‘Estou aposentando, mas ocupado’: autor explica importância do ócio para envelhecer (e viver) bem


Para pesquisador espanhol, atividades que fazemos por satisfação são essenciais para garantir nosso desenvolvimento pessoal e a preservação de nossas capacidades na velhice

Por Leon Ferrari
Foto: Arquivo pessoal
Entrevista comManuel Cuenca Cabezaprofessor emérito da Universidade de Deusto e fundador do Instituto de Estudos do Ócio

“Estou aposentado. Não trabalho, mas estou ocupado com coisas que têm sentido para mim”, diz o educador e pesquisador Manuel Cuenca Cabeza, de 78 anos, professor emérito da Universidade de Deusto, na Espanha. Ao Estadão, ele conta que há poucos dias inaugurou um centro cultural em homenagem ao irmão falecido. Um projeto que levou três anos para sair do papel e encheu os dias dele de ilusão, o que defende como crucial para viver e envelhecer bem. “A ilusão, o entusiasmo, o prazer de aprender, a curiosidade, são coisas que nunca devemos perder, porque, quando as perdemos, perdemos a vida.”

Fundador do Instituto de Estudos de Ócio, da mesma universidade, Cabeza se dedicou durante mais de três décadas a entender como as pessoas usam o tempo livre e o papel do ócio no desenvolvimento e bem-estar humano. Aposentado há 14 anos, agora escreve não mais para a academia, mas um público mais amplo, na missão de traduzir o que descobriu nessa caminhada.

No livro “Ócio valioso para envelhecer bem”, que ganhou versão brasileira pela Edições Sesc, ele explica que ócio e tempo livre não são a mesma coisa — é possível ter muito tempo livre e nada de ócio. O ócio engloba as atividades que fazemos pela satisfação que nos trazem, não porque resultem em qualquer recompensa — embora deva haver algum ganho pessoal de superação para que seja valioso.

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“O ócio valioso pleno é aquele que nos abre novos horizontes de nossa personalidade”, escreveu. “A profundidade nos faz evoluir. Seja no esporte ou em qualquer outra área, o aprofundamento nos leva a querer saber mais e a melhorar nossas habilidades, tornando-nos pessoas melhores.”

Cabeza e a família durante inauguração do centro cultural que ele idealizou para homenagear o irmão Foto: Arquivo pessoal

Segundo ele, caso carregue todas essas características, muitas atividades podem ser classificadas como ócio valioso. Podem ser lúdicas, esportivas, culturais, festivas, ecológicas e/ou solidárias. Por exigirem um esforço mental, o autor diz que são uma oportunidade para estimular a plasticidade cerebral (capacidade de o cérebro se adaptar e evoluir) e, por vezes, podem ajudar as pessoas a preservarem suas capacidades e combater estigmas associados à idade.

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Na velhice, o ócio também deve ajudar a prevenir certas doenças e a manter tanto os recursos físicos quanto mentais

Manuel Cuenca Cabeza, educador

Algo que ele próprio faz ao poder falar em primeira pessoa sobre esse momento da vida, que, com o envelhecimento populacional, será experimentado por cada vez mais pessoas. “É provavelmente a fase mais feliz da minha vida. Não porque seja a mais fácil, e sim porque é a época em que estou mais consciente do que faço.”

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Embora defenda a necessidade de uma educação para o ócio desde a infância, com bons exemplos em casa e na escola, e destacar que quanto mais o negligenciamos, mais difícil será conquistá-lo, fala que não é impossível iniciar uma prática exitosa quando mais velho. Mas a pessoa precisa estar aberta a aprender coisas novas. “Não podemos continuar (só) fazendo o que sempre fizemos.”

Confira a entrevista completa, em que ele dá dicas sobre como encontrar o ócio valioso:

O que torna o ócio algo valioso?

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Uma das variáveis importantes a considerar no ócio é a satisfação que essas experiências proporcionam. Essas experiências não geram dor nem frustração, embora possam causar cansaço. No entanto, a satisfação não é suficiente. Também é necessário considerar as consequências de nossas ações. Embora (no ócio) não ajamos apenas por utilidade, todas as nossas ações têm consequências.

