada no tratamento da malária, doença comum na região.

Uma das tabelas do DSEI-YY menciona quase 40.000 comprimidos do vermífugo Ivermectina descartados Foto: DSEI-YY / Reprodução

A crise humanitária enfrentada pelos Yanomami voltou à cena recentemente, quando dados do Ministério da Saúde (MS) mostraram um possível aumento da mortalidade dos Yanomami no primeiro ano do governo Lula (PT). Segundo os dados obtidos pelo site Poder360, foram 363 óbitos em 2023, ante 343 em 2022 – uma alta de 5,8%. O MS nega o aumento, e diz que há subnotificação das mortes de 2022.

Líderes indígenas ouvidos pelo Estadão atribuem as mortes na região principalmente à destruição do modo de vida tradicional dos Yanomami e à entrada de garimpeiros ilegais no território, expondo os indígenas a doenças e a atos de violência. Além das doenças, os Yanomami sofrem com a desnutrição e a fome. Em janeiro de 2023, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou a investigação de possível crime de genocídio contra os Yanomami por parte do governo Bolsonaro.

Ao responder aos questionamentos, o DSEI-YY enviou dois conjuntos de tabelas: o primeiro parece ser um resumo de todos os medicamentos vencidos descartados ao longo de 2023, até a data da resposta, em outubro. Neste primeiro conjunto, os remédios descartados somam pouco mais de 150 mil itens, incluindo 43.412 comprimidos do vermífugo ivermectina. O segundo conjunto inclui pouco mais de 50 tabelas de medicamentos descartados ao longo do ano de 2023, somando 257.686 itens.

Cada tabela nesse segundo conjunto é acompanhada de um ofício, assinado por uma farmacêutica, informando a Divisão de Atenção à Saúde Indígena (Diasi) sobre o descarte. Do total jogado fora, 86% perdeu a validade ao longo de 2023, mas há também medicamentos que venceram em anos anteriores (até 2015) e remédios ainda dentro da data de validade. “Trata-se o presente expediente referente a solicitação de descarte de resíduos de serviços de saúde (...), conforme a planilha anexa”, diz um dos ofícios, datado de março de 2023.

Um dos ofícios do DSEI-YY informando sobre o descarte de medicamentos Foto: DSEI-YY / Reprodução

Alguns dos lotes de medicamentos presentes no segundo conjunto de tabelas também constam do primeiro. Portanto, não é possível somar os dois. No segundo conjunto de tabelas, há menção a 48.228 comprimidos de ivermectina e 12.580 de cloroquina. O primeiro medicamento tem validade de dois anos, e o segundo, de três anos – o que sugere que os estoques foram comprados ainda durante o governo de Jair Bolsonaro.

Num dos casos, há o registro de descarte de 1.690 unidades de Paxlovid 150mg da Pfizer. O antiviral foi desenvolvido para tratar casos de covid-19 durante a pandemia, e não é barato: cada caixa com 30 comprimidos sai entre R$ 4,6 mil e R$ 4,8 mil. Mesmo que as “unidades” sejam comprimidos, e não caixas, o valor total dos medicamentos jogados fora seria de pouco mais de R$ 250 mil, considerando os preços de mercado.

Tabela mostra descarte de 1.690 unidades de Paxlovid Foto: DSEI-YY / Reprodução

Os materiais descartados incluem ao menos 1.910 testes rápidos de Covid-19 e medicamentos relativamente caros, como ampolas de citrato de fentanila, um analgésico injetável. Neste caso, cada conjunto de 50 ampolas é vendido a R$ 473 – o documento fala em 3.350 dessas, ou seja, pouco mais de R$ 31 mil foram perdidos só neste medicamento. Há ainda 152 testes rápidos de HIV / Aids. Cada um é vendido nas farmácias entre R$ 53,50 e R$ 99. Para tratar e compilar os dados de medicamentos descartados, a reportagem usou a ferramenta Pinpoint, do Google.

A sede do DSEI-YY fica na capital Boa Vista (RR), mas o órgão inclui também 37 polos base e 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI), que atendem um público de quase 28 mil indígenas, espalhados por 366 aldeias. Além dos Yanomami, que formam o grupo mais numeroso, o DSEI-YY atende também às etnias Sanumã, Ninan, Yawari/Xamathari e Yekuana. No fim de 2022, 807 profissionais trabalhavam no DSEI-YY, que foi o primeiro do tipo criado no país, ainda em 1991. Hoje, há 34 DSEIs em funcionamento.

Kleber Karipuna é coordenador-executivo da APIB. Ele considera que o desperdício de medicamentos é grave, especialmente porque os insumos podem estar faltando em outras áreas. É preciso verificar se houve compra em excesso dos produtos; se eles foram acondicionados corretamente e de quem é a responsabilidade – é provável, inclusive, que os medicamentos tenham sido comprados no governo anterior, aponta ele.

Frasco de Amoxicilina descartado numa casa abandonada em Boa Vista Foto: @urihiyanomami via Instagram

Karipuna diz ainda que a entrada de garimpeiros ilegais nas terras indígenas é hoje o “principal vetor” de aumento da mortalidade dos yanomami. A crise atual é resultado de décadas de negligência do poder público e não será resolvida só pela ação do Ministério da Saúde e da Funai, diz. Outras políticas públicas, como a de segurança, também são necessárias.

Medicamentos vencidos em casa abandonada

No dia 31 de janeiro deste ano, a Polícia Civil de Roraima (PC-RR) encontrou vários sacos de lixo e caixas de medicamentos vencidos numa casa abandonada em Boa Vista. Os produtos eram destinados ao DSEI Yanomami. O flagrante ocorreu durante uma apuração sobre tráfico de drogas no bairro São Francisco, na zona Norte da cidade. Na ocasião, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, disse que os medicamentos já estavam vencidos desde o governo Bolsonaro. As investigações sobre o caso foram repassadas à Polícia Federal (PF).

Esta não é a primeira apuração envolvendo a gestão de medicamentos no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. No fim de 2022, a PF e o Ministério Público Federal (MPF) deflagraram a operação Yoasi, destinada a apurar a suposta fraude na compra de medicação destinada ao DSEI-YY. Dois ex-coordenadores do órgão e um empresário foram alvo da operação. Segundo os investigadores, a empresa deixou de entregar os medicamentos comprados, provocando desabastecimento no DSEI-YY. Em outubro passado, houve uma nova fase da Yoasi, mirando a operação de lavagem do dinheiro desviado.

