Em pesquisa, quase um quarto das pessoas relatou usar antibióticos sem receita


Entrevistados contaram que conseguiram comprar o medicamento sem prescrição médica, contrariando a legislação; especialistas alertam para os riscos do consumo inadequado

Por Leon Ferrari

Um levantamento divulgado nesta terça-feira, 19, pela Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) aponta que quase 25% dos brasileiros tomaram antibióticos sem prescrição médica no último ano.

Cerca de 30% dos entrevistados relataram tomar antibióticos sempre que ficam doentes ou várias vezes ao ano e apenas 61,3% disseram consultar um médico antes de usar esse tipo de remédio.

Cerca de 30% dos entrevistados relataram tomar antibióticos sempre que ficam doentes ou várias vezes ao ano Foto: KMPZZZ/Adobe Stock
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O levantamento, realizado com quase 400 participantes com 18 anos ou mais das cinco regiões do País, traz ainda outro dado preocupante: 27% dos que relataram usar antibióticos conseguiram a medicação sem receita, em farmácias menores e de bairro, e outros 15,3% em farmácias de rede. Esses casos contrariam a obrigatoriedade de apresentar a prescrição do médico para adquirir o produto, prevista desde 2010, e mostram a necessidade de um incremento na fiscalização, segundo os especialistas.

Cerca de 2,1% dos participantes revelaram ainda usar medicações disponíveis em casa ou as sobras de amigos e familiares. Isso reacende a discussão da dispensa exata do número de comprimidos prescritos, como já é feito em outros países.

A reportagem entrou em contato com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que não respondeu até a publicação, e com a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), que preferiu não comentar o assunto.

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O levantamento tem limitações, como o número de entrevistados e o uso de questionários pela internet, mas é importante por alertar sobre algo que os infectologistas já desconfiavam: o uso sem prescrição de antibióticos ocorre e precisa ser combatido, principalmente em um momento no qual a resistência antimicrobiana (RAM) é uma das principais ameaças à saúde no mundo.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a RAM ocorre quando bactérias, vírus, fungos e parasitas mudam ao longo do tempo e não respondem mais aos medicamentos — incluindo antibióticos, antivirais, antifúngicos e antiparasitários —, tornando as infecções mais difíceis de tratar e aumentando o risco de disseminação, agravamento dos quadros e mortes.

“Se a pandemia de covid-19 foi um incêndio devastador”, diz a a infectologista Ana Guedes, coordenadora do comitê de resistência antimicrobiana da SBI, “a resistência bacteriana é aquele fogo que queima de maneira ininterrupta e que vai queimando toda a floresta de forma devagar e contínua, mas passa despercebido pela população”.

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No fim de setembro, pesquisadores do Global Burden of Disease, o mais abrangente esforço para quantificar a perda de saúde em diferentes lugares do mundo, publicaram a estimativa de mortes por RAM. Em 2021, estima-se que ela foi responsável por 1,14 milhão de mortes atribuíveis (o paciente morre da infecção resistente) e 4,71 milhões de mortes associadas (o paciente morre com a infecção resistente). Para 2050, a projeção é de 1,91 milhão e 8,22 milhões, respectivamente, com maiores taxas de mortalidade no sul da Ásia, América Latina e Caribe.

O desenho de uma crise

Os antibióticos não são vilões — boa parte do aumento global da expectativa de vida se deve a eles — mas o uso desses remédios, e também de antivirais e antifúngicos, está ligado à RAM. Isso vale tanto para o uso adequado quanto para o excessivo e/ou inadequado, e este é o que podemos e devemos controlar.

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“A bactéria é um ser biológico extremamente adaptável, então a resistência bacteriana faz parte da evolução. Nós não temos como evitar o surgimento da resistência, a bactéria é um ser vivo, ela se adapta”, explica Ana.

O que tem ocorrido, porém, é a aceleração do processo. Ana conta que, antes, desenvolvia-se o antibiótico, ocorria a liberação para uso clínico (em pacientes) e em seguida havia a descrição de resistência. Agora não. “É uma mudança do paradigma: temos a detecção de bactéria resistente antes do antibiótico ser lançado para uso clínico.”

