Ele escreveu um livro para que você sinta nojo dos ultraprocessados - e tem bons motivos para isso


Em ‘Gente Ultraprocessada’, o pesquisador britânico Chris van Tulleken conta sobre a experiência de passar semanas se alimentando basicamente desse tipo de produto, que, segundo ele, está longe de ser comida

Por Leon Ferrari
Atualização:
Foto: Jonny Storey
Entrevista comChris van Tullekenprofessor associado da University College London e autor do livro 'Gente ultraprocessada'

“Ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram… não-alimentos”, escreve o britânico Chris van Tulleken, infectologista no Hospital de Doenças Tropicais em Londres e professor associado da University College London (UCL), no livro “Gente ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las” (Editora Elefante), que acaba de ganhar uma versão traduzida para o português.

“Muito disso (que comemos) são restos da indústria do bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível”, explica ele, ao Estadão.

Para escrever o livro, ele se lançou a um desafio mais complicado do que poderia imaginar. Pararia de comer ultraprocessados por um mês. Seria examinado de todas as maneiras possíveis. No mês seguinte, por outro lado, seguiria uma dieta em que 80% das calorias viriam desses produtos.

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O teste foi inspirado no trabalho do pesquisador americano Kevin Hall. Uma equipe liderada por ele mostrou, em experimento controlado em laboratório, que passar duas semanas à base de uma dieta com ultraprocessados fez os participantes consumirem, em média, 508 calorias a mais por dia em comparação a uma alimentação sem esses produtos. Nesse curto período, os indivíduos ganharam cerca de 0,9 kg. A pesquisa foi publicada na revista científica Cell Metabolism.

O conceito de ultraprocessados é brasileiro. Ele faz parte da classificação NOVA (leia mais aqui), criada pelo médico Carlos Monteiro e seus colegas do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP. De forma bem simples, esse tipo de produto passou por diversos processos industriais e é formulado com ingredientes pouco familiares, que ninguém usa na cozinha, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos.

Ultraprocessados não são sinônimo de 'junk food', conceito é mais abrangente Foto: anaumenko/Adobe Stock
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Desde que foi lançada, nos anos 2000, a classificação NOVA revolucionou a pesquisa em nutrição no mundo, dando apoio a um acúmulo de evidências que relacionam os ultraprocessados à atual pandemia de sobrepeso e obesidade.

Chris duvidava desse enredo e, por isso, decidiu colocar o próprio corpo à prova. Enquanto fazia isso, conversou com pesquisadores independentes — não financiados pela indústria alimentícia — e também com pessoas de dentro dessas empresas. O resultado é um livro provocante e envolvente.

Com a obra, Chris não propõe nenhuma dieta nem aconselha você a rejeitar os ultraprocessados. O que ele deseja é contribuir com informações a respeito desses produtos, explorando como são feitos e com qual objetivo. No fim das contas, espera que as pessoas concluam que também é preciso sentir “nojinho” dos ultraprocessados. “É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar”, afirma.

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Confira a entrevista:

Gostaria que você contasse sobre a escolha do título do livro. O ultraprocessamento não está presente apenas nos alimentos?

Uma vez que você entende que o ultraprocessamento não tem a ver (só) com emulsificantes, estabilizantes, umectantes ou embalagens, mas é um conjunto de ferramentas de design e desenvolvimento que cria produtos viciantes, ou quase viciantes, a partir de materiais muito baratos, percebe que a nossa tecnologia é ultraprocessada.

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Os aplicativos em nossos celulares são ultraprocessados. Os próprios celulares são ultraprocessados. Nossa música está cada vez mais ultraprocessada. Eu tenho uma filha de sete anos, e ela escuta muita música pop, que é o equivalente musical ao alimento ultraprocessado, já que foi projetada por computadores para ser consumida repetidamente. Nosso mundo está cada vez mais ultraprocessado, porque as corporações que fabricam os produtos são cada vez maiores, mais poderosas e transnacionais, e são guiadas pelos mesmos incentivos financeiros.

A propósito, não estou criticando. Essa é apenas a realidade do mundo. E eu não sei o que podemos fazer a respeito, além de revelar isso e tentar imaginar uma forma de regulação melhor. Mas, sim, o ultraprocessamento vai muito além dos alimentos.

Por que você se preocupa com essa sociedade ultraprocessada?

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Porque é completamente insustentável. Há duas razões básicas. A primeira é a emissão de gases de efeito estufa. O segundo maior emissor é o sistema alimentar. E também destruímos a capacidade do nosso planeta de absorver alguns desses gases ao derrubar florestas tropicais para cultivar soja, palma e criar gado. Quero dizer, também há a questão automotiva, da aviação e nossa dependência geral do carvão. Mas muito do carbono que queimamos vem do cultivo do que comemos.

Sim, estou extremamente preocupado do ponto de vista planetário e me interesso por questões de justiça, igualdade e direitos para todos. Eu pago impostos, mas as empresas não pagam impostos suficientes. Eu estou arcando com os custos de saúde, enquanto as empresas lucram. Elas ficam com todos os benefícios, e você e eu assumimos todo o risco.

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Você escreveu que ‘ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram não-alimentos’. Poderia explicar um pouco mais?

A comida humana foi inventada principalmente por mulheres, em cavernas, depois, em cabanas e, por fim, em cozinhas domésticas. Foram principalmente as mulheres que descobriram como extrair energia e nutrientes de milhares de plantas e animais diferentes. Podemos nos alimentar talvez de 10 mil espécies diferentes, e o propósito dessa comida era nos nutrir.

O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro. Quais são as definições comuns de ‘comida’ hoje? É apenas algo para transformar nossa saúde em dinheiro. Muito disso são restos da indústria de bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível.

O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

Você escreveu que os ultraprocessados talvez sejam o tipo de alimento que menos inspecionamos antes de levar à boca. Lembro que, quando tinha viagem da escola na infância, a orientação da minha mãe era que eu só comesse coisas que pudesse desembalar. O que criou esse senso de segurança em relação aos ultraprocessados?

Primeiro de tudo, sua mãe é uma mulher inteligente. Historicamente, os humanos estavam certos em se preocupar se a comida era microbiologicamente segura, se não iria te envenenar porque estava cheia de bactérias, e a indústria alimentícia tem dito de forma muito hábil: ‘Nossa comida não vai te dar diarreia ou te deixar agudamente doente’.

Eles exploram nossa capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, é fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar.

Temos uma capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

A grande questão é: como elas dominaram o sistema alimentar? As empresas alimentícias vencem a comida tradicional em termos de conveniência, já que você pode simplesmente colocá-la no micro-ondas; e também no preço, porque, para produzi-la, partem da monocultura da soja e ingredientes que custam centavos por tonelada; e eles vencem no marketing, pois são capazes de cobrir tudo com alegações de saúde e slogans.

Mas a principal razão pela qual eles dominam o sistema alimentar é que as grandes empresas alimentícias pagaram cientistas muito habilidosos para fazer duas coisas. Primeiro de tudo, desenvolver a comida em si. Sabemos que, na Unilever e na Pepsi, cientistas foram pagos para testar a comida colocando pessoas em scanners de ressonância magnética. A ideia era avaliar como as partes do cérebro relacionadas à recompensa e à adicção funcionavam. Eles usam cientistas brilhantes para criar comida que não é necessariamente a mais deliciosa, mas é muito difícil de parar de comer. A segunda coisa que esses cientistas pagos pela indústria fazem é defender essa comida: ‘É a única maneira de alimentar o mundo.’ ‘Esta comida é segura, é inofensiva.’

Outra comparação realmente importante é com a indústria do tabaco. Como eles nos fizeram fumar e como impediram que percebêssemos (o quão mal fazia)? Fizeram o mesmo que a indústria alimentícia faz. No fundo, a verdade é que eles usaram todas as ferramentas à disposição e gastaram dinheiro. O orçamento de marketing voltado para o consumidor da Nestlé, nos últimos anos, é de cerca de US$ 10 bilhões por ano. Eles têm mais dinheiro do que a maioria dos governos.

A indústria alimentícia tem apostado em produtos com apelos de saúde, como ‘mais proteína’ e ‘sem açúcar’, mas que não deixam de ser ultraprocessados – e contam com a ajuda de influencers fitness. O que acha desse tipo de estratégia?

Criar confusão é útil. No Reino Unido, e cada vez mais no Brasil, estamos todos acostumados a consumir certos produtos. Meio que gostamos deles ou estamos viciados neles. Para sermos convencidos a parar de usá-los, precisamos de evidências realmente boas e de pessoas em quem confiamos dizendo que fazem mal.

A indústria é muito boa em criar confusão. No Reino Unido, eles pagam o Science Media Centre, que é uma espécie de central de imprensa que fornece todas as citações sobre alimentos para nossa imprensa. Então, um artigo é publicado sobre alimentos ultraprocessados, e o Science Media Centre faz com que cientistas deem declarações sobre isso. A maioria dos cientistas que dão declarações é paga pela indústria alimentícia.

E o próprio Science Media é financiado pela Nestlé, Procter & Gamble e muitas outras empresas alimentícias. O tempo todo, esses cientistas dizem: ‘Alguns ultraprocessados são saudáveis.’ ‘Ultraprocessados é uma definição muito ampla.’ ‘Essa evidência é observacional, é populacional, não é uma prova real, o verdadeiro problema é sal e açúcar.’ Lendo as reportagens, não se sabe que a pessoa que está dizendo isso é financiada pela indústria e fica confuso. E quando você está confuso, a coisa mais fácil a fazer é nada.

Outra coisa é que a indústria, cada vez mais, tem dito que, ao criticar alimentos ultraprocessados, você estigmatiza as pessoas pobres que têm que comê-los e também os indivíduos que vivem com obesidade, e que você vai criar transtornos alimentares. Mas acho que nós, meus colegas e eu, temos sido razoavelmente bons até agora em dizer: ‘Não, o problema são vocês (a indústria).’ O problema é vocês forçarem as pessoas pobres a comerem essa comida. O problema para as pessoas que vivem com obesidade é que você disse a elas que essa comida é saudável. E quando se trata de transtornos alimentares, temos evidências crescentes de que muitos deles são impulsionados por alimentos estranhos que bagunçam os níveis hormonais e o apetite.

A indústria tem mais dinheiro do que a ciência. Eles pagam influenciadores, médicos, cientistas, formuladores de políticas no Reino Unido. Dos membros do comitê consultivo científico sobre nutrição no governo, 65% têm relacionamentos financeiros com empresas como Nestlé e Coca-Cola.

Falando sobre obesidade, você disse que ‘somos muito menos responsáveis pelo nosso peso do que um esquiador é por quebrar a perna’. Poderia falar mais sobre isso?

