Três entidades médicas apresentaram neste mês, pela primeira vez, uma diretriz recomendando a realização de exame periódico para rastreamento de câncer de pulmão a exemplo do que ocorre com a mamografia para câncer de mama e com os exames de PSA e toque retal para identificar câncer de próstata. O objetivo de recomendações de rastreio é conseguir um diagnóstico precoce, o que aumenta as chances de cura ou de maior sobrevida.
No caso do exame para câncer de pulmão, porém, a recomendação não vale para toda a população, apenas para pessoas com maior risco para esse tipo de tumor. Os critérios foram construídos a partir de estudos científicos que mostraram que um rastreamento na população de maior risco diminui em cerca de 20% a mortalidade pela doença.
Com base nesses estudos, foi criado o 1º Consenso Brasileiro para Rastreamento de Câncer de Pulmão. O documento, elaborado conjuntamente pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica (SBCT) e Colégio Brasileiro de Radiologia (CBR), foi apresentado neste mês no congresso da SBPT e recomenda a realização anual de tomografia do tórax de baixa radiação para pessoas que cumpram três requisitos:
- Ter entre 50 e 80 anos
- Ser fumante atualmente ou ter parado de fumar há menos de 15 anos
- Ter uma carga tabágica de 20 anos/maço, um índice que é calculado dividindo o número médio de cigarros consumidos por dia por 20 (que é o tamanho de um maço) e multiplicando esse valor pelo número de anos que a pessoa fuma ou fumou. Um exemplo: se a pessoa fuma 10 cigarros por dia há 40 anos, sua carga tabágica será 20 anos/maço.
“É um dos cânceres que mais matam no Brasil e que têm a maior letalidade. E uma das razões para essa alta letalidade é que ele costuma ser diagnosticado quando a doença já está localmente avançada ou com metástase em outros órgãos”, explica Gustavo Faibischew Prado, coordenador da comissão de câncer da SBPT, ao justificar a recomendação de exame de rastreamento para as pessoas em maior risco.
Segundo dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca), cerca de 32,5 mil casos de tumor de pulmão deverão ser diagnosticados em 2023 no País. Anualmente, a doença mata cerca de 28 mil brasileiros e é o tipo de câncer com o maior número de vítimas entre as neoplasias. Cerca de 80% dos casos são associados ao cigarro.
Prado diz que os sintomas de câncer de pulmão, como tosse, dor no peito, falta de ar, escarro com sangue, fraqueza e perda de peso, só costumam aparecer nas fases mais avançadas da doença. Três quartos dos casos são diagnosticados nesses estágios, quando as chances de cura são bem menores.
“Quando identificamos a doença nos estágios 1 e 2, com o tumor pequeno e sem comprometimento de linfonodos do mediastino, que é a parte central do pulmão, a chance de cura é alta e a sobrevida em cinco anos é de 80% a 90%. Quando o diagnóstico é feito nos estágios 3 e 4, com a doença mais avançada, essa chance de cura cai significativamente e o tratamento passa a ser focado no controle da doença e qualidade de vida do paciente”, diz Prado.
Segundo o especialista, o índice de sobrevida nos estágios iniciais da doença mostra a importância do diagnóstico precoce. “Precisamos desconstruir essa interpretação niilista do diagnóstico de câncer de pulmão de que não tem tratamento, de que as pessoas morrem rápido. Nos últimos 20 anos, tivemos grandes avanços no tratamento da doença e temos como tratar a doença, principalmente se for diagnosticada cedo”, ressalta.
A psicóloga Tânia Mara dos Santos, de 58 anos, conseguiu curar a doença ao ter um diagnóstico precoce. Embora ela tenha parado de fumar há 25 anos, ela faz acompanhamento com um pneumologista anualmente por ter a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Neste ano, no exame anual, descobriu um pequeno nódulo no pulmão e teve o diagnóstico de câncer de pulmão.
“A minha sorte foi fazer esse acompanhamento e descobrir o tumor bem no começo porque eu não tinha nenhum sintoma. Eu fiz a cirurgia e foi possível retirar todo o tumor. Não precisarei fazer quimioterapia nem radioterapia”, diz a paciente.