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Entender por que esses germes podem se tornar resistentes ajuda a compreender essa conexão. Isso ocorre de duas maneiras.

Primeiro, pela seleção natural. As bactérias que são sensíveis ao antibiótico morrem e as que não são sobrevivem e triunfam com abundância de recursos, afinal, não há mais competição. “Como a bactéria resistente já existe na natureza, o antibiótico não vai fazer uma bactéria ficar resistente, no entanto, ele vai selecionar e favorecer o crescimento dela”, fala Ana.

A resistência também pode ocorrer após a transferência de material genético. Nesses casos, o processo pode envolver um vírus (que infecta a bactéria), ocorrer por conjugação (transferência de genes de uma bactéria doadora para uma receptora) ou por transformação (uma bactéria morre, libera os genes de resistência e outra bactéria adquire-os).

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Esse segundo mecanismo é influenciado pela poluição ambiental e pela falta de saneamento básico. “O material genético não morre. A bactéria excretada pelo ser humano ou pelo animal cai no meio ambiente, nas águas, nos rios, nos mares, no solo”, lembra Alberto Chebabo, presidente da SBI. “Então, você começa a ter bactérias ambientais recebendo esse material genético de bactérias multirresistentes. Isso aumenta a capacidade de geração de resistência nessas bactérias.”

Chebabo alerta que as mudanças climáticas adicionam uma camada de complexidade ao problema. “O aumento da temperatura vai contribuir para um maior crescimento dessas bactérias. Elas gostam de temperaturas entre 32°C e 36°C.”

Inovação

Além desses fatores, a crise atual tem a ver com o uso de antimicrobianos em animais (especialmente pela indústria alimentícia); a prevenção e controle inadequados de infecções; acesso insuficiente aos medicamentos mais eficazes; hesitação vacinal e, como apontou a pesquisa, falta de aplicação efetiva da legislação.

Para Ana, não há uma medida única, mas sim um conjunto de ações para lidar com a questão, incluindo reduzir as infecções, aumentar as taxas de cobertura vacinal e ampliar a oferta de água tratada e de saneamento básico.

A resposta passa também por inovação — e novidades que sejam acessíveis para o planeta como um todo. “As moléculas que estão sendo produzidas e que estão sendo licenciadas para uso clínico, poucas são novas. Parte do tratamento delas ainda são antibióticos que já estavam sendo utilizados, já há uma certa resistência cruzada”, afirma.

Envolve ainda informação. Nesse sentido, a SBI lançou nesta terça a campanha “Será que precisa? Informe-se sobre o uso adequado dos antibióticos”, em parceria com o influenciador e ator Rafa Hack.

Um levantamento divulgado nesta terça-feira, 19, pela Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) aponta que quase 25% dos brasileiros tomaram antibióticos sem prescrição médica no último ano.

Cerca de 30% dos entrevistados relataram tomar antibióticos sempre que ficam doentes ou várias vezes ao ano e apenas 61,3% disseram consultar um médico antes de usar esse tipo de remédio.

Cerca de 30% dos entrevistados relataram tomar antibióticos sempre que ficam doentes ou várias vezes ao ano Foto: KMPZZZ/Adobe Stock

O levantamento, realizado com quase 400 participantes com 18 anos ou mais das cinco regiões do País, traz ainda outro dado preocupante: 27% dos que relataram usar antibióticos conseguiram a medicação sem receita, em farmácias menores e de bairro, e outros 15,3% em farmácias de rede. Esses casos contrariam a obrigatoriedade de apresentar a prescrição do médico para adquirir o produto, prevista desde 2010, e mostram a necessidade de um incremento na fiscalização, segundo os especialistas.

Cerca de 2,1% dos participantes revelaram ainda usar medicações disponíveis em casa ou as sobras de amigos e familiares. Isso reacende a discussão da dispensa exata do número de comprimidos prescritos, como já é feito em outros países.

A reportagem entrou em contato com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que não respondeu até a publicação, e com a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), que preferiu não comentar o assunto.