Todos que vivem com excesso de peso e obesidade — eu mesmo já vivi com excesso de peso, e meu irmão com obesidade — sente como se fosse culpa deles, como se tivessem a escolha de comer os alimentos não saudáveis, e a realidade é que não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram. É como dizer que as pessoas escolhem fumar. Pessoas na indústria alimentícia me disseram, muitos deles, que fazem esses alimentos para serem viciantes. Então, é como dizer aos fumantes: ‘A razão pela qual você fuma é porque é fraco demais para largar o cigarro’. Força de vontade não tem nada a ver com isso.

Não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

Sabemos que todos no Brasil e na América começaram a ganhar peso ao mesmo tempo. Nos EUA, foi em meados da década de 1970. Negros, brancos, hispânicos, mulheres idosas, homens jovens, todos ganharam peso juntos. Você não pode me dizer que todas essas pessoas perderam a responsabilidade moral ao mesmo tempo em 1975. O que mudou foi o ambiente alimentar.

A mensagem principal do meu livro para esse leitor que está vivendo com obesidade ou sobrepeso é que não é culpa deles. Você está comendo alimentos que são projetados pelas pessoas mais inteligentes do planeta, e comercializados por pessoas igualmente inteligentes. Você precisa parar de se culpar e direcionar a vergonha e a raiva contra si mesmo para os médicos que recebem dinheiro das empresas, as próprias empresas e os governos que falharam em regular essas empresas.

Na sua avaliação, então, temos evidências suficientes para dizer que a pandemia de obesidade e sobrepeso é causada pelos ultraprocessados?

A evidência é muito clara de que alimentos ultraprocessados causam o que chamamos de desfechos negativos em saúde. Portanto, causam ganho de peso e obesidade, câncer, morte prematura e uma série de outras coisas. Agora, como temos certeza de que são os alimentos ultraprocessados? Há duas razões.

A indústria alimentícia quer saber: é o ultraprocessamento ou são apenas a gordura, o sal e o açúcar? A resposta a essa pergunta não é muito importante, embora possamos respondê-la. O que todos concordam é que, quando se trata de desfechos negativos em saúde, o problema são produtos industriais pré-preparados ricos em gordura, sal, açúcar e calorias. Um artigo que acabei de escrever (que ainda não foi publicado) mostra que 99% dos alimentos ultraprocessados têm altos níveis disso. Todos os alimentos ultraprocessados têm altos níveis de gordura, sal, açúcar e calorias. Ninguém acredita que isso seja um problema de cozinhar em casa.

Quando você analisa as evidências epidemiológicas, como esses grandes estudos populacionais, pode usar um conjunto de critérios chamado Critérios de Bradford Hill (foram nove os critérios desenvolvidos por esse epidemiologista e estatístico e, quanto mais deles forem preenchidos, maior a chance da associação ser de ‘causa e efeito’). A pergunta interessante é: são os alimentos ultraprocessados ou é apenas a pobreza, o álcool e os cigarros que estão causando todos esses problemas? Porque as pessoas que consomem muitos alimentos ultraprocessados, certamente no Reino Unido, geralmente têm rendas mais baixas e apresentam essas outras vulnerabilidades. Você verifica se a associação é forte, se é consistente em diferentes populações, se ocorre na ordem de exposição — ou seja, você deve ter certeza de que não é que as pessoas ganham peso e depois começam a comer alimentos ultraprocessados — e se há uma curva de resposta à dose. Isso foi importante para (nossa compreensão sobre os danos) os cigarros, e é o que vemos também com os alimentos ultraprocessados.

E temos uma montanha de evidências experimentais sobre os aditivos, sobre as propriedades dos alimentos, sobre os níveis de sal, gordura, açúcar e calorias. E, a última coisa, é coerente com todas as outras evidências. Temos evidências muito boas de que comer dietas minimamente processadas, com peixe, frutas, vegetais, nozes e leguminosas, nos faz bem.

Então, se alguém me diz que não acredita na evidência sobre alimentos ultraprocessados, a pergunta é: ‘Como você explica isso?’ Você está sugerindo que há algum vírus estranho? Você está propondo que as pessoas estão cozinhando alimentos piores em casa? Você precisa apresentar outra explicação que seja mais plausível.

Agora, as únicas coisas que quero destacar são duas notas de cautela. Nem todos os alimentos ultraprocessados são igualmente prejudiciais. Portanto, comer um doce completamente sintético é quase certamente pior para você do que comer um pão integral, que apenas tem um emulsificante.

A outra coisa a dizer é que há muitos produtos que não são ultraprocessados e não são saudáveis, especialmente no Reino Unido. Porque as empresas perceberam que o público entendeu o perigo dos ultraprocessados e, portanto, estão retirando os aditivos. Coloquei isso no livro. Tive que ligar para Carlos (Monteiro) e a equipe dele, e mostrar alguns desses produtos e perguntar se eram ultraprocessados. ‘Essa lasanha que não tem aditivos é um ultraprocessado?’ Tecnicamente não é, mas funciona como um e ainda será ruim para você.

Na teoria, não podemos ser viciados em comida, você escreve isso no livro, inclusive. Mas, se não considerarmos que os ultraprocessados são comida, o jogo muda?

Você não precisa de um exame ou de um teste de sangue para diagnosticar uma adicção. Se o leitor está se perguntando se está viciado, deve se fazer uma pergunta: você é capaz de parar de usar uma substância ou de ter um determinado comportamento, apesar de saber que isso está te prejudicando de alguma forma? Se, apesar de tentar parar, não consegue, isso é o começo de uma adicção.

Há, claro, escalas e graus de dano. Há pessoas que perdem suas casas (por causa das drogas). Mas não há dúvida de que um grande número de pessoas continua a comer alimentos que sabem que são prejudiciais e não conseguem parar, mesmo que queiram desesperadamente parar.

Sobre seu experimento, você passou semanas comendo quase só ultraprocessados, e semanas sem eles. Como isso transformou a maneira como você se alimenta hoje?

O principal é que ganhei muito peso, meus hormônios ficaram desregulados e a ressonância magnética do meu cérebro mudou (após quatro semanas comendo só ultraprocessados). Uma coisa que aconteceu com minha dieta foi uma experiência de aversão. Eu conversava com Fernanda Rauber (pesquisadora no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo), e ela continuava dizendo: ‘Isso não é comida’. A comida se tornou horrível para mim. Então, eu parei de comer essa comida.

Demorei para perder o peso que ganhei — agora já perdi tudo. O que eu tive que fazer foi retirar cada partícula de alimento ultraprocessado da minha dieta. De certa forma, foi bastante extremo, e sou sortudo por poder fazer isso. Eu realmente não quero comer ultraprocessados, mas também não aconselho ninguém a fazer isso.

Fiquei impressionado com o quão difícil foi para mim, como médico que estuda nutrição, perder seis, sete quilos. Foi realmente difícil. E isso me deu muita empatia com meus pacientes.

“Ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram… não-alimentos”, escreve o britânico Chris van Tulleken, infectologista no Hospital de Doenças Tropicais em Londres e professor associado da University College London (UCL), no livro “Gente ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las” (Editora Elefante), que acaba de ganhar uma versão traduzida para o português.

“Muito disso (que comemos) são restos da indústria do bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível”, explica ele, ao Estadão.

Para escrever o livro, ele se lançou a um desafio mais complicado do que poderia imaginar. Pararia de comer ultraprocessados por um mês. Seria examinado de todas as maneiras possíveis. No mês seguinte, por outro lado, seguiria uma dieta em que 80% das calorias viriam desses produtos.

O teste foi inspirado no trabalho do pesquisador americano Kevin Hall. Uma equipe liderada por ele mostrou, em experimento controlado em laboratório, que passar duas semanas à base de uma dieta com ultraprocessados fez os participantes consumirem, em média, 508 calorias a mais por dia em comparação a uma alimentação sem esses produtos. Nesse curto período, os indivíduos ganharam cerca de 0,9 kg. A pesquisa foi publicada na revista científica Cell Metabolism.

O conceito de ultraprocessados é brasileiro. Ele faz parte da classificação NOVA (leia mais aqui), criada pelo médico Carlos Monteiro e seus colegas do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP. De forma bem simples, esse tipo de produto passou por diversos processos industriais e é formulado com ingredientes pouco familiares, que ninguém usa na cozinha, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos.

Ultraprocessados não são sinônimo de 'junk food', conceito é mais abrangente Foto: anaumenko/Adobe Stock

Desde que foi lançada, nos anos 2000, a classificação NOVA revolucionou a pesquisa em nutrição no mundo, dando apoio a um acúmulo de evidências que relacionam os ultraprocessados à atual pandemia de sobrepeso e obesidade.

Chris duvidava desse enredo e, por isso, decidiu colocar o próprio corpo à prova. Enquanto fazia isso, conversou com pesquisadores independentes — não financiados pela indústria alimentícia — e também com pessoas de dentro dessas empresas. O resultado é um livro provocante e envolvente.

Com a obra, Chris não propõe nenhuma dieta nem aconselha você a rejeitar os ultraprocessados. O que ele deseja é contribuir com informações a respeito desses produtos, explorando como são feitos e com qual objetivo. No fim das contas, espera que as pessoas concluam que também é preciso sentir “nojinho” dos ultraprocessados. “É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar”, afirma.

Confira a entrevista:

Gostaria que você contasse sobre a escolha do título do livro. O ultraprocessamento não está presente apenas nos alimentos?

Uma vez que você entende que o ultraprocessamento não tem a ver (só) com emulsificantes, estabilizantes, umectantes ou embalagens, mas é um conjunto de ferramentas de design e desenvolvimento que cria produtos viciantes, ou quase viciantes, a partir de materiais muito baratos, percebe que a nossa tecnologia é ultraprocessada.

Os aplicativos em nossos celulares são ultraprocessados. Os próprios celulares são ultraprocessados. Nossa música está cada vez mais ultraprocessada. Eu tenho uma filha de sete anos, e ela escuta muita música pop, que é o equivalente musical ao alimento ultraprocessado, já que foi projetada por computadores para ser consumida repetidamente. Nosso mundo está cada vez mais ultraprocessado, porque as corporações que fabricam os produtos são cada vez maiores, mais poderosas e transnacionais, e são guiadas pelos mesmos incentivos financeiros.

A propósito, não estou criticando. Essa é apenas a realidade do mundo. E eu não sei o que podemos fazer a respeito, além de revelar isso e tentar imaginar uma forma de regulação melhor. Mas, sim, o ultraprocessamento vai muito além dos alimentos.

Por que você se preocupa com essa sociedade ultraprocessada?

Porque é completamente insustentável. Há duas razões básicas. A primeira é a emissão de gases de efeito estufa. O segundo maior emissor é o sistema alimentar. E também destruímos a capacidade do nosso planeta de absorver alguns desses gases ao derrubar florestas tropicais para cultivar soja, palma e criar gado. Quero dizer, também há a questão automotiva, da aviação e nossa dependência geral do carvão. Mas muito do carbono que queimamos vem do cultivo do que comemos.