Ministério da Saúde ainda não recomenda exame, mas estuda incorporação
Prado ressalta, porém, que o exame de rastreamento deve ser feito somente por pessoas de maior risco, conforme os requisitos do consenso, para evitar resultados falsos positivos e eventuais complicações de biópsias ou outros exames invasivos feitos a partir da identificação de nódulos suspeitos na tomografia.
É justamente por causa desse risco de danos ao paciente que o Ministério da Saúde ainda não recomenda nenhum tipo de exame de rastreamento para câncer de pulmão, embora admita que o assunto esteja passando por reavaliação.
Questionado pelo Estadão, o órgão informou que o diagnóstico de câncer de pulmão “é feito na investigação de sintomas respiratórios (como tosse e falta de ar) e constitucionais (emagrecimento e fadiga) ou por achado radiológico atípico em exame realizado com outro propósito” e que, mesmo para fumantes, não recomenda a tomografia computadorizada de baixa dose para quem está assintomático.
O ministério justifica que, apesar da existência de resultados promissores observados no National Lung Screening Trial (NLST), ensaio clínico que testou o rastreamento na população americana e é um dos estudos usados como base para a elaboração do consenso brasileiro, “permanecem indefinidas questões como a reprodutibilidade do método de aquisição e leitura das imagens, frequência do exame e população sob risco apropriada para a intervenção no Brasil”.
O ministério disse, porém, que “o tema está sendo objeto de discussões internas” com o objetivo de enviá-lo à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia no SUS (Conitec) para que a instância “analise a incorporação da tomografia de baixa radiação para o rastreamento de câncer de pulmão pelo SUS”.
De acordo com Gabriel Santiago, coordenador de pneumologia da Rede D’Or, considerando a recomendação do 1º Consenso Brasileiro sobre Rastreamento de Câncer de Pulmão, há uma estimativa de que 3,2 milhões de pessoas no País se encaixem nos requisitos para a realização do exame anual. “Mas hoje estamos rastreando cerca de 1% apenas”, diz.
Inteligência artificial é testada para auxiliar no diagnóstico precoce
A Rede D’Or, que tem mais de 70 hospitais espalhados pelo País, criou, neste mês, um programa de rastreamento para seus pacientes para tentar aumentar os diagnósticos precoces de tumor no pulmão. “É uma medida eficiente para pacientes de alto risco, mas muitos deles acabam nem sabendo da existência do exame”, afirma o médico.
Como parte da estratégia, a rede capacitou a equipe de médicos e demais profissionais da saúde para identificar, em atendimentos de rotina, pacientes em maior risco que deveriam ter a recomendação do exame. Também está fazendo uma reformulação no sistema do prontuário médico para incluir campos nos quais sejam preenchidas informações sobre tabagismo e estruturou alguns dos seus centros hospitalares para serem referência no diagnóstico e tratamento da doença.
“Não adianta fazer o exame de rastreamento e não ter uma equipe capacitada para discutir os casos, avaliar em quais deles serão feitos exames complementares, acolher o paciente e acompanhá-lo. Se não tiver isso, o paciente recebe um laudo e fica perdido”, diz Santiago.
O médico conta ainda que outra estratégia que vem sendo testada em alguns hospitais da rede é o uso de uma ferramenta de inteligência artificial que lê laudos de tomografias de tórax feitas em pronto-atendimentos, por exemplo, para indicar, a partir de parâmetros dados para o algoritmo, nódulos suspeitos e que possam ter passado despercebidos.
“Às vezes o paciente vai para o pronto-socorro com uma tosse, um quadro respiratório, passa por um exame e recebe a medicação, mas não volta para retirar o laudo e pode deixar passar um nódulo achado incidentalmente. Essa ferramenta tem como função um duplo check, para não deixarmos passar a possibilidade de o paciente não tomar ciência dessa alteração identificada no exame”, afirma o médico.
A ferramenta está sendo testada há cerca de um ano e já “leu” os laudos de mais de 15 mil tomografias, com 1.140 nódulos suspeitos identificados e 101 pacientes com diagnóstico confirmados. Alguns já haviam sido diagnosticados pela própria equipe médica, mas a ferramenta tem como função ser uma verificação a mais na tentativa de encontrar tumores precocemente.