O levantamento tem limitações, como o número de entrevistados e o uso de questionários pela internet, mas é importante por alertar sobre algo que os infectologistas já desconfiavam: o uso sem prescrição de antibióticos ocorre e precisa ser combatido, principalmente em um momento no qual a resistência antimicrobiana (RAM) é uma das principais ameaças à saúde no mundo.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a RAM ocorre quando bactérias, vírus, fungos e parasitas mudam ao longo do tempo e não respondem mais aos medicamentos — incluindo antibióticos, antivirais, antifúngicos e antiparasitários —, tornando as infecções mais difíceis de tratar e aumentando o risco de disseminação, agravamento dos quadros e mortes.

“Se a pandemia de covid-19 foi um incêndio devastador”, diz a a infectologista Ana Guedes, coordenadora do comitê de resistência antimicrobiana da SBI, “a resistência bacteriana é aquele fogo que queima de maneira ininterrupta e que vai queimando toda a floresta de forma devagar e contínua, mas passa despercebido pela população”.

No fim de setembro, pesquisadores do Global Burden of Disease, o mais abrangente esforço para quantificar a perda de saúde em diferentes lugares do mundo, publicaram a estimativa de mortes por RAM. Em 2021, estima-se que ela foi responsável por 1,14 milhão de mortes atribuíveis (o paciente morre da infecção resistente) e 4,71 milhões de mortes associadas (o paciente morre com a infecção resistente). Para 2050, a projeção é de 1,91 milhão e 8,22 milhões, respectivamente, com maiores taxas de mortalidade no sul da Ásia, América Latina e Caribe.

O desenho de uma crise

Os antibióticos não são vilões — boa parte do aumento global da expectativa de vida se deve a eles — mas o uso desses remédios, e também de antivirais e antifúngicos, está ligado à RAM. Isso vale tanto para o uso adequado quanto para o excessivo e/ou inadequado, e este é o que podemos e devemos controlar.

“A bactéria é um ser biológico extremamente adaptável, então a resistência bacteriana faz parte da evolução. Nós não temos como evitar o surgimento da resistência, a bactéria é um ser vivo, ela se adapta”, explica Ana.

O que tem ocorrido, porém, é a aceleração do processo. Ana conta que, antes, desenvolvia-se o antibiótico, ocorria a liberação para uso clínico (em pacientes) e em seguida havia a descrição de resistência. Agora não. “É uma mudança do paradigma: temos a detecção de bactéria resistente antes do antibiótico ser lançado para uso clínico.”

Entender por que esses germes podem se tornar resistentes ajuda a compreender essa conexão. Isso ocorre de duas maneiras.

Primeiro, pela seleção natural. As bactérias que são sensíveis ao antibiótico morrem e as que não são sobrevivem e triunfam com abundância de recursos, afinal, não há mais competição. “Como a bactéria resistente já existe na natureza, o antibiótico não vai fazer uma bactéria ficar resistente, no entanto, ele vai selecionar e favorecer o crescimento dela”, fala Ana.

A resistência também pode ocorrer após a transferência de material genético. Nesses casos, o processo pode envolver um vírus (que infecta a bactéria), ocorrer por conjugação (transferência de genes de uma bactéria doadora para uma receptora) ou por transformação (uma bactéria morre, libera os genes de resistência e outra bactéria adquire-os).

Esse segundo mecanismo é influenciado pela poluição ambiental e pela falta de saneamento básico. “O material genético não morre. A bactéria excretada pelo ser humano ou pelo animal cai no meio ambiente, nas águas, nos rios, nos mares, no solo”, lembra Alberto Chebabo, presidente da SBI. “Então, você começa a ter bactérias ambientais recebendo esse material genético de bactérias multirresistentes. Isso aumenta a capacidade de geração de resistência nessas bactérias.”

Chebabo alerta que as mudanças climáticas adicionam uma camada de complexidade ao problema. “O aumento da temperatura vai contribuir para um maior crescimento dessas bactérias. Elas gostam de temperaturas entre 32°C e 36°C.”