Sim, estou extremamente preocupado do ponto de vista planetário e me interesso por questões de justiça, igualdade e direitos para todos. Eu pago impostos, mas as empresas não pagam impostos suficientes. Eu estou arcando com os custos de saúde, enquanto as empresas lucram. Elas ficam com todos os benefícios, e você e eu assumimos todo o risco.

Você escreveu que ‘ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram não-alimentos’. Poderia explicar um pouco mais?

A comida humana foi inventada principalmente por mulheres, em cavernas, depois, em cabanas e, por fim, em cozinhas domésticas. Foram principalmente as mulheres que descobriram como extrair energia e nutrientes de milhares de plantas e animais diferentes. Podemos nos alimentar talvez de 10 mil espécies diferentes, e o propósito dessa comida era nos nutrir.

O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro. Quais são as definições comuns de ‘comida’ hoje? É apenas algo para transformar nossa saúde em dinheiro. Muito disso são restos da indústria de bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível.

O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

Você escreveu que os ultraprocessados talvez sejam o tipo de alimento que menos inspecionamos antes de levar à boca. Lembro que, quando tinha viagem da escola na infância, a orientação da minha mãe era que eu só comesse coisas que pudesse desembalar. O que criou esse senso de segurança em relação aos ultraprocessados?

Primeiro de tudo, sua mãe é uma mulher inteligente. Historicamente, os humanos estavam certos em se preocupar se a comida era microbiologicamente segura, se não iria te envenenar porque estava cheia de bactérias, e a indústria alimentícia tem dito de forma muito hábil: ‘Nossa comida não vai te dar diarreia ou te deixar agudamente doente’.

Eles exploram nossa capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, é fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar.

Temos uma capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

A grande questão é: como elas dominaram o sistema alimentar? As empresas alimentícias vencem a comida tradicional em termos de conveniência, já que você pode simplesmente colocá-la no micro-ondas; e também no preço, porque, para produzi-la, partem da monocultura da soja e ingredientes que custam centavos por tonelada; e eles vencem no marketing, pois são capazes de cobrir tudo com alegações de saúde e slogans.

Mas a principal razão pela qual eles dominam o sistema alimentar é que as grandes empresas alimentícias pagaram cientistas muito habilidosos para fazer duas coisas. Primeiro de tudo, desenvolver a comida em si. Sabemos que, na Unilever e na Pepsi, cientistas foram pagos para testar a comida colocando pessoas em scanners de ressonância magnética. A ideia era avaliar como as partes do cérebro relacionadas à recompensa e à adicção funcionavam. Eles usam cientistas brilhantes para criar comida que não é necessariamente a mais deliciosa, mas é muito difícil de parar de comer. A segunda coisa que esses cientistas pagos pela indústria fazem é defender essa comida: ‘É a única maneira de alimentar o mundo.’ ‘Esta comida é segura, é inofensiva.’

Outra comparação realmente importante é com a indústria do tabaco. Como eles nos fizeram fumar e como impediram que percebêssemos (o quão mal fazia)? Fizeram o mesmo que a indústria alimentícia faz. No fundo, a verdade é que eles usaram todas as ferramentas à disposição e gastaram dinheiro. O orçamento de marketing voltado para o consumidor da Nestlé, nos últimos anos, é de cerca de US$ 10 bilhões por ano. Eles têm mais dinheiro do que a maioria dos governos.

A indústria alimentícia tem apostado em produtos com apelos de saúde, como ‘mais proteína’ e ‘sem açúcar’, mas que não deixam de ser ultraprocessados – e contam com a ajuda de influencers fitness. O que acha desse tipo de estratégia?

Criar confusão é útil. No Reino Unido, e cada vez mais no Brasil, estamos todos acostumados a consumir certos produtos. Meio que gostamos deles ou estamos viciados neles. Para sermos convencidos a parar de usá-los, precisamos de evidências realmente boas e de pessoas em quem confiamos dizendo que fazem mal.

A indústria é muito boa em criar confusão. No Reino Unido, eles pagam o Science Media Centre, que é uma espécie de central de imprensa que fornece todas as citações sobre alimentos para nossa imprensa. Então, um artigo é publicado sobre alimentos ultraprocessados, e o Science Media Centre faz com que cientistas deem declarações sobre isso. A maioria dos cientistas que dão declarações é paga pela indústria alimentícia.

E o próprio Science Media é financiado pela Nestlé, Procter & Gamble e muitas outras empresas alimentícias. O tempo todo, esses cientistas dizem: ‘Alguns ultraprocessados são saudáveis.’ ‘Ultraprocessados é uma definição muito ampla.’ ‘Essa evidência é observacional, é populacional, não é uma prova real, o verdadeiro problema é sal e açúcar.’ Lendo as reportagens, não se sabe que a pessoa que está dizendo isso é financiada pela indústria e fica confuso. E quando você está confuso, a coisa mais fácil a fazer é nada.

Outra coisa é que a indústria, cada vez mais, tem dito que, ao criticar alimentos ultraprocessados, você estigmatiza as pessoas pobres que têm que comê-los e também os indivíduos que vivem com obesidade, e que você vai criar transtornos alimentares. Mas acho que nós, meus colegas e eu, temos sido razoavelmente bons até agora em dizer: ‘Não, o problema são vocês (a indústria).’ O problema é vocês forçarem as pessoas pobres a comerem essa comida. O problema para as pessoas que vivem com obesidade é que você disse a elas que essa comida é saudável. E quando se trata de transtornos alimentares, temos evidências crescentes de que muitos deles são impulsionados por alimentos estranhos que bagunçam os níveis hormonais e o apetite.

A indústria tem mais dinheiro do que a ciência. Eles pagam influenciadores, médicos, cientistas, formuladores de políticas no Reino Unido. Dos membros do comitê consultivo científico sobre nutrição no governo, 65% têm relacionamentos financeiros com empresas como Nestlé e Coca-Cola.

Falando sobre obesidade, você disse que ‘somos muito menos responsáveis pelo nosso peso do que um esquiador é por quebrar a perna’. Poderia falar mais sobre isso?

Todos que vivem com excesso de peso e obesidade — eu mesmo já vivi com excesso de peso, e meu irmão com obesidade — sente como se fosse culpa deles, como se tivessem a escolha de comer os alimentos não saudáveis, e a realidade é que não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram. É como dizer que as pessoas escolhem fumar. Pessoas na indústria alimentícia me disseram, muitos deles, que fazem esses alimentos para serem viciantes. Então, é como dizer aos fumantes: ‘A razão pela qual você fuma é porque é fraco demais para largar o cigarro’. Força de vontade não tem nada a ver com isso.

Não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

Sabemos que todos no Brasil e na América começaram a ganhar peso ao mesmo tempo. Nos EUA, foi em meados da década de 1970. Negros, brancos, hispânicos, mulheres idosas, homens jovens, todos ganharam peso juntos. Você não pode me dizer que todas essas pessoas perderam a responsabilidade moral ao mesmo tempo em 1975. O que mudou foi o ambiente alimentar.

A mensagem principal do meu livro para esse leitor que está vivendo com obesidade ou sobrepeso é que não é culpa deles. Você está comendo alimentos que são projetados pelas pessoas mais inteligentes do planeta, e comercializados por pessoas igualmente inteligentes. Você precisa parar de se culpar e direcionar a vergonha e a raiva contra si mesmo para os médicos que recebem dinheiro das empresas, as próprias empresas e os governos que falharam em regular essas empresas.

Na sua avaliação, então, temos evidências suficientes para dizer que a pandemia de obesidade e sobrepeso é causada pelos ultraprocessados?

A evidência é muito clara de que alimentos ultraprocessados causam o que chamamos de desfechos negativos em saúde. Portanto, causam ganho de peso e obesidade, câncer, morte prematura e uma série de outras coisas. Agora, como temos certeza de que são os alimentos ultraprocessados? Há duas razões.

A indústria alimentícia quer saber: é o ultraprocessamento ou são apenas a gordura, o sal e o açúcar? A resposta a essa pergunta não é muito importante, embora possamos respondê-la. O que todos concordam é que, quando se trata de desfechos negativos em saúde, o problema são produtos industriais pré-preparados ricos em gordura, sal, açúcar e calorias. Um artigo que acabei de escrever (que ainda não foi publicado) mostra que 99% dos alimentos ultraprocessados têm altos níveis disso. Todos os alimentos ultraprocessados têm altos níveis de gordura, sal, açúcar e calorias. Ninguém acredita que isso seja um problema de cozinhar em casa.

Quando você analisa as evidências epidemiológicas, como esses grandes estudos populacionais, pode usar um conjunto de critérios chamado Critérios de Bradford Hill (foram nove os critérios desenvolvidos por esse epidemiologista e estatístico e, quanto mais deles forem preenchidos, maior a chance da associação ser de ‘causa e efeito’). A pergunta interessante é: são os alimentos ultraprocessados ou é apenas a pobreza, o álcool e os cigarros que estão causando todos esses problemas? Porque as pessoas que consomem muitos alimentos ultraprocessados, certamente no Reino Unido, geralmente têm rendas mais baixas e apresentam essas outras vulnerabilidades. Você verifica se a associação é forte, se é consistente em diferentes populações, se ocorre na ordem de exposição — ou seja, você deve ter certeza de que não é que as pessoas ganham peso e depois começam a comer alimentos ultraprocessados — e se há uma curva de resposta à dose. Isso foi importante para (nossa compreensão sobre os danos) os cigarros, e é o que vemos também com os alimentos ultraprocessados.

E temos uma montanha de evidências experimentais sobre os aditivos, sobre as propriedades dos alimentos, sobre os níveis de sal, gordura, açúcar e calorias. E, a última coisa, é coerente com todas as outras evidências. Temos evidências muito boas de que comer dietas minimamente processadas, com peixe, frutas, vegetais, nozes e leguminosas, nos faz bem.

Então, se alguém me diz que não acredita na evidência sobre alimentos ultraprocessados, a pergunta é: ‘Como você explica isso?’ Você está sugerindo que há algum vírus estranho? Você está propondo que as pessoas estão cozinhando alimentos piores em casa? Você precisa apresentar outra explicação que seja mais plausível.

Agora, as únicas coisas que quero destacar são duas notas de cautela. Nem todos os alimentos ultraprocessados são igualmente prejudiciais. Portanto, comer um doce completamente sintético é quase certamente pior para você do que comer um pão integral, que apenas tem um emulsificante.

A outra coisa a dizer é que há muitos produtos que não são ultraprocessados e não são saudáveis, especialmente no Reino Unido. Porque as empresas perceberam que o público entendeu o perigo dos ultraprocessados e, portanto, estão retirando os aditivos. Coloquei isso no livro. Tive que ligar para Carlos (Monteiro) e a equipe dele, e mostrar alguns desses produtos e perguntar se eram ultraprocessados. ‘Essa lasanha que não tem aditivos é um ultraprocessado?’ Tecnicamente não é, mas funciona como um e ainda será ruim para você.