Tabela mostra relação de medicamentos descartados ao longo de 2023 Foto: DSEI-YY / Reprodução

Apesar disso, na resposta ao pedido de Lei de Acesso à Informação, o DSEI-YY diz que todo o processo de descarte de medicamentos é acompanhado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Controladoria-Geral da União (CGU), sendo que as últimas auditorias desses dois órgãos foram junho e julho de 2023, respectivamente. Os principais motivos para o descarte de medicamentos são “rupturas ou danos nos invólucros das embalagens” e “validade expirada”, segundo a resposta. “O descarte é realizado mediante empresa licitada e contratada para o desenvolvimento de serviço de gestão dos resíduos dos serviços de saúde (...). O protocolo estabelece que toda medicação descartada seja quantificada e identificada quanto ao lote, validade e fabricante”.

Houve falta de medicamentos sob Bolsonaro, diz Yanomami

Segundo o líder indígena Júnior Hekurari Yanomami, morador da comunidade Surucucu, o principal problema enfrentado pela etnia durante o governo Jair Bolsonaro foi a falta de medicamentos – não o excesso.

“Em 2020, nós Yanomami cobramos muito, avisamos muito que o medicamento tava faltando na Terra Indígena Yanomami. Muita gente, muitas crianças morreram por falta de medicamento. Antibióticos, azitromicina, de febre, e outros. Naqueles anos, 2020, 2021, 2022, faltou medicamento na comunidade. E profissionais, também. Na época, denunciamos à Polícia Federal e eles descobriram que havia desvios de medicamentos”, diz ele, que é presidente da Urihi Associação Yanomami. “Eu mesmo denunciei bastante essa falta de medicamentos. Polícia Federal e Ministério Público Federal começaram a investigar e descobriram que tinha muita coisa errada”, conta Júnior Hekurari.

“Em 2021, 2020, a gente também tinha muitos relatos de gestores que desviavam (os medicamentos) para os garimpos, na terra indígena Yanomami”, diz Hekurari. “Gestores que trabalhavam no setor de medicamento também trocavam esses medicamentos por ouro (extraído pelos garimpos). Com certeza aqueles medicamentos (achados em Boa Vista), como a gente denunciava bastante, eles ficaram com medo e esconderam lá. Era para estar na terra indígena. A responsabilidade (é) do governo passado, de deixar o povo Yanomami morrer, por falta de medicamento”, diz ele. Além das doenças, os indígenas também sofrem com a fome.

Ao Estadão, o professor emérito da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Gerson Pianetti afirmou que o descarte dos medicamentos na TI Yanomami revela uma falta de planejamento por parte do DSEI-YY. O especialista explica que o normal é que os fármacos sejam enviados a outras unidades do SUS antes de chegar no prazo de validade, sendo essa uma forma de evitar a escassez de tratamentos para os indígenas.

“É uma questão muito grave. São medicamentos que estão fazendo falta no tratamento das pessoas e isso se configura, para mim, um crime. Não se sabe também como esses medicamentos estão sendo descartados, então pode até se configurar um crime ambiental também por conta da contaminação”, afirma.

Em 2022, a Procuradoria da República em Roraima, braço do Ministério Público Federal naquele Estado, instaurou um inquérito civil para investigar as “reiteradas notícias de desabastecimento dos estoques de medicamentos” no DSEI Yanomami. Na época, a apuração encontrou “graves irregularidades no recebimento, cadastramento e distribuição de fármacos contratados, resultando no desabastecimento farmacêutico generalizado das unidades de saúde da TI Yanomami”, segundo nota assinada por procuradores da 6ª Câmara da Procuradoria-Geral da República (PGR), que trata de temas ligados aos indígenas.

Leia a nota do Ministério da Saúde

O Ministério da Saúde informa que, no início de 2023, a atual gestão se deparou com um cenário de crise humanitária do povo Yanomami causado pela desassistência e desestruturação da saúde indígena nos últimos anos. A Pasta também herdou estoques de medicamentos sem tempo hábil para distribuição e uso, comprados sem critérios ou planejamento. Desde então, o Ministério está reestruturando as políticas de saúde indígena e retomou a gestão dos estoques, evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade.

Desde o início da operação de emergência no território, todos os medicamentos e insumos necessários para salvar vidas são utilizados pelas equipes de saúde. Não há falta de medicamentos ou insumos para assistência dessa população. Os medicamentos que foram comprados nos anos anteriores e estavam com a data de validade próxima do vencimento, foram descartados.

Para mitigar a perda de insumos, o Ministério instituiu, em 2023, um comitê permanente para monitorar a situação e adotar ações emergenciais como pactuação junto aos estados, municípios e DSEIs para racionalizar a distribuição do estoque atual, dando prioridade aos itens de menor prazo de validade.

Ao longo do ano de 2023, a unidade do SUS para atendimento aos indígenas da etnia Yanomami, em Roraima, jogou fora centenas de milhares de medicamentos que perderam a validade. Dentre os remédios desperdiçados há pelo menos um lote de uma droga de custo elevado. Foram jogadas fora 1.690 unidades de Paxlovid, um antiviral para combate à covid-19, vendido a quase R$ 5 mil a caixa – no mercado, a quantidade descartada sairia a quase R$ 250 mil. Também foram descartados outros insumos, como milhares de testes rápidos de covid-19 e de HIV. Os Yanomami enfrentam grave crise humanitária nos últimos anos.

Ao Estadão, o Ministério da Saúde afirmou que herdou do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estoques de medicamentos “sem tempo hábil para distribuição e uso”. A pasta disse também que busca reestruturar as políticas de saúde indígena “evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade”. (leia a nota completa no final da reportagem)

Segundo líderes indígenas ouvidos pela reportagem, a Terra Indígena Yanomami sofreu com a falta de medicamentos durante o período em que esses remédios agora descartados estavam válidos, ao longo de 2021 e 2022.

Medicamentos destinados ao DSEI-YY encontrados numa casa abandonada em Boa Vista (RR) Foto: @urihiyanomami via Instagram

Os medicamentos foram descartados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-YY), uma subdivisão do Sistema Único de Saúde (SUS) voltada ao atendimento deste povo indígena em regiões dos Estados de Roraima e do Amazonas. As informações sobre o descarte foram fornecidas pelo próprio DSEI-YY, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A resposta inclui dois conjuntos de tabelas; no maior deles, o número de unidades de medicamentos descartados soma mais de 257 mil itens.