Inovação

Além desses fatores, a crise atual tem a ver com o uso de antimicrobianos em animais (especialmente pela indústria alimentícia); a prevenção e controle inadequados de infecções; acesso insuficiente aos medicamentos mais eficazes; hesitação vacinal e, como apontou a pesquisa, falta de aplicação efetiva da legislação.

Para Ana, não há uma medida única, mas sim um conjunto de ações para lidar com a questão, incluindo reduzir as infecções, aumentar as taxas de cobertura vacinal e ampliar a oferta de água tratada e de saneamento básico.

A resposta passa também por inovação — e novidades que sejam acessíveis para o planeta como um todo. “As moléculas que estão sendo produzidas e que estão sendo licenciadas para uso clínico, poucas são novas. Parte do tratamento delas ainda são antibióticos que já estavam sendo utilizados, já há uma certa resistência cruzada”, afirma.

Envolve ainda informação. Nesse sentido, a SBI lançou nesta terça a campanha “Será que precisa? Informe-se sobre o uso adequado dos antibióticos”, em parceria com o influenciador e ator Rafa Hack.

Um levantamento divulgado nesta terça-feira, 19, pela Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) aponta que quase 25% dos brasileiros tomaram antibióticos sem prescrição médica no último ano.

Cerca de 30% dos entrevistados relataram tomar antibióticos sempre que ficam doentes ou várias vezes ao ano e apenas 61,3% disseram consultar um médico antes de usar esse tipo de remédio.

Cerca de 30% dos entrevistados relataram tomar antibióticos sempre que ficam doentes ou várias vezes ao ano Foto: KMPZZZ/Adobe Stock

O levantamento, realizado com quase 400 participantes com 18 anos ou mais das cinco regiões do País, traz ainda outro dado preocupante: 27% dos que relataram usar antibióticos conseguiram a medicação sem receita, em farmácias menores e de bairro, e outros 15,3% em farmácias de rede. Esses casos contrariam a obrigatoriedade de apresentar a prescrição do médico para adquirir o produto, prevista desde 2010, e mostram a necessidade de um incremento na fiscalização, segundo os especialistas.

Cerca de 2,1% dos participantes revelaram ainda usar medicações disponíveis em casa ou as sobras de amigos e familiares. Isso reacende a discussão da dispensa exata do número de comprimidos prescritos, como já é feito em outros países.

A reportagem entrou em contato com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que não respondeu até a publicação, e com a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), que preferiu não comentar o assunto.

O levantamento tem limitações, como o número de entrevistados e o uso de questionários pela internet, mas é importante por alertar sobre algo que os infectologistas já desconfiavam: o uso sem prescrição de antibióticos ocorre e precisa ser combatido, principalmente em um momento no qual a resistência antimicrobiana (RAM) é uma das principais ameaças à saúde no mundo.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a RAM ocorre quando bactérias, vírus, fungos e parasitas mudam ao longo do tempo e não respondem mais aos medicamentos — incluindo antibióticos, antivirais, antifúngicos e antiparasitários —, tornando as infecções mais difíceis de tratar e aumentando o risco de disseminação, agravamento dos quadros e mortes.

“Se a pandemia de covid-19 foi um incêndio devastador”, diz a a infectologista Ana Guedes, coordenadora do comitê de resistência antimicrobiana da SBI, “a resistência bacteriana é aquele fogo que queima de maneira ininterrupta e que vai queimando toda a floresta de forma devagar e contínua, mas passa despercebido pela população”.

No fim de setembro, pesquisadores do Global Burden of Disease, o mais abrangente esforço para quantificar a perda de saúde em diferentes lugares do mundo, publicaram a estimativa de mortes por RAM. Em 2021, estima-se que ela foi responsável por 1,14 milhão de mortes atribuíveis (o paciente morre da infecção resistente) e 4,71 milhões de mortes associadas (o paciente morre com a infecção resistente). Para 2050, a projeção é de 1,91 milhão e 8,22 milhões, respectivamente, com maiores taxas de mortalidade no sul da Ásia, América Latina e Caribe.