Na teoria, não podemos ser viciados em comida, você escreve isso no livro, inclusive. Mas, se não considerarmos que os ultraprocessados são comida, o jogo muda?

Você não precisa de um exame ou de um teste de sangue para diagnosticar uma adicção. Se o leitor está se perguntando se está viciado, deve se fazer uma pergunta: você é capaz de parar de usar uma substância ou de ter um determinado comportamento, apesar de saber que isso está te prejudicando de alguma forma? Se, apesar de tentar parar, não consegue, isso é o começo de uma adicção.

Há, claro, escalas e graus de dano. Há pessoas que perdem suas casas (por causa das drogas). Mas não há dúvida de que um grande número de pessoas continua a comer alimentos que sabem que são prejudiciais e não conseguem parar, mesmo que queiram desesperadamente parar.

Sobre seu experimento, você passou semanas comendo quase só ultraprocessados, e semanas sem eles. Como isso transformou a maneira como você se alimenta hoje?

O principal é que ganhei muito peso, meus hormônios ficaram desregulados e a ressonância magnética do meu cérebro mudou (após quatro semanas comendo só ultraprocessados). Uma coisa que aconteceu com minha dieta foi uma experiência de aversão. Eu conversava com Fernanda Rauber (pesquisadora no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo), e ela continuava dizendo: ‘Isso não é comida’. A comida se tornou horrível para mim. Então, eu parei de comer essa comida.

Demorei para perder o peso que ganhei — agora já perdi tudo. O que eu tive que fazer foi retirar cada partícula de alimento ultraprocessado da minha dieta. De certa forma, foi bastante extremo, e sou sortudo por poder fazer isso. Eu realmente não quero comer ultraprocessados, mas também não aconselho ninguém a fazer isso.

Fiquei impressionado com o quão difícil foi para mim, como médico que estuda nutrição, perder seis, sete quilos. Foi realmente difícil. E isso me deu muita empatia com meus pacientes.

“Ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram… não-alimentos”, escreve o britânico Chris van Tulleken, infectologista no Hospital de Doenças Tropicais em Londres e professor associado da University College London (UCL), no livro “Gente ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las” (Editora Elefante), que acaba de ganhar uma versão traduzida para o português.

“Muito disso (que comemos) são restos da indústria do bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível”, explica ele, ao Estadão.

Para escrever o livro, ele se lançou a um desafio mais complicado do que poderia imaginar. Pararia de comer ultraprocessados por um mês. Seria examinado de todas as maneiras possíveis. No mês seguinte, por outro lado, seguiria uma dieta em que 80% das calorias viriam desses produtos.

O teste foi inspirado no trabalho do pesquisador americano Kevin Hall. Uma equipe liderada por ele mostrou, em experimento controlado em laboratório, que passar duas semanas à base de uma dieta com ultraprocessados fez os participantes consumirem, em média, 508 calorias a mais por dia em comparação a uma alimentação sem esses produtos. Nesse curto período, os indivíduos ganharam cerca de 0,9 kg. A pesquisa foi publicada na revista científica Cell Metabolism.

O conceito de ultraprocessados é brasileiro. Ele faz parte da classificação NOVA (leia mais aqui), criada pelo médico Carlos Monteiro e seus colegas do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP. De forma bem simples, esse tipo de produto passou por diversos processos industriais e é formulado com ingredientes pouco familiares, que ninguém usa na cozinha, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos.

Ultraprocessados não são sinônimo de 'junk food', conceito é mais abrangente Foto: anaumenko/Adobe Stock

Desde que foi lançada, nos anos 2000, a classificação NOVA revolucionou a pesquisa em nutrição no mundo, dando apoio a um acúmulo de evidências que relacionam os ultraprocessados à atual pandemia de sobrepeso e obesidade.

Chris duvidava desse enredo e, por isso, decidiu colocar o próprio corpo à prova. Enquanto fazia isso, conversou com pesquisadores independentes — não financiados pela indústria alimentícia — e também com pessoas de dentro dessas empresas. O resultado é um livro provocante e envolvente.

Com a obra, Chris não propõe nenhuma dieta nem aconselha você a rejeitar os ultraprocessados. O que ele deseja é contribuir com informações a respeito desses produtos, explorando como são feitos e com qual objetivo. No fim das contas, espera que as pessoas concluam que também é preciso sentir “nojinho” dos ultraprocessados. “É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar”, afirma.

Confira a entrevista:

Gostaria que você contasse sobre a escolha do título do livro. O ultraprocessamento não está presente apenas nos alimentos?

Uma vez que você entende que o ultraprocessamento não tem a ver (só) com emulsificantes, estabilizantes, umectantes ou embalagens, mas é um conjunto de ferramentas de design e desenvolvimento que cria produtos viciantes, ou quase viciantes, a partir de materiais muito baratos, percebe que a nossa tecnologia é ultraprocessada.

Os aplicativos em nossos celulares são ultraprocessados. Os próprios celulares são ultraprocessados. Nossa música está cada vez mais ultraprocessada. Eu tenho uma filha de sete anos, e ela escuta muita música pop, que é o equivalente musical ao alimento ultraprocessado, já que foi projetada por computadores para ser consumida repetidamente. Nosso mundo está cada vez mais ultraprocessado, porque as corporações que fabricam os produtos são cada vez maiores, mais poderosas e transnacionais, e são guiadas pelos mesmos incentivos financeiros.

A propósito, não estou criticando. Essa é apenas a realidade do mundo. E eu não sei o que podemos fazer a respeito, além de revelar isso e tentar imaginar uma forma de regulação melhor. Mas, sim, o ultraprocessamento vai muito além dos alimentos.

Por que você se preocupa com essa sociedade ultraprocessada?

Porque é completamente insustentável. Há duas razões básicas. A primeira é a emissão de gases de efeito estufa. O segundo maior emissor é o sistema alimentar. E também destruímos a capacidade do nosso planeta de absorver alguns desses gases ao derrubar florestas tropicais para cultivar soja, palma e criar gado. Quero dizer, também há a questão automotiva, da aviação e nossa dependência geral do carvão. Mas muito do carbono que queimamos vem do cultivo do que comemos.

Sim, estou extremamente preocupado do ponto de vista planetário e me interesso por questões de justiça, igualdade e direitos para todos. Eu pago impostos, mas as empresas não pagam impostos suficientes. Eu estou arcando com os custos de saúde, enquanto as empresas lucram. Elas ficam com todos os benefícios, e você e eu assumimos todo o risco.

Você escreveu que ‘ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram não-alimentos’. Poderia explicar um pouco mais?

A comida humana foi inventada principalmente por mulheres, em cavernas, depois, em cabanas e, por fim, em cozinhas domésticas. Foram principalmente as mulheres que descobriram como extrair energia e nutrientes de milhares de plantas e animais diferentes. Podemos nos alimentar talvez de 10 mil espécies diferentes, e o propósito dessa comida era nos nutrir.

O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro. Quais são as definições comuns de ‘comida’ hoje? É apenas algo para transformar nossa saúde em dinheiro. Muito disso são restos da indústria de bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível.

O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

Você escreveu que os ultraprocessados talvez sejam o tipo de alimento que menos inspecionamos antes de levar à boca. Lembro que, quando tinha viagem da escola na infância, a orientação da minha mãe era que eu só comesse coisas que pudesse desembalar. O que criou esse senso de segurança em relação aos ultraprocessados?

Primeiro de tudo, sua mãe é uma mulher inteligente. Historicamente, os humanos estavam certos em se preocupar se a comida era microbiologicamente segura, se não iria te envenenar porque estava cheia de bactérias, e a indústria alimentícia tem dito de forma muito hábil: ‘Nossa comida não vai te dar diarreia ou te deixar agudamente doente’.

Eles exploram nossa capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, é fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar.

Temos uma capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

A grande questão é: como elas dominaram o sistema alimentar? As empresas alimentícias vencem a comida tradicional em termos de conveniência, já que você pode simplesmente colocá-la no micro-ondas; e também no preço, porque, para produzi-la, partem da monocultura da soja e ingredientes que custam centavos por tonelada; e eles vencem no marketing, pois são capazes de cobrir tudo com alegações de saúde e slogans.

Mas a principal razão pela qual eles dominam o sistema alimentar é que as grandes empresas alimentícias pagaram cientistas muito habilidosos para fazer duas coisas. Primeiro de tudo, desenvolver a comida em si. Sabemos que, na Unilever e na Pepsi, cientistas foram pagos para testar a comida colocando pessoas em scanners de ressonância magnética. A ideia era avaliar como as partes do cérebro relacionadas à recompensa e à adicção funcionavam. Eles usam cientistas brilhantes para criar comida que não é necessariamente a mais deliciosa, mas é muito difícil de parar de comer. A segunda coisa que esses cientistas pagos pela indústria fazem é defender essa comida: ‘É a única maneira de alimentar o mundo.’ ‘Esta comida é segura, é inofensiva.’

Outra comparação realmente importante é com a indústria do tabaco. Como eles nos fizeram fumar e como impediram que percebêssemos (o quão mal fazia)? Fizeram o mesmo que a indústria alimentícia faz. No fundo, a verdade é que eles usaram todas as ferramentas à disposição e gastaram dinheiro. O orçamento de marketing voltado para o consumidor da Nestlé, nos últimos anos, é de cerca de US$ 10 bilhões por ano. Eles têm mais dinheiro do que a maioria dos governos.

A indústria alimentícia tem apostado em produtos com apelos de saúde, como ‘mais proteína’ e ‘sem açúcar’, mas que não deixam de ser ultraprocessados – e contam com a ajuda de influencers fitness. O que acha desse tipo de estratégia?

Criar confusão é útil. No Reino Unido, e cada vez mais no Brasil, estamos todos acostumados a consumir certos produtos. Meio que gostamos deles ou estamos viciados neles. Para sermos convencidos a parar de usá-los, precisamos de evidências realmente boas e de pessoas em quem confiamos dizendo que fazem mal.

A indústria é muito boa em criar confusão. No Reino Unido, eles pagam o Science Media Centre, que é uma espécie de central de imprensa que fornece todas as citações sobre alimentos para nossa imprensa. Então, um artigo é publicado sobre alimentos ultraprocessados, e o Science Media Centre faz com que cientistas deem declarações sobre isso. A maioria dos cientistas que dão declarações é paga pela indústria alimentícia.

E o próprio Science Media é financiado pela Nestlé, Procter & Gamble e muitas outras empresas alimentícias. O tempo todo, esses cientistas dizem: ‘Alguns ultraprocessados são saudáveis.’ ‘Ultraprocessados é uma definição muito ampla.’ ‘Essa evidência é observacional, é populacional, não é uma prova real, o verdadeiro problema é sal e açúcar.’ Lendo as reportagens, não se sabe que a pessoa que está dizendo isso é financiada pela indústria e fica confuso. E quando você está confuso, a coisa mais fácil a fazer é nada.