De longe, as drogas com maior quantidade descartada são a ivermectina (até 48.228 comprimidos) e a cloroquina (até 12.580). As duas drogas foram apostas do governo de Jair Bolsonaro (PL) para o combate à pandemia de Covid-19, embora não exista comprovação da efetividade delas no tratamento da doença. A cloroquina é também usada no tratamento da malária, doença comum na região.

Uma das tabelas do DSEI-YY menciona quase 40.000 comprimidos do vermífugo Ivermectina descartados Foto: DSEI-YY / Reprodução

A crise humanitária enfrentada pelos Yanomami voltou à cena recentemente, quando dados do Ministério da Saúde (MS) mostraram um possível aumento da mortalidade dos Yanomami no primeiro ano do governo Lula (PT). Segundo os dados obtidos pelo site Poder360, foram 363 óbitos em 2023, ante 343 em 2022 – uma alta de 5,8%. O MS nega o aumento, e diz que há subnotificação das mortes de 2022.

Líderes indígenas ouvidos pelo Estadão atribuem as mortes na região principalmente à destruição do modo de vida tradicional dos Yanomami e à entrada de garimpeiros ilegais no território, expondo os indígenas a doenças e a atos de violência. Além das doenças, os Yanomami sofrem com a desnutrição e a fome. Em janeiro de 2023, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou a investigação de possível crime de genocídio contra os Yanomami por parte do governo Bolsonaro.

Ao responder aos questionamentos, o DSEI-YY enviou dois conjuntos de tabelas: o primeiro parece ser um resumo de todos os medicamentos vencidos descartados ao longo de 2023, até a data da resposta, em outubro. Neste primeiro conjunto, os remédios descartados somam pouco mais de 150 mil itens, incluindo 43.412 comprimidos do vermífugo ivermectina. O segundo conjunto inclui pouco mais de 50 tabelas de medicamentos descartados ao longo do ano de 2023, somando 257.686 itens.

Cada tabela nesse segundo conjunto é acompanhada de um ofício, assinado por uma farmacêutica, informando a Divisão de Atenção à Saúde Indígena (Diasi) sobre o descarte. Do total jogado fora, 86% perdeu a validade ao longo de 2023, mas há também medicamentos que venceram em anos anteriores (até 2015) e remédios ainda dentro da data de validade. “Trata-se o presente expediente referente a solicitação de descarte de resíduos de serviços de saúde (...), conforme a planilha anexa”, diz um dos ofícios, datado de março de 2023.

Um dos ofícios do DSEI-YY informando sobre o descarte de medicamentos Foto: DSEI-YY / Reprodução

Alguns dos lotes de medicamentos presentes no segundo conjunto de tabelas também constam do primeiro. Portanto, não é possível somar os dois. No segundo conjunto de tabelas, há menção a 48.228 comprimidos de ivermectina e 12.580 de cloroquina. O primeiro medicamento tem validade de dois anos, e o segundo, de três anos – o que sugere que os estoques foram comprados ainda durante o governo de Jair Bolsonaro.

Num dos casos, há o registro de descarte de 1.690 unidades de Paxlovid 150mg da Pfizer. O antiviral foi desenvolvido para tratar casos de covid-19 durante a pandemia, e não é barato: cada caixa com 30 comprimidos sai entre R$ 4,6 mil e R$ 4,8 mil. Mesmo que as “unidades” sejam comprimidos, e não caixas, o valor total dos medicamentos jogados fora seria de pouco mais de R$ 250 mil, considerando os preços de mercado.

Tabela mostra descarte de 1.690 unidades de Paxlovid Foto: DSEI-YY / Reprodução

Os materiais descartados incluem ao menos 1.910 testes rápidos de Covid-19 e medicamentos relativamente caros, como ampolas de citrato de fentanila, um analgésico injetável. Neste caso, cada conjunto de 50 ampolas é vendido a R$ 473 – o documento fala em 3.350 dessas, ou seja, pouco mais de R$ 31 mil foram perdidos só neste medicamento. Há ainda 152 testes rápidos de HIV / Aids. Cada um é vendido nas farmácias entre R$ 53,50 e R$ 99. Para tratar e compilar os dados de medicamentos descartados, a reportagem usou a ferramenta Pinpoint, do Google.

A sede do DSEI-YY fica na capital Boa Vista (RR), mas o órgão inclui também 37 polos base e 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI), que atendem um público de quase 28 mil indígenas, espalhados por 366 aldeias. Além dos Yanomami, que formam o grupo mais numeroso, o DSEI-YY atende também às etnias Sanumã, Ninan, Yawari/Xamathari e Yekuana. No fim de 2022, 807 profissionais trabalhavam no DSEI-YY, que foi o primeiro do tipo criado no país, ainda em 1991. Hoje, há 34 DSEIs em funcionamento.

Kleber Karipuna é coordenador-executivo da APIB. Ele considera que o desperdício de medicamentos é grave, especialmente porque os insumos podem estar faltando em outras áreas. É preciso verificar se houve compra em excesso dos produtos; se eles foram acondicionados corretamente e de quem é a responsabilidade – é provável, inclusive, que os medicamentos tenham sido comprados no governo anterior, aponta ele.

Frasco de Amoxicilina descartado numa casa abandonada em Boa Vista Foto: @urihiyanomami via Instagram

Karipuna diz ainda que a entrada de garimpeiros ilegais nas terras indígenas é hoje o “principal vetor” de aumento da mortalidade dos yanomami. A crise atual é resultado de décadas de negligência do poder público e não será resolvida só pela ação do Ministério da Saúde e da Funai, diz. Outras políticas públicas, como a de segurança, também são necessárias.

Medicamentos vencidos em casa abandonada

No dia 31 de janeiro deste ano, a Polícia Civil de Roraima (PC-RR) encontrou vários sacos de lixo e caixas de medicamentos vencidos numa casa abandonada em Boa Vista. Os produtos eram destinados ao DSEI Yanomami. O flagrante ocorreu durante uma apuração sobre tráfico de drogas no bairro São Francisco, na zona Norte da cidade. Na ocasião, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, disse que os medicamentos já estavam vencidos desde o governo Bolsonaro. As investigações sobre o caso foram repassadas à Polícia Federal (PF).