O desenho de uma crise

Os antibióticos não são vilões — boa parte do aumento global da expectativa de vida se deve a eles — mas o uso desses remédios, e também de antivirais e antifúngicos, está ligado à RAM. Isso vale tanto para o uso adequado quanto para o excessivo e/ou inadequado, e este é o que podemos e devemos controlar.

“A bactéria é um ser biológico extremamente adaptável, então a resistência bacteriana faz parte da evolução. Nós não temos como evitar o surgimento da resistência, a bactéria é um ser vivo, ela se adapta”, explica Ana.

O que tem ocorrido, porém, é a aceleração do processo. Ana conta que, antes, desenvolvia-se o antibiótico, ocorria a liberação para uso clínico (em pacientes) e em seguida havia a descrição de resistência. Agora não. “É uma mudança do paradigma: temos a detecção de bactéria resistente antes do antibiótico ser lançado para uso clínico.”

Entender por que esses germes podem se tornar resistentes ajuda a compreender essa conexão. Isso ocorre de duas maneiras.

Primeiro, pela seleção natural. As bactérias que são sensíveis ao antibiótico morrem e as que não são sobrevivem e triunfam com abundância de recursos, afinal, não há mais competição. “Como a bactéria resistente já existe na natureza, o antibiótico não vai fazer uma bactéria ficar resistente, no entanto, ele vai selecionar e favorecer o crescimento dela”, fala Ana.

A resistência também pode ocorrer após a transferência de material genético. Nesses casos, o processo pode envolver um vírus (que infecta a bactéria), ocorrer por conjugação (transferência de genes de uma bactéria doadora para uma receptora) ou por transformação (uma bactéria morre, libera os genes de resistência e outra bactéria adquire-os).

Esse segundo mecanismo é influenciado pela poluição ambiental e pela falta de saneamento básico. “O material genético não morre. A bactéria excretada pelo ser humano ou pelo animal cai no meio ambiente, nas águas, nos rios, nos mares, no solo”, lembra Alberto Chebabo, presidente da SBI. “Então, você começa a ter bactérias ambientais recebendo esse material genético de bactérias multirresistentes. Isso aumenta a capacidade de geração de resistência nessas bactérias.”

Chebabo alerta que as mudanças climáticas adicionam uma camada de complexidade ao problema. “O aumento da temperatura vai contribuir para um maior crescimento dessas bactérias. Elas gostam de temperaturas entre 32°C e 36°C.”

Inovação

Além desses fatores, a crise atual tem a ver com o uso de antimicrobianos em animais (especialmente pela indústria alimentícia); a prevenção e controle inadequados de infecções; acesso insuficiente aos medicamentos mais eficazes; hesitação vacinal e, como apontou a pesquisa, falta de aplicação efetiva da legislação.

Para Ana, não há uma medida única, mas sim um conjunto de ações para lidar com a questão, incluindo reduzir as infecções, aumentar as taxas de cobertura vacinal e ampliar a oferta de água tratada e de saneamento básico.

A resposta passa também por inovação — e novidades que sejam acessíveis para o planeta como um todo. “As moléculas que estão sendo produzidas e que estão sendo licenciadas para uso clínico, poucas são novas. Parte do tratamento delas ainda são antibióticos que já estavam sendo utilizados, já há uma certa resistência cruzada”, afirma.

Envolve ainda informação. Nesse sentido, a SBI lançou nesta terça a campanha “Será que precisa? Informe-se sobre o uso adequado dos antibióticos”, em parceria com o influenciador e ator Rafa Hack.

Um levantamento divulgado nesta terça-feira, 19, pela Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) aponta que quase 25% dos brasileiros tomaram antibióticos sem prescrição médica no último ano.

Cerca de 30% dos entrevistados relataram tomar antibióticos sempre que ficam doentes ou várias vezes ao ano e apenas 61,3% disseram consultar um médico antes de usar esse tipo de remédio.

Cerca de 30% dos entrevistados relataram tomar antibióticos sempre que ficam doentes ou várias vezes ao ano Foto: KMPZZZ/Adobe Stock

O levantamento, realizado com quase 400 participantes com 18 anos ou mais das cinco regiões do País, traz ainda outro dado preocupante: 27% dos que relataram usar antibióticos conseguiram a medicação sem receita, em farmácias menores e de bairro, e outros 15,3% em farmácias de rede. Esses casos contrariam a obrigatoriedade de apresentar a prescrição do médico para adquirir o produto, prevista desde 2010, e mostram a necessidade de um incremento na fiscalização, segundo os especialistas.