Outra coisa é que a indústria, cada vez mais, tem dito que, ao criticar alimentos ultraprocessados, você estigmatiza as pessoas pobres que têm que comê-los e também os indivíduos que vivem com obesidade, e que você vai criar transtornos alimentares. Mas acho que nós, meus colegas e eu, temos sido razoavelmente bons até agora em dizer: ‘Não, o problema são vocês (a indústria).’ O problema é vocês forçarem as pessoas pobres a comerem essa comida. O problema para as pessoas que vivem com obesidade é que você disse a elas que essa comida é saudável. E quando se trata de transtornos alimentares, temos evidências crescentes de que muitos deles são impulsionados por alimentos estranhos que bagunçam os níveis hormonais e o apetite.

A indústria tem mais dinheiro do que a ciência. Eles pagam influenciadores, médicos, cientistas, formuladores de políticas no Reino Unido. Dos membros do comitê consultivo científico sobre nutrição no governo, 65% têm relacionamentos financeiros com empresas como Nestlé e Coca-Cola.

Falando sobre obesidade, você disse que ‘somos muito menos responsáveis pelo nosso peso do que um esquiador é por quebrar a perna’. Poderia falar mais sobre isso?

Todos que vivem com excesso de peso e obesidade — eu mesmo já vivi com excesso de peso, e meu irmão com obesidade — sente como se fosse culpa deles, como se tivessem a escolha de comer os alimentos não saudáveis, e a realidade é que não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram. É como dizer que as pessoas escolhem fumar. Pessoas na indústria alimentícia me disseram, muitos deles, que fazem esses alimentos para serem viciantes. Então, é como dizer aos fumantes: ‘A razão pela qual você fuma é porque é fraco demais para largar o cigarro’. Força de vontade não tem nada a ver com isso.

Não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

Sabemos que todos no Brasil e na América começaram a ganhar peso ao mesmo tempo. Nos EUA, foi em meados da década de 1970. Negros, brancos, hispânicos, mulheres idosas, homens jovens, todos ganharam peso juntos. Você não pode me dizer que todas essas pessoas perderam a responsabilidade moral ao mesmo tempo em 1975. O que mudou foi o ambiente alimentar.

A mensagem principal do meu livro para esse leitor que está vivendo com obesidade ou sobrepeso é que não é culpa deles. Você está comendo alimentos que são projetados pelas pessoas mais inteligentes do planeta, e comercializados por pessoas igualmente inteligentes. Você precisa parar de se culpar e direcionar a vergonha e a raiva contra si mesmo para os médicos que recebem dinheiro das empresas, as próprias empresas e os governos que falharam em regular essas empresas.

Na sua avaliação, então, temos evidências suficientes para dizer que a pandemia de obesidade e sobrepeso é causada pelos ultraprocessados?

A evidência é muito clara de que alimentos ultraprocessados causam o que chamamos de desfechos negativos em saúde. Portanto, causam ganho de peso e obesidade, câncer, morte prematura e uma série de outras coisas. Agora, como temos certeza de que são os alimentos ultraprocessados? Há duas razões.

A indústria alimentícia quer saber: é o ultraprocessamento ou são apenas a gordura, o sal e o açúcar? A resposta a essa pergunta não é muito importante, embora possamos respondê-la. O que todos concordam é que, quando se trata de desfechos negativos em saúde, o problema são produtos industriais pré-preparados ricos em gordura, sal, açúcar e calorias. Um artigo que acabei de escrever (que ainda não foi publicado) mostra que 99% dos alimentos ultraprocessados têm altos níveis disso. Todos os alimentos ultraprocessados têm altos níveis de gordura, sal, açúcar e calorias. Ninguém acredita que isso seja um problema de cozinhar em casa.

Quando você analisa as evidências epidemiológicas, como esses grandes estudos populacionais, pode usar um conjunto de critérios chamado Critérios de Bradford Hill (foram nove os critérios desenvolvidos por esse epidemiologista e estatístico e, quanto mais deles forem preenchidos, maior a chance da associação ser de ‘causa e efeito’). A pergunta interessante é: são os alimentos ultraprocessados ou é apenas a pobreza, o álcool e os cigarros que estão causando todos esses problemas? Porque as pessoas que consomem muitos alimentos ultraprocessados, certamente no Reino Unido, geralmente têm rendas mais baixas e apresentam essas outras vulnerabilidades. Você verifica se a associação é forte, se é consistente em diferentes populações, se ocorre na ordem de exposição — ou seja, você deve ter certeza de que não é que as pessoas ganham peso e depois começam a comer alimentos ultraprocessados — e se há uma curva de resposta à dose. Isso foi importante para (nossa compreensão sobre os danos) os cigarros, e é o que vemos também com os alimentos ultraprocessados.

E temos uma montanha de evidências experimentais sobre os aditivos, sobre as propriedades dos alimentos, sobre os níveis de sal, gordura, açúcar e calorias. E, a última coisa, é coerente com todas as outras evidências. Temos evidências muito boas de que comer dietas minimamente processadas, com peixe, frutas, vegetais, nozes e leguminosas, nos faz bem.

Então, se alguém me diz que não acredita na evidência sobre alimentos ultraprocessados, a pergunta é: ‘Como você explica isso?’ Você está sugerindo que há algum vírus estranho? Você está propondo que as pessoas estão cozinhando alimentos piores em casa? Você precisa apresentar outra explicação que seja mais plausível.

Agora, as únicas coisas que quero destacar são duas notas de cautela. Nem todos os alimentos ultraprocessados são igualmente prejudiciais. Portanto, comer um doce completamente sintético é quase certamente pior para você do que comer um pão integral, que apenas tem um emulsificante.

A outra coisa a dizer é que há muitos produtos que não são ultraprocessados e não são saudáveis, especialmente no Reino Unido. Porque as empresas perceberam que o público entendeu o perigo dos ultraprocessados e, portanto, estão retirando os aditivos. Coloquei isso no livro. Tive que ligar para Carlos (Monteiro) e a equipe dele, e mostrar alguns desses produtos e perguntar se eram ultraprocessados. ‘Essa lasanha que não tem aditivos é um ultraprocessado?’ Tecnicamente não é, mas funciona como um e ainda será ruim para você.

Na teoria, não podemos ser viciados em comida, você escreve isso no livro, inclusive. Mas, se não considerarmos que os ultraprocessados são comida, o jogo muda?

Você não precisa de um exame ou de um teste de sangue para diagnosticar uma adicção. Se o leitor está se perguntando se está viciado, deve se fazer uma pergunta: você é capaz de parar de usar uma substância ou de ter um determinado comportamento, apesar de saber que isso está te prejudicando de alguma forma? Se, apesar de tentar parar, não consegue, isso é o começo de uma adicção.

Há, claro, escalas e graus de dano. Há pessoas que perdem suas casas (por causa das drogas). Mas não há dúvida de que um grande número de pessoas continua a comer alimentos que sabem que são prejudiciais e não conseguem parar, mesmo que queiram desesperadamente parar.

Sobre seu experimento, você passou semanas comendo quase só ultraprocessados, e semanas sem eles. Como isso transformou a maneira como você se alimenta hoje?

O principal é que ganhei muito peso, meus hormônios ficaram desregulados e a ressonância magnética do meu cérebro mudou (após quatro semanas comendo só ultraprocessados). Uma coisa que aconteceu com minha dieta foi uma experiência de aversão. Eu conversava com Fernanda Rauber (pesquisadora no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo), e ela continuava dizendo: ‘Isso não é comida’. A comida se tornou horrível para mim. Então, eu parei de comer essa comida.

Demorei para perder o peso que ganhei — agora já perdi tudo. O que eu tive que fazer foi retirar cada partícula de alimento ultraprocessado da minha dieta. De certa forma, foi bastante extremo, e sou sortudo por poder fazer isso. Eu realmente não quero comer ultraprocessados, mas também não aconselho ninguém a fazer isso.

Fiquei impressionado com o quão difícil foi para mim, como médico que estuda nutrição, perder seis, sete quilos. Foi realmente difícil. E isso me deu muita empatia com meus pacientes.

“Ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram… não-alimentos”, escreve o britânico Chris van Tulleken, infectologista no Hospital de Doenças Tropicais em Londres e professor associado da University College London (UCL), no livro “Gente ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las” (Editora Elefante), que acaba de ganhar uma versão traduzida para o português.

“Muito disso (que comemos) são restos da indústria do bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível”, explica ele, ao Estadão.

Para escrever o livro, ele se lançou a um desafio mais complicado do que poderia imaginar. Pararia de comer ultraprocessados por um mês. Seria examinado de todas as maneiras possíveis. No mês seguinte, por outro lado, seguiria uma dieta em que 80% das calorias viriam desses produtos.

O teste foi inspirado no trabalho do pesquisador americano Kevin Hall. Uma equipe liderada por ele mostrou, em experimento controlado em laboratório, que passar duas semanas à base de uma dieta com ultraprocessados fez os participantes consumirem, em média, 508 calorias a mais por dia em comparação a uma alimentação sem esses produtos. Nesse curto período, os indivíduos ganharam cerca de 0,9 kg. A pesquisa foi publicada na revista científica Cell Metabolism.

O conceito de ultraprocessados é brasileiro. Ele faz parte da classificação NOVA (leia mais aqui), criada pelo médico Carlos Monteiro e seus colegas do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP. De forma bem simples, esse tipo de produto passou por diversos processos industriais e é formulado com ingredientes pouco familiares, que ninguém usa na cozinha, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos.

Ultraprocessados não são sinônimo de 'junk food', conceito é mais abrangente Foto: anaumenko/Adobe Stock

Desde que foi lançada, nos anos 2000, a classificação NOVA revolucionou a pesquisa em nutrição no mundo, dando apoio a um acúmulo de evidências que relacionam os ultraprocessados à atual pandemia de sobrepeso e obesidade.

Chris duvidava desse enredo e, por isso, decidiu colocar o próprio corpo à prova. Enquanto fazia isso, conversou com pesquisadores independentes — não financiados pela indústria alimentícia — e também com pessoas de dentro dessas empresas. O resultado é um livro provocante e envolvente.

Com a obra, Chris não propõe nenhuma dieta nem aconselha você a rejeitar os ultraprocessados. O que ele deseja é contribuir com informações a respeito desses produtos, explorando como são feitos e com qual objetivo. No fim das contas, espera que as pessoas concluam que também é preciso sentir “nojinho” dos ultraprocessados. “É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar”, afirma.

Confira a entrevista:

Gostaria que você contasse sobre a escolha do título do livro. O ultraprocessamento não está presente apenas nos alimentos?