Esta não é a primeira apuração envolvendo a gestão de medicamentos no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. No fim de 2022, a PF e o Ministério Público Federal (MPF) deflagraram a operação Yoasi, destinada a apurar a suposta fraude na compra de medicação destinada ao DSEI-YY. Dois ex-coordenadores do órgão e um empresário foram alvo da operação. Segundo os investigadores, a empresa deixou de entregar os medicamentos comprados, provocando desabastecimento no DSEI-YY. Em outubro passado, houve uma nova fase da Yoasi, mirando a operação de lavagem do dinheiro desviado.

Tabela mostra relação de medicamentos descartados ao longo de 2023 Foto: DSEI-YY / Reprodução

Apesar disso, na resposta ao pedido de Lei de Acesso à Informação, o DSEI-YY diz que todo o processo de descarte de medicamentos é acompanhado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Controladoria-Geral da União (CGU), sendo que as últimas auditorias desses dois órgãos foram junho e julho de 2023, respectivamente. Os principais motivos para o descarte de medicamentos são “rupturas ou danos nos invólucros das embalagens” e “validade expirada”, segundo a resposta. “O descarte é realizado mediante empresa licitada e contratada para o desenvolvimento de serviço de gestão dos resíduos dos serviços de saúde (...). O protocolo estabelece que toda medicação descartada seja quantificada e identificada quanto ao lote, validade e fabricante”.

Houve falta de medicamentos sob Bolsonaro, diz Yanomami

Segundo o líder indígena Júnior Hekurari Yanomami, morador da comunidade Surucucu, o principal problema enfrentado pela etnia durante o governo Jair Bolsonaro foi a falta de medicamentos – não o excesso.

“Em 2020, nós Yanomami cobramos muito, avisamos muito que o medicamento tava faltando na Terra Indígena Yanomami. Muita gente, muitas crianças morreram por falta de medicamento. Antibióticos, azitromicina, de febre, e outros. Naqueles anos, 2020, 2021, 2022, faltou medicamento na comunidade. E profissionais, também. Na época, denunciamos à Polícia Federal e eles descobriram que havia desvios de medicamentos”, diz ele, que é presidente da Urihi Associação Yanomami. “Eu mesmo denunciei bastante essa falta de medicamentos. Polícia Federal e Ministério Público Federal começaram a investigar e descobriram que tinha muita coisa errada”, conta Júnior Hekurari.

“Em 2021, 2020, a gente também tinha muitos relatos de gestores que desviavam (os medicamentos) para os garimpos, na terra indígena Yanomami”, diz Hekurari. “Gestores que trabalhavam no setor de medicamento também trocavam esses medicamentos por ouro (extraído pelos garimpos). Com certeza aqueles medicamentos (achados em Boa Vista), como a gente denunciava bastante, eles ficaram com medo e esconderam lá. Era para estar na terra indígena. A responsabilidade (é) do governo passado, de deixar o povo Yanomami morrer, por falta de medicamento”, diz ele. Além das doenças, os indígenas também sofrem com a fome.

Ao Estadão, o professor emérito da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Gerson Pianetti afirmou que o descarte dos medicamentos na TI Yanomami revela uma falta de planejamento por parte do DSEI-YY. O especialista explica que o normal é que os fármacos sejam enviados a outras unidades do SUS antes de chegar no prazo de validade, sendo essa uma forma de evitar a escassez de tratamentos para os indígenas.

“É uma questão muito grave. São medicamentos que estão fazendo falta no tratamento das pessoas e isso se configura, para mim, um crime. Não se sabe também como esses medicamentos estão sendo descartados, então pode até se configurar um crime ambiental também por conta da contaminação”, afirma.

Em 2022, a Procuradoria da República em Roraima, braço do Ministério Público Federal naquele Estado, instaurou um inquérito civil para investigar as “reiteradas notícias de desabastecimento dos estoques de medicamentos” no DSEI Yanomami. Na época, a apuração encontrou “graves irregularidades no recebimento, cadastramento e distribuição de fármacos contratados, resultando no desabastecimento farmacêutico generalizado das unidades de saúde da TI Yanomami”, segundo nota assinada por procuradores da 6ª Câmara da Procuradoria-Geral da República (PGR), que trata de temas ligados aos indígenas.

Leia a nota do Ministério da Saúde

O Ministério da Saúde informa que, no início de 2023, a atual gestão se deparou com um cenário de crise humanitária do povo Yanomami causado pela desassistência e desestruturação da saúde indígena nos últimos anos. A Pasta também herdou estoques de medicamentos sem tempo hábil para distribuição e uso, comprados sem critérios ou planejamento. Desde então, o Ministério está reestruturando as políticas de saúde indígena e retomou a gestão dos estoques, evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade.

Desde o início da operação de emergência no território, todos os medicamentos e insumos necessários para salvar vidas são utilizados pelas equipes de saúde. Não há falta de medicamentos ou insumos para assistência dessa população. Os medicamentos que foram comprados nos anos anteriores e estavam com a data de validade próxima do vencimento, foram descartados.

Para mitigar a perda de insumos, o Ministério instituiu, em 2023, um comitê permanente para monitorar a situação e adotar ações emergenciais como pactuação junto aos estados, municípios e DSEIs para racionalizar a distribuição do estoque atual, dando prioridade aos itens de menor prazo de validade.

Ao longo do ano de 2023, a unidade do SUS para atendimento aos indígenas da etnia Yanomami, em Roraima, jogou fora centenas de milhares de medicamentos que perderam a validade. Dentre os remédios desperdiçados há pelo menos um lote de uma droga de custo elevado. Foram jogadas fora 1.690 unidades de Paxlovid, um antiviral para combate à covid-19, vendido a quase R$ 5 mil a caixa – no mercado, a quantidade descartada sairia a quase R$ 250 mil. Também foram descartados outros insumos, como milhares de testes rápidos de covid-19 e de HIV. Os Yanomami enfrentam grave crise humanitária nos últimos anos.

Ao Estadão, o Ministério da Saúde afirmou que herdou do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estoques de medicamentos “sem tempo hábil para distribuição e uso”. A pasta disse também que busca reestruturar as políticas de saúde indígena “evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade”. (leia a nota completa no final da reportagem)

Segundo líderes indígenas ouvidos pela reportagem, a Terra Indígena Yanomami sofreu com a falta de medicamentos durante o período em que esses remédios agora descartados estavam válidos, ao longo de 2021 e 2022.