Cerca de 2,1% dos participantes revelaram ainda usar medicações disponíveis em casa ou as sobras de amigos e familiares. Isso reacende a discussão da dispensa exata do número de comprimidos prescritos, como já é feito em outros países.

A reportagem entrou em contato com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que não respondeu até a publicação, e com a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), que preferiu não comentar o assunto.

O levantamento tem limitações, como o número de entrevistados e o uso de questionários pela internet, mas é importante por alertar sobre algo que os infectologistas já desconfiavam: o uso sem prescrição de antibióticos ocorre e precisa ser combatido, principalmente em um momento no qual a resistência antimicrobiana (RAM) é uma das principais ameaças à saúde no mundo.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a RAM ocorre quando bactérias, vírus, fungos e parasitas mudam ao longo do tempo e não respondem mais aos medicamentos — incluindo antibióticos, antivirais, antifúngicos e antiparasitários —, tornando as infecções mais difíceis de tratar e aumentando o risco de disseminação, agravamento dos quadros e mortes.

“Se a pandemia de covid-19 foi um incêndio devastador”, diz a a infectologista Ana Guedes, coordenadora do comitê de resistência antimicrobiana da SBI, “a resistência bacteriana é aquele fogo que queima de maneira ininterrupta e que vai queimando toda a floresta de forma devagar e contínua, mas passa despercebido pela população”.

No fim de setembro, pesquisadores do Global Burden of Disease, o mais abrangente esforço para quantificar a perda de saúde em diferentes lugares do mundo, publicaram a estimativa de mortes por RAM. Em 2021, estima-se que ela foi responsável por 1,14 milhão de mortes atribuíveis (o paciente morre da infecção resistente) e 4,71 milhões de mortes associadas (o paciente morre com a infecção resistente). Para 2050, a projeção é de 1,91 milhão e 8,22 milhões, respectivamente, com maiores taxas de mortalidade no sul da Ásia, América Latina e Caribe.

O desenho de uma crise

Os antibióticos não são vilões — boa parte do aumento global da expectativa de vida se deve a eles — mas o uso desses remédios, e também de antivirais e antifúngicos, está ligado à RAM. Isso vale tanto para o uso adequado quanto para o excessivo e/ou inadequado, e este é o que podemos e devemos controlar.

“A bactéria é um ser biológico extremamente adaptável, então a resistência bacteriana faz parte da evolução. Nós não temos como evitar o surgimento da resistência, a bactéria é um ser vivo, ela se adapta”, explica Ana.

O que tem ocorrido, porém, é a aceleração do processo. Ana conta que, antes, desenvolvia-se o antibiótico, ocorria a liberação para uso clínico (em pacientes) e em seguida havia a descrição de resistência. Agora não. “É uma mudança do paradigma: temos a detecção de bactéria resistente antes do antibiótico ser lançado para uso clínico.”

Entender por que esses germes podem se tornar resistentes ajuda a compreender essa conexão. Isso ocorre de duas maneiras.

Primeiro, pela seleção natural. As bactérias que são sensíveis ao antibiótico morrem e as que não são sobrevivem e triunfam com abundância de recursos, afinal, não há mais competição. “Como a bactéria resistente já existe na natureza, o antibiótico não vai fazer uma bactéria ficar resistente, no entanto, ele vai selecionar e favorecer o crescimento dela”, fala Ana.

A resistência também pode ocorrer após a transferência de material genético. Nesses casos, o processo pode envolver um vírus (que infecta a bactéria), ocorrer por conjugação (transferência de genes de uma bactéria doadora para uma receptora) ou por transformação (uma bactéria morre, libera os genes de resistência e outra bactéria adquire-os).