Uma vez que você entende que o ultraprocessamento não tem a ver (só) com emulsificantes, estabilizantes, umectantes ou embalagens, mas é um conjunto de ferramentas de design e desenvolvimento que cria produtos viciantes, ou quase viciantes, a partir de materiais muito baratos, percebe que a nossa tecnologia é ultraprocessada.

Os aplicativos em nossos celulares são ultraprocessados. Os próprios celulares são ultraprocessados. Nossa música está cada vez mais ultraprocessada. Eu tenho uma filha de sete anos, e ela escuta muita música pop, que é o equivalente musical ao alimento ultraprocessado, já que foi projetada por computadores para ser consumida repetidamente. Nosso mundo está cada vez mais ultraprocessado, porque as corporações que fabricam os produtos são cada vez maiores, mais poderosas e transnacionais, e são guiadas pelos mesmos incentivos financeiros.

A propósito, não estou criticando. Essa é apenas a realidade do mundo. E eu não sei o que podemos fazer a respeito, além de revelar isso e tentar imaginar uma forma de regulação melhor. Mas, sim, o ultraprocessamento vai muito além dos alimentos.

Por que você se preocupa com essa sociedade ultraprocessada?

Porque é completamente insustentável. Há duas razões básicas. A primeira é a emissão de gases de efeito estufa. O segundo maior emissor é o sistema alimentar. E também destruímos a capacidade do nosso planeta de absorver alguns desses gases ao derrubar florestas tropicais para cultivar soja, palma e criar gado. Quero dizer, também há a questão automotiva, da aviação e nossa dependência geral do carvão. Mas muito do carbono que queimamos vem do cultivo do que comemos.

Sim, estou extremamente preocupado do ponto de vista planetário e me interesso por questões de justiça, igualdade e direitos para todos. Eu pago impostos, mas as empresas não pagam impostos suficientes. Eu estou arcando com os custos de saúde, enquanto as empresas lucram. Elas ficam com todos os benefícios, e você e eu assumimos todo o risco.

Você escreveu que ‘ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram não-alimentos’. Poderia explicar um pouco mais?

A comida humana foi inventada principalmente por mulheres, em cavernas, depois, em cabanas e, por fim, em cozinhas domésticas. Foram principalmente as mulheres que descobriram como extrair energia e nutrientes de milhares de plantas e animais diferentes. Podemos nos alimentar talvez de 10 mil espécies diferentes, e o propósito dessa comida era nos nutrir.

O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro. Quais são as definições comuns de ‘comida’ hoje? É apenas algo para transformar nossa saúde em dinheiro. Muito disso são restos da indústria de bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível.

O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

Você escreveu que os ultraprocessados talvez sejam o tipo de alimento que menos inspecionamos antes de levar à boca. Lembro que, quando tinha viagem da escola na infância, a orientação da minha mãe era que eu só comesse coisas que pudesse desembalar. O que criou esse senso de segurança em relação aos ultraprocessados?

Primeiro de tudo, sua mãe é uma mulher inteligente. Historicamente, os humanos estavam certos em se preocupar se a comida era microbiologicamente segura, se não iria te envenenar porque estava cheia de bactérias, e a indústria alimentícia tem dito de forma muito hábil: ‘Nossa comida não vai te dar diarreia ou te deixar agudamente doente’.

Eles exploram nossa capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, é fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar.

Temos uma capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

A grande questão é: como elas dominaram o sistema alimentar? As empresas alimentícias vencem a comida tradicional em termos de conveniência, já que você pode simplesmente colocá-la no micro-ondas; e também no preço, porque, para produzi-la, partem da monocultura da soja e ingredientes que custam centavos por tonelada; e eles vencem no marketing, pois são capazes de cobrir tudo com alegações de saúde e slogans.

Mas a principal razão pela qual eles dominam o sistema alimentar é que as grandes empresas alimentícias pagaram cientistas muito habilidosos para fazer duas coisas. Primeiro de tudo, desenvolver a comida em si. Sabemos que, na Unilever e na Pepsi, cientistas foram pagos para testar a comida colocando pessoas em scanners de ressonância magnética. A ideia era avaliar como as partes do cérebro relacionadas à recompensa e à adicção funcionavam. Eles usam cientistas brilhantes para criar comida que não é necessariamente a mais deliciosa, mas é muito difícil de parar de comer. A segunda coisa que esses cientistas pagos pela indústria fazem é defender essa comida: ‘É a única maneira de alimentar o mundo.’ ‘Esta comida é segura, é inofensiva.’

Outra comparação realmente importante é com a indústria do tabaco. Como eles nos fizeram fumar e como impediram que percebêssemos (o quão mal fazia)? Fizeram o mesmo que a indústria alimentícia faz. No fundo, a verdade é que eles usaram todas as ferramentas à disposição e gastaram dinheiro. O orçamento de marketing voltado para o consumidor da Nestlé, nos últimos anos, é de cerca de US$ 10 bilhões por ano. Eles têm mais dinheiro do que a maioria dos governos.

A indústria alimentícia tem apostado em produtos com apelos de saúde, como ‘mais proteína’ e ‘sem açúcar’, mas que não deixam de ser ultraprocessados – e contam com a ajuda de influencers fitness. O que acha desse tipo de estratégia?

Criar confusão é útil. No Reino Unido, e cada vez mais no Brasil, estamos todos acostumados a consumir certos produtos. Meio que gostamos deles ou estamos viciados neles. Para sermos convencidos a parar de usá-los, precisamos de evidências realmente boas e de pessoas em quem confiamos dizendo que fazem mal.

A indústria é muito boa em criar confusão. No Reino Unido, eles pagam o Science Media Centre, que é uma espécie de central de imprensa que fornece todas as citações sobre alimentos para nossa imprensa. Então, um artigo é publicado sobre alimentos ultraprocessados, e o Science Media Centre faz com que cientistas deem declarações sobre isso. A maioria dos cientistas que dão declarações é paga pela indústria alimentícia.

E o próprio Science Media é financiado pela Nestlé, Procter & Gamble e muitas outras empresas alimentícias. O tempo todo, esses cientistas dizem: ‘Alguns ultraprocessados são saudáveis.’ ‘Ultraprocessados é uma definição muito ampla.’ ‘Essa evidência é observacional, é populacional, não é uma prova real, o verdadeiro problema é sal e açúcar.’ Lendo as reportagens, não se sabe que a pessoa que está dizendo isso é financiada pela indústria e fica confuso. E quando você está confuso, a coisa mais fácil a fazer é nada.

Outra coisa é que a indústria, cada vez mais, tem dito que, ao criticar alimentos ultraprocessados, você estigmatiza as pessoas pobres que têm que comê-los e também os indivíduos que vivem com obesidade, e que você vai criar transtornos alimentares. Mas acho que nós, meus colegas e eu, temos sido razoavelmente bons até agora em dizer: ‘Não, o problema são vocês (a indústria).’ O problema é vocês forçarem as pessoas pobres a comerem essa comida. O problema para as pessoas que vivem com obesidade é que você disse a elas que essa comida é saudável. E quando se trata de transtornos alimentares, temos evidências crescentes de que muitos deles são impulsionados por alimentos estranhos que bagunçam os níveis hormonais e o apetite.

A indústria tem mais dinheiro do que a ciência. Eles pagam influenciadores, médicos, cientistas, formuladores de políticas no Reino Unido. Dos membros do comitê consultivo científico sobre nutrição no governo, 65% têm relacionamentos financeiros com empresas como Nestlé e Coca-Cola.

Falando sobre obesidade, você disse que ‘somos muito menos responsáveis pelo nosso peso do que um esquiador é por quebrar a perna’. Poderia falar mais sobre isso?

Todos que vivem com excesso de peso e obesidade — eu mesmo já vivi com excesso de peso, e meu irmão com obesidade — sente como se fosse culpa deles, como se tivessem a escolha de comer os alimentos não saudáveis, e a realidade é que não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram. É como dizer que as pessoas escolhem fumar. Pessoas na indústria alimentícia me disseram, muitos deles, que fazem esses alimentos para serem viciantes. Então, é como dizer aos fumantes: ‘A razão pela qual você fuma é porque é fraco demais para largar o cigarro’. Força de vontade não tem nada a ver com isso.

Não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

Sabemos que todos no Brasil e na América começaram a ganhar peso ao mesmo tempo. Nos EUA, foi em meados da década de 1970. Negros, brancos, hispânicos, mulheres idosas, homens jovens, todos ganharam peso juntos. Você não pode me dizer que todas essas pessoas perderam a responsabilidade moral ao mesmo tempo em 1975. O que mudou foi o ambiente alimentar.

A mensagem principal do meu livro para esse leitor que está vivendo com obesidade ou sobrepeso é que não é culpa deles. Você está comendo alimentos que são projetados pelas pessoas mais inteligentes do planeta, e comercializados por pessoas igualmente inteligentes. Você precisa parar de se culpar e direcionar a vergonha e a raiva contra si mesmo para os médicos que recebem dinheiro das empresas, as próprias empresas e os governos que falharam em regular essas empresas.

Na sua avaliação, então, temos evidências suficientes para dizer que a pandemia de obesidade e sobrepeso é causada pelos ultraprocessados?

A evidência é muito clara de que alimentos ultraprocessados causam o que chamamos de desfechos negativos em saúde. Portanto, causam ganho de peso e obesidade, câncer, morte prematura e uma série de outras coisas. Agora, como temos certeza de que são os alimentos ultraprocessados? Há duas razões.

A indústria alimentícia quer saber: é o ultraprocessamento ou são apenas a gordura, o sal e o açúcar? A resposta a essa pergunta não é muito importante, embora possamos respondê-la. O que todos concordam é que, quando se trata de desfechos negativos em saúde, o problema são produtos industriais pré-preparados ricos em gordura, sal, açúcar e calorias. Um artigo que acabei de escrever (que ainda não foi publicado) mostra que 99% dos alimentos ultraprocessados têm altos níveis disso. Todos os alimentos ultraprocessados têm altos níveis de gordura, sal, açúcar e calorias. Ninguém acredita que isso seja um problema de cozinhar em casa.

Quando você analisa as evidências epidemiológicas, como esses grandes estudos populacionais, pode usar um conjunto de critérios chamado Critérios de Bradford Hill (foram nove os critérios desenvolvidos por esse epidemiologista e estatístico e, quanto mais deles forem preenchidos, maior a chance da associação ser de ‘causa e efeito’). A pergunta interessante é: são os alimentos ultraprocessados ou é apenas a pobreza, o álcool e os cigarros que estão causando todos esses problemas? Porque as pessoas que consomem muitos alimentos ultraprocessados, certamente no Reino Unido, geralmente têm rendas mais baixas e apresentam essas outras vulnerabilidades. Você verifica se a associação é forte, se é consistente em diferentes populações, se ocorre na ordem de exposição — ou seja, você deve ter certeza de que não é que as pessoas ganham peso e depois começam a comer alimentos ultraprocessados — e se há uma curva de resposta à dose. Isso foi importante para (nossa compreensão sobre os danos) os cigarros, e é o que vemos também com os alimentos ultraprocessados.