Medicamentos destinados ao DSEI-YY encontrados numa casa abandonada em Boa Vista (RR) Foto: @urihiyanomami via Instagram

Os medicamentos foram descartados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-YY), uma subdivisão do Sistema Único de Saúde (SUS) voltada ao atendimento deste povo indígena em regiões dos Estados de Roraima e do Amazonas. As informações sobre o descarte foram fornecidas pelo próprio DSEI-YY, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A resposta inclui dois conjuntos de tabelas; no maior deles, o número de unidades de medicamentos descartados soma mais de 257 mil itens.

De longe, as drogas com maior quantidade descartada são a ivermectina (até 48.228 comprimidos) e a cloroquina (até 12.580). As duas drogas foram apostas do governo de Jair Bolsonaro (PL) para o combate à pandemia de Covid-19, embora não exista comprovação da efetividade delas no tratamento da doença. A cloroquina é também usada no tratamento da malária, doença comum na região.

Uma das tabelas do DSEI-YY menciona quase 40.000 comprimidos do vermífugo Ivermectina descartados Foto: DSEI-YY / Reprodução

A crise humanitária enfrentada pelos Yanomami voltou à cena recentemente, quando dados do Ministério da Saúde (MS) mostraram um possível aumento da mortalidade dos Yanomami no primeiro ano do governo Lula (PT). Segundo os dados obtidos pelo site Poder360, foram 363 óbitos em 2023, ante 343 em 2022 – uma alta de 5,8%. O MS nega o aumento, e diz que há subnotificação das mortes de 2022.

Líderes indígenas ouvidos pelo Estadão atribuem as mortes na região principalmente à destruição do modo de vida tradicional dos Yanomami e à entrada de garimpeiros ilegais no território, expondo os indígenas a doenças e a atos de violência. Além das doenças, os Yanomami sofrem com a desnutrição e a fome. Em janeiro de 2023, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou a investigação de possível crime de genocídio contra os Yanomami por parte do governo Bolsonaro.

Ao responder aos questionamentos, o DSEI-YY enviou dois conjuntos de tabelas: o primeiro parece ser um resumo de todos os medicamentos vencidos descartados ao longo de 2023, até a data da resposta, em outubro. Neste primeiro conjunto, os remédios descartados somam pouco mais de 150 mil itens, incluindo 43.412 comprimidos do vermífugo ivermectina. O segundo conjunto inclui pouco mais de 50 tabelas de medicamentos descartados ao longo do ano de 2023, somando 257.686 itens.

Cada tabela nesse segundo conjunto é acompanhada de um ofício, assinado por uma farmacêutica, informando a Divisão de Atenção à Saúde Indígena (Diasi) sobre o descarte. Do total jogado fora, 86% perdeu a validade ao longo de 2023, mas há também medicamentos que venceram em anos anteriores (até 2015) e remédios ainda dentro da data de validade. “Trata-se o presente expediente referente a solicitação de descarte de resíduos de serviços de saúde (...), conforme a planilha anexa”, diz um dos ofícios, datado de março de 2023.

Um dos ofícios do DSEI-YY informando sobre o descarte de medicamentos Foto: DSEI-YY / Reprodução

Alguns dos lotes de medicamentos presentes no segundo conjunto de tabelas também constam do primeiro. Portanto, não é possível somar os dois. No segundo conjunto de tabelas, há menção a 48.228 comprimidos de ivermectina e 12.580 de cloroquina. O primeiro medicamento tem validade de dois anos, e o segundo, de três anos – o que sugere que os estoques foram comprados ainda durante o governo de Jair Bolsonaro.

Num dos casos, há o registro de descarte de 1.690 unidades de Paxlovid 150mg da Pfizer. O antiviral foi desenvolvido para tratar casos de covid-19 durante a pandemia, e não é barato: cada caixa com 30 comprimidos sai entre R$ 4,6 mil e R$ 4,8 mil. Mesmo que as “unidades” sejam comprimidos, e não caixas, o valor total dos medicamentos jogados fora seria de pouco mais de R$ 250 mil, considerando os preços de mercado.

Tabela mostra descarte de 1.690 unidades de Paxlovid Foto: DSEI-YY / Reprodução

Os materiais descartados incluem ao menos 1.910 testes rápidos de Covid-19 e medicamentos relativamente caros, como ampolas de citrato de fentanila, um analgésico injetável. Neste caso, cada conjunto de 50 ampolas é vendido a R$ 473 – o documento fala em 3.350 dessas, ou seja, pouco mais de R$ 31 mil foram perdidos só neste medicamento. Há ainda 152 testes rápidos de HIV / Aids. Cada um é vendido nas farmácias entre R$ 53,50 e R$ 99. Para tratar e compilar os dados de medicamentos descartados, a reportagem usou a ferramenta Pinpoint, do Google.

A sede do DSEI-YY fica na capital Boa Vista (RR), mas o órgão inclui também 37 polos base e 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI), que atendem um público de quase 28 mil indígenas, espalhados por 366 aldeias. Além dos Yanomami, que formam o grupo mais numeroso, o DSEI-YY atende também às etnias Sanumã, Ninan, Yawari/Xamathari e Yekuana. No fim de 2022, 807 profissionais trabalhavam no DSEI-YY, que foi o primeiro do tipo criado no país, ainda em 1991. Hoje, há 34 DSEIs em funcionamento.

Kleber Karipuna é coordenador-executivo da APIB. Ele considera que o desperdício de medicamentos é grave, especialmente porque os insumos podem estar faltando em outras áreas. É preciso verificar se houve compra em excesso dos produtos; se eles foram acondicionados corretamente e de quem é a responsabilidade – é provável, inclusive, que os medicamentos tenham sido comprados no governo anterior, aponta ele.

Frasco de Amoxicilina descartado numa casa abandonada em Boa Vista Foto: @urihiyanomami via Instagram

Karipuna diz ainda que a entrada de garimpeiros ilegais nas terras indígenas é hoje o “principal vetor” de aumento da mortalidade dos yanomami. A crise atual é resultado de décadas de negligência do poder público e não será resolvida só pela ação do Ministério da Saúde e da Funai, diz. Outras políticas públicas, como a de segurança, também são necessárias.