Esse segundo mecanismo é influenciado pela poluição ambiental e pela falta de saneamento básico. “O material genético não morre. A bactéria excretada pelo ser humano ou pelo animal cai no meio ambiente, nas águas, nos rios, nos mares, no solo”, lembra Alberto Chebabo, presidente da SBI. “Então, você começa a ter bactérias ambientais recebendo esse material genético de bactérias multirresistentes. Isso aumenta a capacidade de geração de resistência nessas bactérias.”

Chebabo alerta que as mudanças climáticas adicionam uma camada de complexidade ao problema. “O aumento da temperatura vai contribuir para um maior crescimento dessas bactérias. Elas gostam de temperaturas entre 32°C e 36°C.”

Inovação

Além desses fatores, a crise atual tem a ver com o uso de antimicrobianos em animais (especialmente pela indústria alimentícia); a prevenção e controle inadequados de infecções; acesso insuficiente aos medicamentos mais eficazes; hesitação vacinal e, como apontou a pesquisa, falta de aplicação efetiva da legislação.

Para Ana, não há uma medida única, mas sim um conjunto de ações para lidar com a questão, incluindo reduzir as infecções, aumentar as taxas de cobertura vacinal e ampliar a oferta de água tratada e de saneamento básico.

A resposta passa também por inovação — e novidades que sejam acessíveis para o planeta como um todo. “As moléculas que estão sendo produzidas e que estão sendo licenciadas para uso clínico, poucas são novas. Parte do tratamento delas ainda são antibióticos que já estavam sendo utilizados, já há uma certa resistência cruzada”, afirma.

Envolve ainda informação. Nesse sentido, a SBI lançou nesta terça a campanha “Será que precisa? Informe-se sobre o uso adequado dos antibióticos”, em parceria com o influenciador e ator Rafa Hack.

Um levantamento divulgado nesta terça-feira, 19, pela Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) aponta que quase 25% dos brasileiros tomaram antibióticos sem prescrição médica no último ano.

Cerca de 30% dos entrevistados relataram tomar antibióticos sempre que ficam doentes ou várias vezes ao ano e apenas 61,3% disseram consultar um médico antes de usar esse tipo de remédio.

Cerca de 30% dos entrevistados relataram tomar antibióticos sempre que ficam doentes ou várias vezes ao ano Foto: KMPZZZ/Adobe Stock

O levantamento, realizado com quase 400 participantes com 18 anos ou mais das cinco regiões do País, traz ainda outro dado preocupante: 27% dos que relataram usar antibióticos conseguiram a medicação sem receita, em farmácias menores e de bairro, e outros 15,3% em farmácias de rede. Esses casos contrariam a obrigatoriedade de apresentar a prescrição do médico para adquirir o produto, prevista desde 2010, e mostram a necessidade de um incremento na fiscalização, segundo os especialistas.

Cerca de 2,1% dos participantes revelaram ainda usar medicações disponíveis em casa ou as sobras de amigos e familiares. Isso reacende a discussão da dispensa exata do número de comprimidos prescritos, como já é feito em outros países.

A reportagem entrou em contato com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que não respondeu até a publicação, e com a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma), que preferiu não comentar o assunto.

O levantamento tem limitações, como o número de entrevistados e o uso de questionários pela internet, mas é importante por alertar sobre algo que os infectologistas já desconfiavam: o uso sem prescrição de antibióticos ocorre e precisa ser combatido, principalmente em um momento no qual a resistência antimicrobiana (RAM) é uma das principais ameaças à saúde no mundo.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a RAM ocorre quando bactérias, vírus, fungos e parasitas mudam ao longo do tempo e não respondem mais aos medicamentos — incluindo antibióticos, antivirais, antifúngicos e antiparasitários —, tornando as infecções mais difíceis de tratar e aumentando o risco de disseminação, agravamento dos quadros e mortes.

“Se a pandemia de covid-19 foi um incêndio devastador”, diz a a infectologista Ana Guedes, coordenadora do comitê de resistência antimicrobiana da SBI, “a resistência bacteriana é aquele fogo que queima de maneira ininterrupta e que vai queimando toda a floresta de forma devagar e contínua, mas passa despercebido pela população”.