No caso do ócio, embora geralmente falemos dele de forma geral, na prática ele se manifesta de várias maneiras. Para uma pessoa, o ócio pode ser caminhar ou escalar montanhas, enquanto para outra pode ser algo completamente diferente. Essas diversas manifestações também trazem benefícios diferenciados.

No contexto do envelhecimento, o ócio deve considerar seus benefícios, já que não se trata apenas de se divertir ou passar o tempo de maneira agradável. O ócio na velhice também deve ajudar a prevenir certas doenças e a manter tanto os recursos físicos quanto mentais.

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Sabemos que as práticas de ócio podem aumentar nossa motivação, um aspecto que vai se perdendo com a idade devido à ausência de responsabilidades como o trabalho ou a criação dos filhos. O ócio pode aumentar essa motivação e contribuir para o desenvolvimento da plasticidade cerebral.

Apesar de o cérebro perder certas capacidades com o tempo, a neurociência tem demonstrado a importância de mantê-lo ativo e que é possível gerar novos neurônios. O aprendizado, por exemplo, é possível ao longo de toda a vida e é uma fonte de satisfação para a maioria das pessoas.

Sei que defende a importância da educação para o ócio desde cedo. Mas que conselho daria para quem tem tempo livre hoje, mas sente dificuldade de praticar ócio?

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Acredito que há dois aspectos importantes a considerar: a ilusão e a superação. Precisamos ser pessoas com esperança, e nos enche de esperança aquilo de que gostamos, que acreditamos que vale a pena fazer. Mas isso não é suficiente. Somos pessoas em construção, podemos nos superar, ser melhores a cada dia até o fim de nossa vida. Essa ideia de superação, de tentar fazer o melhor possível, é essencial porque, à medida que a pessoa amadurece, ela pode ir se aprofundando.

A sabedoria surge quando você sai de si mesmo e se encontra com os outros

Manuel Cuenca Cabeza, educador

A sabedoria antiga, que tem sido tão negligenciada ultimamente, baseava-se nessa ideia: uma pessoa ia amadurecendo e se aperfeiçoando, e, ao final, dizia-se que era um sábio. Hoje, o problema é que uma pessoa não pode ser considerada sábia porque não pode acompanhar todos os conhecimentos que se desenvolvem ao longo do tempo, mas ainda assim pode ser uma pessoa sábia no conhecimento da vida, na maturidade de sua pessoa. Para isso, é necessário se cultivar. A sabedoria surge quando você sai de si mesmo e se encontra com os outros.

Sobre a ilusão, o senhor escreveu que ‘o envelhecimento não se encontra tanto nas mudanças corporais que vamos experimentando com o passar dos anos, mas que envelhecemos à medida que perdemos a capacidade de enfrentar as situações vitais diárias sem ilusão, sem encontrar nelas sentido e significado’. O ócio pode nos rejuvenescer?

Eu diria que sim. Todas essas ações, que são gratuitas, voluntárias, feitas simplesmente porque você gosta, não porque é um sacrifício, trazem satisfação. E mais do que isso, trazem ilusão. A ilusão, o entusiasmo e o prazer de aprender, a curiosidade, são coisas que nunca devemos perder, porque, quando as perdemos, perdemos a vida.

No livro, o senhor fala muito da importância do ócio na aposentadoria. E acho que o senhor está numa posição muito especial: aposentar-se e ter mais tempo livre após estudar o poder do ócio por décadas. Como tem sido esse período?

Costumo dizer que essa é provavelmente a fase mais feliz da minha vida. Não porque seja a mais fácil, e sim porque é a época em que sou mais consciente do que faço. Isso me parece fundamental, ou seja, chegar à aposentadoria e ter muitos âmbitos nos quais você pode se desenvolver é maravilhoso.