Medicamentos vencidos em casa abandonada

No dia 31 de janeiro deste ano, a Polícia Civil de Roraima (PC-RR) encontrou vários sacos de lixo e caixas de medicamentos vencidos numa casa abandonada em Boa Vista. Os produtos eram destinados ao DSEI Yanomami. O flagrante ocorreu durante uma apuração sobre tráfico de drogas no bairro São Francisco, na zona Norte da cidade. Na ocasião, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, disse que os medicamentos já estavam vencidos desde o governo Bolsonaro. As investigações sobre o caso foram repassadas à Polícia Federal (PF).

Esta não é a primeira apuração envolvendo a gestão de medicamentos no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. No fim de 2022, a PF e o Ministério Público Federal (MPF) deflagraram a operação Yoasi, destinada a apurar a suposta fraude na compra de medicação destinada ao DSEI-YY. Dois ex-coordenadores do órgão e um empresário foram alvo da operação. Segundo os investigadores, a empresa deixou de entregar os medicamentos comprados, provocando desabastecimento no DSEI-YY. Em outubro passado, houve uma nova fase da Yoasi, mirando a operação de lavagem do dinheiro desviado.

Tabela mostra relação de medicamentos descartados ao longo de 2023 Foto: DSEI-YY / Reprodução

Apesar disso, na resposta ao pedido de Lei de Acesso à Informação, o DSEI-YY diz que todo o processo de descarte de medicamentos é acompanhado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Controladoria-Geral da União (CGU), sendo que as últimas auditorias desses dois órgãos foram junho e julho de 2023, respectivamente. Os principais motivos para o descarte de medicamentos são “rupturas ou danos nos invólucros das embalagens” e “validade expirada”, segundo a resposta. “O descarte é realizado mediante empresa licitada e contratada para o desenvolvimento de serviço de gestão dos resíduos dos serviços de saúde (...). O protocolo estabelece que toda medicação descartada seja quantificada e identificada quanto ao lote, validade e fabricante”.

Houve falta de medicamentos sob Bolsonaro, diz Yanomami

Segundo o líder indígena Júnior Hekurari Yanomami, morador da comunidade Surucucu, o principal problema enfrentado pela etnia durante o governo Jair Bolsonaro foi a falta de medicamentos – não o excesso.

“Em 2020, nós Yanomami cobramos muito, avisamos muito que o medicamento tava faltando na Terra Indígena Yanomami. Muita gente, muitas crianças morreram por falta de medicamento. Antibióticos, azitromicina, de febre, e outros. Naqueles anos, 2020, 2021, 2022, faltou medicamento na comunidade. E profissionais, também. Na época, denunciamos à Polícia Federal e eles descobriram que havia desvios de medicamentos”, diz ele, que é presidente da Urihi Associação Yanomami. “Eu mesmo denunciei bastante essa falta de medicamentos. Polícia Federal e Ministério Público Federal começaram a investigar e descobriram que tinha muita coisa errada”, conta Júnior Hekurari.

“Em 2021, 2020, a gente também tinha muitos relatos de gestores que desviavam (os medicamentos) para os garimpos, na terra indígena Yanomami”, diz Hekurari. “Gestores que trabalhavam no setor de medicamento também trocavam esses medicamentos por ouro (extraído pelos garimpos). Com certeza aqueles medicamentos (achados em Boa Vista), como a gente denunciava bastante, eles ficaram com medo e esconderam lá. Era para estar na terra indígena. A responsabilidade (é) do governo passado, de deixar o povo Yanomami morrer, por falta de medicamento”, diz ele. Além das doenças, os indígenas também sofrem com a fome.

Ao Estadão, o professor emérito da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Gerson Pianetti afirmou que o descarte dos medicamentos na TI Yanomami revela uma falta de planejamento por parte do DSEI-YY. O especialista explica que o normal é que os fármacos sejam enviados a outras unidades do SUS antes de chegar no prazo de validade, sendo essa uma forma de evitar a escassez de tratamentos para os indígenas.

“É uma questão muito grave. São medicamentos que estão fazendo falta no tratamento das pessoas e isso se configura, para mim, um crime. Não se sabe também como esses medicamentos estão sendo descartados, então pode até se configurar um crime ambiental também por conta da contaminação”, afirma.

Em 2022, a Procuradoria da República em Roraima, braço do Ministério Público Federal naquele Estado, instaurou um inquérito civil para investigar as “reiteradas notícias de desabastecimento dos estoques de medicamentos” no DSEI Yanomami. Na época, a apuração encontrou “graves irregularidades no recebimento, cadastramento e distribuição de fármacos contratados, resultando no desabastecimento farmacêutico generalizado das unidades de saúde da TI Yanomami”, segundo nota assinada por procuradores da 6ª Câmara da Procuradoria-Geral da República (PGR), que trata de temas ligados aos indígenas.

Leia a nota do Ministério da Saúde

O Ministério da Saúde informa que, no início de 2023, a atual gestão se deparou com um cenário de crise humanitária do povo Yanomami causado pela desassistência e desestruturação da saúde indígena nos últimos anos. A Pasta também herdou estoques de medicamentos sem tempo hábil para distribuição e uso, comprados sem critérios ou planejamento. Desde então, o Ministério está reestruturando as políticas de saúde indígena e retomou a gestão dos estoques, evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade.

Desde o início da operação de emergência no território, todos os medicamentos e insumos necessários para salvar vidas são utilizados pelas equipes de saúde. Não há falta de medicamentos ou insumos para assistência dessa população. Os medicamentos que foram comprados nos anos anteriores e estavam com a data de validade próxima do vencimento, foram descartados.

Para mitigar a perda de insumos, o Ministério instituiu, em 2023, um comitê permanente para monitorar a situação e adotar ações emergenciais como pactuação junto aos estados, municípios e DSEIs para racionalizar a distribuição do estoque atual, dando prioridade aos itens de menor prazo de validade.

Ao longo do ano de 2023, a unidade do SUS para atendimento aos indígenas da etnia Yanomami, em Roraima, jogou fora centenas de milhares de medicamentos que perderam a validade. Dentre os remédios desperdiçados há pelo menos um lote de uma droga de custo elevado. Foram jogadas fora 1.690 unidades de Paxlovid, um antiviral para combate à covid-19, vendido a quase R$ 5 mil a caixa – no mercado, a quantidade descartada sairia a quase R$ 250 mil. Também foram descartados outros insumos, como milhares de testes rápidos de covid-19 e de HIV. Os Yanomami enfrentam grave crise humanitária nos últimos anos.