E temos uma montanha de evidências experimentais sobre os aditivos, sobre as propriedades dos alimentos, sobre os níveis de sal, gordura, açúcar e calorias. E, a última coisa, é coerente com todas as outras evidências. Temos evidências muito boas de que comer dietas minimamente processadas, com peixe, frutas, vegetais, nozes e leguminosas, nos faz bem.

Então, se alguém me diz que não acredita na evidência sobre alimentos ultraprocessados, a pergunta é: ‘Como você explica isso?’ Você está sugerindo que há algum vírus estranho? Você está propondo que as pessoas estão cozinhando alimentos piores em casa? Você precisa apresentar outra explicação que seja mais plausível.

Agora, as únicas coisas que quero destacar são duas notas de cautela. Nem todos os alimentos ultraprocessados são igualmente prejudiciais. Portanto, comer um doce completamente sintético é quase certamente pior para você do que comer um pão integral, que apenas tem um emulsificante.

A outra coisa a dizer é que há muitos produtos que não são ultraprocessados e não são saudáveis, especialmente no Reino Unido. Porque as empresas perceberam que o público entendeu o perigo dos ultraprocessados e, portanto, estão retirando os aditivos. Coloquei isso no livro. Tive que ligar para Carlos (Monteiro) e a equipe dele, e mostrar alguns desses produtos e perguntar se eram ultraprocessados. ‘Essa lasanha que não tem aditivos é um ultraprocessado?’ Tecnicamente não é, mas funciona como um e ainda será ruim para você.

Na teoria, não podemos ser viciados em comida, você escreve isso no livro, inclusive. Mas, se não considerarmos que os ultraprocessados são comida, o jogo muda?

Você não precisa de um exame ou de um teste de sangue para diagnosticar uma adicção. Se o leitor está se perguntando se está viciado, deve se fazer uma pergunta: você é capaz de parar de usar uma substância ou de ter um determinado comportamento, apesar de saber que isso está te prejudicando de alguma forma? Se, apesar de tentar parar, não consegue, isso é o começo de uma adicção.

Há, claro, escalas e graus de dano. Há pessoas que perdem suas casas (por causa das drogas). Mas não há dúvida de que um grande número de pessoas continua a comer alimentos que sabem que são prejudiciais e não conseguem parar, mesmo que queiram desesperadamente parar.

Sobre seu experimento, você passou semanas comendo quase só ultraprocessados, e semanas sem eles. Como isso transformou a maneira como você se alimenta hoje?

O principal é que ganhei muito peso, meus hormônios ficaram desregulados e a ressonância magnética do meu cérebro mudou (após quatro semanas comendo só ultraprocessados). Uma coisa que aconteceu com minha dieta foi uma experiência de aversão. Eu conversava com Fernanda Rauber (pesquisadora no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo), e ela continuava dizendo: ‘Isso não é comida’. A comida se tornou horrível para mim. Então, eu parei de comer essa comida.

Demorei para perder o peso que ganhei — agora já perdi tudo. O que eu tive que fazer foi retirar cada partícula de alimento ultraprocessado da minha dieta. De certa forma, foi bastante extremo, e sou sortudo por poder fazer isso. Eu realmente não quero comer ultraprocessados, mas também não aconselho ninguém a fazer isso.

Fiquei impressionado com o quão difícil foi para mim, como médico que estuda nutrição, perder seis, sete quilos. Foi realmente difícil. E isso me deu muita empatia com meus pacientes.

“Ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram… não-alimentos”, escreve o britânico Chris van Tulleken, infectologista no Hospital de Doenças Tropicais em Londres e professor associado da University College London (UCL), no livro “Gente ultraprocessada: por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-las” (Editora Elefante), que acaba de ganhar uma versão traduzida para o português.

“Muito disso (que comemos) são restos da indústria do bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível”, explica ele, ao Estadão.

Para escrever o livro, ele se lançou a um desafio mais complicado do que poderia imaginar. Pararia de comer ultraprocessados por um mês. Seria examinado de todas as maneiras possíveis. No mês seguinte, por outro lado, seguiria uma dieta em que 80% das calorias viriam desses produtos.

O teste foi inspirado no trabalho do pesquisador americano Kevin Hall. Uma equipe liderada por ele mostrou, em experimento controlado em laboratório, que passar duas semanas à base de uma dieta com ultraprocessados fez os participantes consumirem, em média, 508 calorias a mais por dia em comparação a uma alimentação sem esses produtos. Nesse curto período, os indivíduos ganharam cerca de 0,9 kg. A pesquisa foi publicada na revista científica Cell Metabolism.

O conceito de ultraprocessados é brasileiro. Ele faz parte da classificação NOVA (leia mais aqui), criada pelo médico Carlos Monteiro e seus colegas do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP. De forma bem simples, esse tipo de produto passou por diversos processos industriais e é formulado com ingredientes pouco familiares, que ninguém usa na cozinha, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos.

Ultraprocessados não são sinônimo de 'junk food', conceito é mais abrangente Foto: anaumenko/Adobe Stock

Desde que foi lançada, nos anos 2000, a classificação NOVA revolucionou a pesquisa em nutrição no mundo, dando apoio a um acúmulo de evidências que relacionam os ultraprocessados à atual pandemia de sobrepeso e obesidade.

Chris duvidava desse enredo e, por isso, decidiu colocar o próprio corpo à prova. Enquanto fazia isso, conversou com pesquisadores independentes — não financiados pela indústria alimentícia — e também com pessoas de dentro dessas empresas. O resultado é um livro provocante e envolvente.

Com a obra, Chris não propõe nenhuma dieta nem aconselha você a rejeitar os ultraprocessados. O que ele deseja é contribuir com informações a respeito desses produtos, explorando como são feitos e com qual objetivo. No fim das contas, espera que as pessoas concluam que também é preciso sentir “nojinho” dos ultraprocessados. “É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar”, afirma.

Confira a entrevista:

Gostaria que você contasse sobre a escolha do título do livro. O ultraprocessamento não está presente apenas nos alimentos?

Uma vez que você entende que o ultraprocessamento não tem a ver (só) com emulsificantes, estabilizantes, umectantes ou embalagens, mas é um conjunto de ferramentas de design e desenvolvimento que cria produtos viciantes, ou quase viciantes, a partir de materiais muito baratos, percebe que a nossa tecnologia é ultraprocessada.

Os aplicativos em nossos celulares são ultraprocessados. Os próprios celulares são ultraprocessados. Nossa música está cada vez mais ultraprocessada. Eu tenho uma filha de sete anos, e ela escuta muita música pop, que é o equivalente musical ao alimento ultraprocessado, já que foi projetada por computadores para ser consumida repetidamente. Nosso mundo está cada vez mais ultraprocessado, porque as corporações que fabricam os produtos são cada vez maiores, mais poderosas e transnacionais, e são guiadas pelos mesmos incentivos financeiros.

A propósito, não estou criticando. Essa é apenas a realidade do mundo. E eu não sei o que podemos fazer a respeito, além de revelar isso e tentar imaginar uma forma de regulação melhor. Mas, sim, o ultraprocessamento vai muito além dos alimentos.

Por que você se preocupa com essa sociedade ultraprocessada?

Porque é completamente insustentável. Há duas razões básicas. A primeira é a emissão de gases de efeito estufa. O segundo maior emissor é o sistema alimentar. E também destruímos a capacidade do nosso planeta de absorver alguns desses gases ao derrubar florestas tropicais para cultivar soja, palma e criar gado. Quero dizer, também há a questão automotiva, da aviação e nossa dependência geral do carvão. Mas muito do carbono que queimamos vem do cultivo do que comemos.

Sim, estou extremamente preocupado do ponto de vista planetário e me interesso por questões de justiça, igualdade e direitos para todos. Eu pago impostos, mas as empresas não pagam impostos suficientes. Eu estou arcando com os custos de saúde, enquanto as empresas lucram. Elas ficam com todos os benefícios, e você e eu assumimos todo o risco.

Você escreveu que ‘ao longo dos últimos 150 anos, os alimentos se tornaram não-alimentos’. Poderia explicar um pouco mais?

A comida humana foi inventada principalmente por mulheres, em cavernas, depois, em cabanas e, por fim, em cozinhas domésticas. Foram principalmente as mulheres que descobriram como extrair energia e nutrientes de milhares de plantas e animais diferentes. Podemos nos alimentar talvez de 10 mil espécies diferentes, e o propósito dessa comida era nos nutrir.

O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro. Quais são as definições comuns de ‘comida’ hoje? É apenas algo para transformar nossa saúde em dinheiro. Muito disso são restos da indústria de bioetanol e do milho. Comemos muitas coisas que eram apenas alimento industrial para animais, que são reaproveitadas para uso humano. Isso simplesmente não atende à definição de comida. Não é projetado para nos nutrir, mas para tirar nosso dinheiro e nos fazer comer o máximo possível.

O propósito de toda comida deveria ser a nutrição. Nutrir as pessoas física, espiritual, emocional, cultural, social e politicamente. Historicamente, a comida não tinha a ver com crescimento financeiro

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

Você escreveu que os ultraprocessados talvez sejam o tipo de alimento que menos inspecionamos antes de levar à boca. Lembro que, quando tinha viagem da escola na infância, a orientação da minha mãe era que eu só comesse coisas que pudesse desembalar. O que criou esse senso de segurança em relação aos ultraprocessados?

Primeiro de tudo, sua mãe é uma mulher inteligente. Historicamente, os humanos estavam certos em se preocupar se a comida era microbiologicamente segura, se não iria te envenenar porque estava cheia de bactérias, e a indústria alimentícia tem dito de forma muito hábil: ‘Nossa comida não vai te dar diarreia ou te deixar agudamente doente’.

Eles exploram nossa capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, é fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar.

Temos uma capacidade inata de ficar um pouco enojados com a comida. E é isso que estou tentando reverter com o livro, fazer o leitor sentir nojo pela comida ultraprocessada. É a comida mais nojenta de todas, se você parar para pensar

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

A grande questão é: como elas dominaram o sistema alimentar? As empresas alimentícias vencem a comida tradicional em termos de conveniência, já que você pode simplesmente colocá-la no micro-ondas; e também no preço, porque, para produzi-la, partem da monocultura da soja e ingredientes que custam centavos por tonelada; e eles vencem no marketing, pois são capazes de cobrir tudo com alegações de saúde e slogans.