No fim de setembro, pesquisadores do Global Burden of Disease, o mais abrangente esforço para quantificar a perda de saúde em diferentes lugares do mundo, publicaram a estimativa de mortes por RAM. Em 2021, estima-se que ela foi responsável por 1,14 milhão de mortes atribuíveis (o paciente morre da infecção resistente) e 4,71 milhões de mortes associadas (o paciente morre com a infecção resistente). Para 2050, a projeção é de 1,91 milhão e 8,22 milhões, respectivamente, com maiores taxas de mortalidade no sul da Ásia, América Latina e Caribe.

O desenho de uma crise

Os antibióticos não são vilões — boa parte do aumento global da expectativa de vida se deve a eles — mas o uso desses remédios, e também de antivirais e antifúngicos, está ligado à RAM. Isso vale tanto para o uso adequado quanto para o excessivo e/ou inadequado, e este é o que podemos e devemos controlar.

“A bactéria é um ser biológico extremamente adaptável, então a resistência bacteriana faz parte da evolução. Nós não temos como evitar o surgimento da resistência, a bactéria é um ser vivo, ela se adapta”, explica Ana.

O que tem ocorrido, porém, é a aceleração do processo. Ana conta que, antes, desenvolvia-se o antibiótico, ocorria a liberação para uso clínico (em pacientes) e em seguida havia a descrição de resistência. Agora não. “É uma mudança do paradigma: temos a detecção de bactéria resistente antes do antibiótico ser lançado para uso clínico.”

Entender por que esses germes podem se tornar resistentes ajuda a compreender essa conexão. Isso ocorre de duas maneiras.

Primeiro, pela seleção natural. As bactérias que são sensíveis ao antibiótico morrem e as que não são sobrevivem e triunfam com abundância de recursos, afinal, não há mais competição. “Como a bactéria resistente já existe na natureza, o antibiótico não vai fazer uma bactéria ficar resistente, no entanto, ele vai selecionar e favorecer o crescimento dela”, fala Ana.

A resistência também pode ocorrer após a transferência de material genético. Nesses casos, o processo pode envolver um vírus (que infecta a bactéria), ocorrer por conjugação (transferência de genes de uma bactéria doadora para uma receptora) ou por transformação (uma bactéria morre, libera os genes de resistência e outra bactéria adquire-os).

Esse segundo mecanismo é influenciado pela poluição ambiental e pela falta de saneamento básico. “O material genético não morre. A bactéria excretada pelo ser humano ou pelo animal cai no meio ambiente, nas águas, nos rios, nos mares, no solo”, lembra Alberto Chebabo, presidente da SBI. “Então, você começa a ter bactérias ambientais recebendo esse material genético de bactérias multirresistentes. Isso aumenta a capacidade de geração de resistência nessas bactérias.”

Chebabo alerta que as mudanças climáticas adicionam uma camada de complexidade ao problema. “O aumento da temperatura vai contribuir para um maior crescimento dessas bactérias. Elas gostam de temperaturas entre 32°C e 36°C.”

Inovação

Além desses fatores, a crise atual tem a ver com o uso de antimicrobianos em animais (especialmente pela indústria alimentícia); a prevenção e controle inadequados de infecções; acesso insuficiente aos medicamentos mais eficazes; hesitação vacinal e, como apontou a pesquisa, falta de aplicação efetiva da legislação.

Para Ana, não há uma medida única, mas sim um conjunto de ações para lidar com a questão, incluindo reduzir as infecções, aumentar as taxas de cobertura vacinal e ampliar a oferta de água tratada e de saneamento básico.

A resposta passa também por inovação — e novidades que sejam acessíveis para o planeta como um todo. “As moléculas que estão sendo produzidas e que estão sendo licenciadas para uso clínico, poucas são novas. Parte do tratamento delas ainda são antibióticos que já estavam sendo utilizados, já há uma certa resistência cruzada”, afirma.

Envolve ainda informação. Nesse sentido, a SBI lançou nesta terça a campanha “Será que precisa? Informe-se sobre o uso adequado dos antibióticos”, em parceria com o influenciador e ator Rafa Hack.

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