Ao Estadão, o Ministério da Saúde afirmou que herdou do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estoques de medicamentos “sem tempo hábil para distribuição e uso”. A pasta disse também que busca reestruturar as políticas de saúde indígena “evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade”. (leia a nota completa no final da reportagem)

Segundo líderes indígenas ouvidos pela reportagem, a Terra Indígena Yanomami sofreu com a falta de medicamentos durante o período em que esses remédios agora descartados estavam válidos, ao longo de 2021 e 2022.

Medicamentos destinados ao DSEI-YY encontrados numa casa abandonada em Boa Vista (RR) Foto: @urihiyanomami via Instagram

Os medicamentos foram descartados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-YY), uma subdivisão do Sistema Único de Saúde (SUS) voltada ao atendimento deste povo indígena em regiões dos Estados de Roraima e do Amazonas. As informações sobre o descarte foram fornecidas pelo próprio DSEI-YY, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A resposta inclui dois conjuntos de tabelas; no maior deles, o número de unidades de medicamentos descartados soma mais de 257 mil itens.

De longe, as drogas com maior quantidade descartada são a ivermectina (até 48.228 comprimidos) e a cloroquina (até 12.580). As duas drogas foram apostas do governo de Jair Bolsonaro (PL) para o combate à pandemia de Covid-19, embora não exista comprovação da efetividade delas no tratamento da doença. A cloroquina é também usada no tratamento da malária, doença comum na região.

Uma das tabelas do DSEI-YY menciona quase 40.000 comprimidos do vermífugo Ivermectina descartados Foto: DSEI-YY / Reprodução

A crise humanitária enfrentada pelos Yanomami voltou à cena recentemente, quando dados do Ministério da Saúde (MS) mostraram um possível aumento da mortalidade dos Yanomami no primeiro ano do governo Lula (PT). Segundo os dados obtidos pelo site Poder360, foram 363 óbitos em 2023, ante 343 em 2022 – uma alta de 5,8%. O MS nega o aumento, e diz que há subnotificação das mortes de 2022.

Líderes indígenas ouvidos pelo Estadão atribuem as mortes na região principalmente à destruição do modo de vida tradicional dos Yanomami e à entrada de garimpeiros ilegais no território, expondo os indígenas a doenças e a atos de violência. Além das doenças, os Yanomami sofrem com a desnutrição e a fome. Em janeiro de 2023, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou a investigação de possível crime de genocídio contra os Yanomami por parte do governo Bolsonaro.

Ao responder aos questionamentos, o DSEI-YY enviou dois conjuntos de tabelas: o primeiro parece ser um resumo de todos os medicamentos vencidos descartados ao longo de 2023, até a data da resposta, em outubro. Neste primeiro conjunto, os remédios descartados somam pouco mais de 150 mil itens, incluindo 43.412 comprimidos do vermífugo ivermectina. O segundo conjunto inclui pouco mais de 50 tabelas de medicamentos descartados ao longo do ano de 2023, somando 257.686 itens.

Cada tabela nesse segundo conjunto é acompanhada de um ofício, assinado por uma farmacêutica, informando a Divisão de Atenção à Saúde Indígena (Diasi) sobre o descarte. Do total jogado fora, 86% perdeu a validade ao longo de 2023, mas há também medicamentos que venceram em anos anteriores (até 2015) e remédios ainda dentro da data de validade. “Trata-se o presente expediente referente a solicitação de descarte de resíduos de serviços de saúde (...), conforme a planilha anexa”, diz um dos ofícios, datado de março de 2023.

Um dos ofícios do DSEI-YY informando sobre o descarte de medicamentos Foto: DSEI-YY / Reprodução

Alguns dos lotes de medicamentos presentes no segundo conjunto de tabelas também constam do primeiro. Portanto, não é possível somar os dois. No segundo conjunto de tabelas, há menção a 48.228 comprimidos de ivermectina e 12.580 de cloroquina. O primeiro medicamento tem validade de dois anos, e o segundo, de três anos – o que sugere que os estoques foram comprados ainda durante o governo de Jair Bolsonaro.

Num dos casos, há o registro de descarte de 1.690 unidades de Paxlovid 150mg da Pfizer. O antiviral foi desenvolvido para tratar casos de covid-19 durante a pandemia, e não é barato: cada caixa com 30 comprimidos sai entre R$ 4,6 mil e R$ 4,8 mil. Mesmo que as “unidades” sejam comprimidos, e não caixas, o valor total dos medicamentos jogados fora seria de pouco mais de R$ 250 mil, considerando os preços de mercado.

Tabela mostra descarte de 1.690 unidades de Paxlovid Foto: DSEI-YY / Reprodução

Os materiais descartados incluem ao menos 1.910 testes rápidos de Covid-19 e medicamentos relativamente caros, como ampolas de citrato de fentanila, um analgésico injetável. Neste caso, cada conjunto de 50 ampolas é vendido a R$ 473 – o documento fala em 3.350 dessas, ou seja, pouco mais de R$ 31 mil foram perdidos só neste medicamento. Há ainda 152 testes rápidos de HIV / Aids. Cada um é vendido nas farmácias entre R$ 53,50 e R$ 99. Para tratar e compilar os dados de medicamentos descartados, a reportagem usou a ferramenta Pinpoint, do Google.

A sede do DSEI-YY fica na capital Boa Vista (RR), mas o órgão inclui também 37 polos base e 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI), que atendem um público de quase 28 mil indígenas, espalhados por 366 aldeias. Além dos Yanomami, que formam o grupo mais numeroso, o DSEI-YY atende também às etnias Sanumã, Ninan, Yawari/Xamathari e Yekuana. No fim de 2022, 807 profissionais trabalhavam no DSEI-YY, que foi o primeiro do tipo criado no país, ainda em 1991. Hoje, há 34 DSEIs em funcionamento.

Kleber Karipuna é coordenador-executivo da APIB. Ele considera que o desperdício de medicamentos é grave, especialmente porque os insumos podem estar faltando em outras áreas. É preciso verificar se houve compra em excesso dos produtos; se eles foram acondicionados corretamente e de quem é a responsabilidade – é provável, inclusive, que os medicamentos tenham sido comprados no governo anterior, aponta ele.