No meu caso, aproveito tantas coisas que me dão prazer: adoro ler, gosto de cinema, de música, de caminhar, de estar na natureza, e tenho coleções das quais adoro cuidar. Isso é algo muito importante, porque posso fazer essas coisas com tranquilidade, algo que não podia fazer quando estava trabalhando, já que sempre tinha que aproveitar momentos perdidos ou em que estava muito cansado.

O ócio nos proporciona uma visão positiva da vida. Ele nos dá essa satisfação que amortece as dificuldades que podem surgir, e também nos faz descobrir que algumas coisas que pareciam ser muito duras acabam não sendo tanto assim

Manuel Cuenca Cabeza, educador

Acredito que há um aspecto importantíssimo, que é o momento de encontro. Encontrar tempo para estar com as pessoas que você ama. Durante esse tempo, minha esposa passou por um câncer e enfrentou processos muito difíceis. Tive a sorte de poder acompanhá-la continuamente, justamente por estar aposentado.

Quando precisávamos nos deslocar para um tratamento em Madri, não pensávamos apenas nisso, mas também na possibilidade de assistir a uma peça de teatro que nos interessava, ou de ver uma pintura em algum outro museu que sempre quisemos apreciar juntos. Não focávamos apenas no lado negativo, porque o ócio nos proporciona uma visão positiva da vida. Ele nos dá essa satisfação que amortece as dificuldades que podem surgir, e também nos faz descobrir que algumas coisas que pareciam ser muito duras acabam não sendo tanto assim, especialmente quando você é capaz de compartilhá-las e vivê-las de maneira consciente.

“Estou aposentado. Não trabalho, mas estou ocupado com coisas que têm sentido para mim”, diz o educador e pesquisador Manuel Cuenca Cabeza, de 78 anos, professor emérito da Universidade de Deusto, na Espanha. Ao Estadão, ele conta que há poucos dias inaugurou um centro cultural em homenagem ao irmão falecido. Um projeto que levou três anos para sair do papel e encheu os dias dele de ilusão, o que defende como crucial para viver e envelhecer bem. “A ilusão, o entusiasmo, o prazer de aprender, a curiosidade, são coisas que nunca devemos perder, porque, quando as perdemos, perdemos a vida.”

Fundador do Instituto de Estudos de Ócio, da mesma universidade, Cabeza se dedicou durante mais de três décadas a entender como as pessoas usam o tempo livre e o papel do ócio no desenvolvimento e bem-estar humano. Aposentado há 14 anos, agora escreve não mais para a academia, mas um público mais amplo, na missão de traduzir o que descobriu nessa caminhada.

No livro “Ócio valioso para envelhecer bem”, que ganhou versão brasileira pela Edições Sesc, ele explica que ócio e tempo livre não são a mesma coisa — é possível ter muito tempo livre e nada de ócio. O ócio engloba as atividades que fazemos pela satisfação que nos trazem, não porque resultem em qualquer recompensa — embora deva haver algum ganho pessoal de superação para que seja valioso.

“O ócio valioso pleno é aquele que nos abre novos horizontes de nossa personalidade”, escreveu. “A profundidade nos faz evoluir. Seja no esporte ou em qualquer outra área, o aprofundamento nos leva a querer saber mais e a melhorar nossas habilidades, tornando-nos pessoas melhores.”

Cabeza e a família durante inauguração do centro cultural que ele idealizou para homenagear o irmão Foto: Arquivo pessoal

Segundo ele, caso carregue todas essas características, muitas atividades podem ser classificadas como ócio valioso. Podem ser lúdicas, esportivas, culturais, festivas, ecológicas e/ou solidárias. Por exigirem um esforço mental, o autor diz que são uma oportunidade para estimular a plasticidade cerebral (capacidade de o cérebro se adaptar e evoluir) e, por vezes, podem ajudar as pessoas a preservarem suas capacidades e combater estigmas associados à idade.