Mas a principal razão pela qual eles dominam o sistema alimentar é que as grandes empresas alimentícias pagaram cientistas muito habilidosos para fazer duas coisas. Primeiro de tudo, desenvolver a comida em si. Sabemos que, na Unilever e na Pepsi, cientistas foram pagos para testar a comida colocando pessoas em scanners de ressonância magnética. A ideia era avaliar como as partes do cérebro relacionadas à recompensa e à adicção funcionavam. Eles usam cientistas brilhantes para criar comida que não é necessariamente a mais deliciosa, mas é muito difícil de parar de comer. A segunda coisa que esses cientistas pagos pela indústria fazem é defender essa comida: ‘É a única maneira de alimentar o mundo.’ ‘Esta comida é segura, é inofensiva.’

Outra comparação realmente importante é com a indústria do tabaco. Como eles nos fizeram fumar e como impediram que percebêssemos (o quão mal fazia)? Fizeram o mesmo que a indústria alimentícia faz. No fundo, a verdade é que eles usaram todas as ferramentas à disposição e gastaram dinheiro. O orçamento de marketing voltado para o consumidor da Nestlé, nos últimos anos, é de cerca de US$ 10 bilhões por ano. Eles têm mais dinheiro do que a maioria dos governos.

A indústria alimentícia tem apostado em produtos com apelos de saúde, como ‘mais proteína’ e ‘sem açúcar’, mas que não deixam de ser ultraprocessados – e contam com a ajuda de influencers fitness. O que acha desse tipo de estratégia?

Criar confusão é útil. No Reino Unido, e cada vez mais no Brasil, estamos todos acostumados a consumir certos produtos. Meio que gostamos deles ou estamos viciados neles. Para sermos convencidos a parar de usá-los, precisamos de evidências realmente boas e de pessoas em quem confiamos dizendo que fazem mal.

A indústria é muito boa em criar confusão. No Reino Unido, eles pagam o Science Media Centre, que é uma espécie de central de imprensa que fornece todas as citações sobre alimentos para nossa imprensa. Então, um artigo é publicado sobre alimentos ultraprocessados, e o Science Media Centre faz com que cientistas deem declarações sobre isso. A maioria dos cientistas que dão declarações é paga pela indústria alimentícia.

E o próprio Science Media é financiado pela Nestlé, Procter & Gamble e muitas outras empresas alimentícias. O tempo todo, esses cientistas dizem: ‘Alguns ultraprocessados são saudáveis.’ ‘Ultraprocessados é uma definição muito ampla.’ ‘Essa evidência é observacional, é populacional, não é uma prova real, o verdadeiro problema é sal e açúcar.’ Lendo as reportagens, não se sabe que a pessoa que está dizendo isso é financiada pela indústria e fica confuso. E quando você está confuso, a coisa mais fácil a fazer é nada.

Outra coisa é que a indústria, cada vez mais, tem dito que, ao criticar alimentos ultraprocessados, você estigmatiza as pessoas pobres que têm que comê-los e também os indivíduos que vivem com obesidade, e que você vai criar transtornos alimentares. Mas acho que nós, meus colegas e eu, temos sido razoavelmente bons até agora em dizer: ‘Não, o problema são vocês (a indústria).’ O problema é vocês forçarem as pessoas pobres a comerem essa comida. O problema para as pessoas que vivem com obesidade é que você disse a elas que essa comida é saudável. E quando se trata de transtornos alimentares, temos evidências crescentes de que muitos deles são impulsionados por alimentos estranhos que bagunçam os níveis hormonais e o apetite.

A indústria tem mais dinheiro do que a ciência. Eles pagam influenciadores, médicos, cientistas, formuladores de políticas no Reino Unido. Dos membros do comitê consultivo científico sobre nutrição no governo, 65% têm relacionamentos financeiros com empresas como Nestlé e Coca-Cola.

Falando sobre obesidade, você disse que ‘somos muito menos responsáveis pelo nosso peso do que um esquiador é por quebrar a perna’. Poderia falar mais sobre isso?

Todos que vivem com excesso de peso e obesidade — eu mesmo já vivi com excesso de peso, e meu irmão com obesidade — sente como se fosse culpa deles, como se tivessem a escolha de comer os alimentos não saudáveis, e a realidade é que não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram. É como dizer que as pessoas escolhem fumar. Pessoas na indústria alimentícia me disseram, muitos deles, que fazem esses alimentos para serem viciantes. Então, é como dizer aos fumantes: ‘A razão pela qual você fuma é porque é fraco demais para largar o cigarro’. Força de vontade não tem nada a ver com isso.

Não escolhemos quais alimentos compramos. Isso é determinado pelo preço, pela disponibilidade, pela maneira como nossos pais nos alimentaram

Chris van Tulleken, médico e pesquisador

Sabemos que todos no Brasil e na América começaram a ganhar peso ao mesmo tempo. Nos EUA, foi em meados da década de 1970. Negros, brancos, hispânicos, mulheres idosas, homens jovens, todos ganharam peso juntos. Você não pode me dizer que todas essas pessoas perderam a responsabilidade moral ao mesmo tempo em 1975. O que mudou foi o ambiente alimentar.

A mensagem principal do meu livro para esse leitor que está vivendo com obesidade ou sobrepeso é que não é culpa deles. Você está comendo alimentos que são projetados pelas pessoas mais inteligentes do planeta, e comercializados por pessoas igualmente inteligentes. Você precisa parar de se culpar e direcionar a vergonha e a raiva contra si mesmo para os médicos que recebem dinheiro das empresas, as próprias empresas e os governos que falharam em regular essas empresas.

Na sua avaliação, então, temos evidências suficientes para dizer que a pandemia de obesidade e sobrepeso é causada pelos ultraprocessados?

A evidência é muito clara de que alimentos ultraprocessados causam o que chamamos de desfechos negativos em saúde. Portanto, causam ganho de peso e obesidade, câncer, morte prematura e uma série de outras coisas. Agora, como temos certeza de que são os alimentos ultraprocessados? Há duas razões.

A indústria alimentícia quer saber: é o ultraprocessamento ou são apenas a gordura, o sal e o açúcar? A resposta a essa pergunta não é muito importante, embora possamos respondê-la. O que todos concordam é que, quando se trata de desfechos negativos em saúde, o problema são produtos industriais pré-preparados ricos em gordura, sal, açúcar e calorias. Um artigo que acabei de escrever (que ainda não foi publicado) mostra que 99% dos alimentos ultraprocessados têm altos níveis disso. Todos os alimentos ultraprocessados têm altos níveis de gordura, sal, açúcar e calorias. Ninguém acredita que isso seja um problema de cozinhar em casa.

Quando você analisa as evidências epidemiológicas, como esses grandes estudos populacionais, pode usar um conjunto de critérios chamado Critérios de Bradford Hill (foram nove os critérios desenvolvidos por esse epidemiologista e estatístico e, quanto mais deles forem preenchidos, maior a chance da associação ser de ‘causa e efeito’). A pergunta interessante é: são os alimentos ultraprocessados ou é apenas a pobreza, o álcool e os cigarros que estão causando todos esses problemas? Porque as pessoas que consomem muitos alimentos ultraprocessados, certamente no Reino Unido, geralmente têm rendas mais baixas e apresentam essas outras vulnerabilidades. Você verifica se a associação é forte, se é consistente em diferentes populações, se ocorre na ordem de exposição — ou seja, você deve ter certeza de que não é que as pessoas ganham peso e depois começam a comer alimentos ultraprocessados — e se há uma curva de resposta à dose. Isso foi importante para (nossa compreensão sobre os danos) os cigarros, e é o que vemos também com os alimentos ultraprocessados.

E temos uma montanha de evidências experimentais sobre os aditivos, sobre as propriedades dos alimentos, sobre os níveis de sal, gordura, açúcar e calorias. E, a última coisa, é coerente com todas as outras evidências. Temos evidências muito boas de que comer dietas minimamente processadas, com peixe, frutas, vegetais, nozes e leguminosas, nos faz bem.

Então, se alguém me diz que não acredita na evidência sobre alimentos ultraprocessados, a pergunta é: ‘Como você explica isso?’ Você está sugerindo que há algum vírus estranho? Você está propondo que as pessoas estão cozinhando alimentos piores em casa? Você precisa apresentar outra explicação que seja mais plausível.

Agora, as únicas coisas que quero destacar são duas notas de cautela. Nem todos os alimentos ultraprocessados são igualmente prejudiciais. Portanto, comer um doce completamente sintético é quase certamente pior para você do que comer um pão integral, que apenas tem um emulsificante.

A outra coisa a dizer é que há muitos produtos que não são ultraprocessados e não são saudáveis, especialmente no Reino Unido. Porque as empresas perceberam que o público entendeu o perigo dos ultraprocessados e, portanto, estão retirando os aditivos. Coloquei isso no livro. Tive que ligar para Carlos (Monteiro) e a equipe dele, e mostrar alguns desses produtos e perguntar se eram ultraprocessados. ‘Essa lasanha que não tem aditivos é um ultraprocessado?’ Tecnicamente não é, mas funciona como um e ainda será ruim para você.

Na teoria, não podemos ser viciados em comida, você escreve isso no livro, inclusive. Mas, se não considerarmos que os ultraprocessados são comida, o jogo muda?

Você não precisa de um exame ou de um teste de sangue para diagnosticar uma adicção. Se o leitor está se perguntando se está viciado, deve se fazer uma pergunta: você é capaz de parar de usar uma substância ou de ter um determinado comportamento, apesar de saber que isso está te prejudicando de alguma forma? Se, apesar de tentar parar, não consegue, isso é o começo de uma adicção.

Há, claro, escalas e graus de dano. Há pessoas que perdem suas casas (por causa das drogas). Mas não há dúvida de que um grande número de pessoas continua a comer alimentos que sabem que são prejudiciais e não conseguem parar, mesmo que queiram desesperadamente parar.

Sobre seu experimento, você passou semanas comendo quase só ultraprocessados, e semanas sem eles. Como isso transformou a maneira como você se alimenta hoje?

O principal é que ganhei muito peso, meus hormônios ficaram desregulados e a ressonância magnética do meu cérebro mudou (após quatro semanas comendo só ultraprocessados). Uma coisa que aconteceu com minha dieta foi uma experiência de aversão. Eu conversava com Fernanda Rauber (pesquisadora no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo), e ela continuava dizendo: ‘Isso não é comida’. A comida se tornou horrível para mim. Então, eu parei de comer essa comida.

Demorei para perder o peso que ganhei — agora já perdi tudo. O que eu tive que fazer foi retirar cada partícula de alimento ultraprocessado da minha dieta. De certa forma, foi bastante extremo, e sou sortudo por poder fazer isso. Eu realmente não quero comer ultraprocessados, mas também não aconselho ninguém a fazer isso.

Fiquei impressionado com o quão difícil foi para mim, como médico que estuda nutrição, perder seis, sete quilos. Foi realmente difícil. E isso me deu muita empatia com meus pacientes.

Entrevista por Leon Ferrari

Repórter de Saúde e Bem-Estar. É formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Menção honrosa do 40º Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.

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