Frasco de Amoxicilina descartado numa casa abandonada em Boa Vista Foto: @urihiyanomami via Instagram

Karipuna diz ainda que a entrada de garimpeiros ilegais nas terras indígenas é hoje o “principal vetor” de aumento da mortalidade dos yanomami. A crise atual é resultado de décadas de negligência do poder público e não será resolvida só pela ação do Ministério da Saúde e da Funai, diz. Outras políticas públicas, como a de segurança, também são necessárias.

Medicamentos vencidos em casa abandonada

No dia 31 de janeiro deste ano, a Polícia Civil de Roraima (PC-RR) encontrou vários sacos de lixo e caixas de medicamentos vencidos numa casa abandonada em Boa Vista. Os produtos eram destinados ao DSEI Yanomami. O flagrante ocorreu durante uma apuração sobre tráfico de drogas no bairro São Francisco, na zona Norte da cidade. Na ocasião, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, disse que os medicamentos já estavam vencidos desde o governo Bolsonaro. As investigações sobre o caso foram repassadas à Polícia Federal (PF).

Esta não é a primeira apuração envolvendo a gestão de medicamentos no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. No fim de 2022, a PF e o Ministério Público Federal (MPF) deflagraram a operação Yoasi, destinada a apurar a suposta fraude na compra de medicação destinada ao DSEI-YY. Dois ex-coordenadores do órgão e um empresário foram alvo da operação. Segundo os investigadores, a empresa deixou de entregar os medicamentos comprados, provocando desabastecimento no DSEI-YY. Em outubro passado, houve uma nova fase da Yoasi, mirando a operação de lavagem do dinheiro desviado.

Tabela mostra relação de medicamentos descartados ao longo de 2023 Foto: DSEI-YY / Reprodução

Apesar disso, na resposta ao pedido de Lei de Acesso à Informação, o DSEI-YY diz que todo o processo de descarte de medicamentos é acompanhado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Controladoria-Geral da União (CGU), sendo que as últimas auditorias desses dois órgãos foram junho e julho de 2023, respectivamente. Os principais motivos para o descarte de medicamentos são “rupturas ou danos nos invólucros das embalagens” e “validade expirada”, segundo a resposta. “O descarte é realizado mediante empresa licitada e contratada para o desenvolvimento de serviço de gestão dos resíduos dos serviços de saúde (...). O protocolo estabelece que toda medicação descartada seja quantificada e identificada quanto ao lote, validade e fabricante”.

Houve falta de medicamentos sob Bolsonaro, diz Yanomami

Segundo o líder indígena Júnior Hekurari Yanomami, morador da comunidade Surucucu, o principal problema enfrentado pela etnia durante o governo Jair Bolsonaro foi a falta de medicamentos – não o excesso.

“Em 2020, nós Yanomami cobramos muito, avisamos muito que o medicamento tava faltando na Terra Indígena Yanomami. Muita gente, muitas crianças morreram por falta de medicamento. Antibióticos, azitromicina, de febre, e outros. Naqueles anos, 2020, 2021, 2022, faltou medicamento na comunidade. E profissionais, também. Na época, denunciamos à Polícia Federal e eles descobriram que havia desvios de medicamentos”, diz ele, que é presidente da Urihi Associação Yanomami. “Eu mesmo denunciei bastante essa falta de medicamentos. Polícia Federal e Ministério Público Federal começaram a investigar e descobriram que tinha muita coisa errada”, conta Júnior Hekurari.

“Em 2021, 2020, a gente também tinha muitos relatos de gestores que desviavam (os medicamentos) para os garimpos, na terra indígena Yanomami”, diz Hekurari. “Gestores que trabalhavam no setor de medicamento também trocavam esses medicamentos por ouro (extraído pelos garimpos). Com certeza aqueles medicamentos (achados em Boa Vista), como a gente denunciava bastante, eles ficaram com medo e esconderam lá. Era para estar na terra indígena. A responsabilidade (é) do governo passado, de deixar o povo Yanomami morrer, por falta de medicamento”, diz ele. Além das doenças, os indígenas também sofrem com a fome.

Ao Estadão, o professor emérito da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Gerson Pianetti afirmou que o descarte dos medicamentos na TI Yanomami revela uma falta de planejamento por parte do DSEI-YY. O especialista explica que o normal é que os fármacos sejam enviados a outras unidades do SUS antes de chegar no prazo de validade, sendo essa uma forma de evitar a escassez de tratamentos para os indígenas.

“É uma questão muito grave. São medicamentos que estão fazendo falta no tratamento das pessoas e isso se configura, para mim, um crime. Não se sabe também como esses medicamentos estão sendo descartados, então pode até se configurar um crime ambiental também por conta da contaminação”, afirma.

Em 2022, a Procuradoria da República em Roraima, braço do Ministério Público Federal naquele Estado, instaurou um inquérito civil para investigar as “reiteradas notícias de desabastecimento dos estoques de medicamentos” no DSEI Yanomami. Na época, a apuração encontrou “graves irregularidades no recebimento, cadastramento e distribuição de fármacos contratados, resultando no desabastecimento farmacêutico generalizado das unidades de saúde da TI Yanomami”, segundo nota assinada por procuradores da 6ª Câmara da Procuradoria-Geral da República (PGR), que trata de temas ligados aos indígenas.

Leia a nota do Ministério da Saúde

O Ministério da Saúde informa que, no início de 2023, a atual gestão se deparou com um cenário de crise humanitária do povo Yanomami causado pela desassistência e desestruturação da saúde indígena nos últimos anos. A Pasta também herdou estoques de medicamentos sem tempo hábil para distribuição e uso, comprados sem critérios ou planejamento. Desde então, o Ministério está reestruturando as políticas de saúde indígena e retomou a gestão dos estoques, evitando desperdícios e garantindo a distribuição de acordo com a necessidade.

Desde o início da operação de emergência no território, todos os medicamentos e insumos necessários para salvar vidas são utilizados pelas equipes de saúde. Não há falta de medicamentos ou insumos para assistência dessa população. Os medicamentos que foram comprados nos anos anteriores e estavam com a data de validade próxima do vencimento, foram descartados.

Para mitigar a perda de insumos, o Ministério instituiu, em 2023, um comitê permanente para monitorar a situação e adotar ações emergenciais como pactuação junto aos estados, municípios e DSEIs para racionalizar a distribuição do estoque atual, dando prioridade aos itens de menor prazo de validade.

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