Na velhice, o ócio também deve ajudar a prevenir certas doenças e a manter tanto os recursos físicos quanto mentais

Manuel Cuenca Cabeza, educador

Algo que ele próprio faz ao poder falar em primeira pessoa sobre esse momento da vida, que, com o envelhecimento populacional, será experimentado por cada vez mais pessoas. “É provavelmente a fase mais feliz da minha vida. Não porque seja a mais fácil, e sim porque é a época em que estou mais consciente do que faço.”

Embora defenda a necessidade de uma educação para o ócio desde a infância, com bons exemplos em casa e na escola, e destacar que quanto mais o negligenciamos, mais difícil será conquistá-lo, fala que não é impossível iniciar uma prática exitosa quando mais velho. Mas a pessoa precisa estar aberta a aprender coisas novas. “Não podemos continuar (só) fazendo o que sempre fizemos.”

Confira a entrevista completa, em que ele dá dicas sobre como encontrar o ócio valioso:

O que torna o ócio algo valioso?

Uma das variáveis importantes a considerar no ócio é a satisfação que essas experiências proporcionam. Essas experiências não geram dor nem frustração, embora possam causar cansaço. No entanto, a satisfação não é suficiente. Também é necessário considerar as consequências de nossas ações. Embora (no ócio) não ajamos apenas por utilidade, todas as nossas ações têm consequências.

No caso do ócio, embora geralmente falemos dele de forma geral, na prática ele se manifesta de várias maneiras. Para uma pessoa, o ócio pode ser caminhar ou escalar montanhas, enquanto para outra pode ser algo completamente diferente. Essas diversas manifestações também trazem benefícios diferenciados.

No contexto do envelhecimento, o ócio deve considerar seus benefícios, já que não se trata apenas de se divertir ou passar o tempo de maneira agradável. O ócio na velhice também deve ajudar a prevenir certas doenças e a manter tanto os recursos físicos quanto mentais.

Sabemos que as práticas de ócio podem aumentar nossa motivação, um aspecto que vai se perdendo com a idade devido à ausência de responsabilidades como o trabalho ou a criação dos filhos. O ócio pode aumentar essa motivação e contribuir para o desenvolvimento da plasticidade cerebral.

Apesar de o cérebro perder certas capacidades com o tempo, a neurociência tem demonstrado a importância de mantê-lo ativo e que é possível gerar novos neurônios. O aprendizado, por exemplo, é possível ao longo de toda a vida e é uma fonte de satisfação para a maioria das pessoas.

Sei que defende a importância da educação para o ócio desde cedo. Mas que conselho daria para quem tem tempo livre hoje, mas sente dificuldade de praticar ócio?

Acredito que há dois aspectos importantes a considerar: a ilusão e a superação. Precisamos ser pessoas com esperança, e nos enche de esperança aquilo de que gostamos, que acreditamos que vale a pena fazer. Mas isso não é suficiente. Somos pessoas em construção, podemos nos superar, ser melhores a cada dia até o fim de nossa vida. Essa ideia de superação, de tentar fazer o melhor possível, é essencial porque, à medida que a pessoa amadurece, ela pode ir se aprofundando.

A sabedoria surge quando você sai de si mesmo e se encontra com os outros

Manuel Cuenca Cabeza, educador

A sabedoria antiga, que tem sido tão negligenciada ultimamente, baseava-se nessa ideia: uma pessoa ia amadurecendo e se aperfeiçoando, e, ao final, dizia-se que era um sábio. Hoje, o problema é que uma pessoa não pode ser considerada sábia porque não pode acompanhar todos os conhecimentos que se desenvolvem ao longo do tempo, mas ainda assim pode ser uma pessoa sábia no conhecimento da vida, na maturidade de sua pessoa. Para isso, é necessário se cultivar. A sabedoria surge quando você sai de si mesmo e se encontra com os outros.

Sobre a ilusão, o senhor escreveu que ‘o envelhecimento não se encontra tanto nas mudanças corporais que vamos experimentando com o passar dos anos, mas que envelhecemos à medida que perdemos a capacidade de enfrentar as situações vitais diárias sem ilusão, sem encontrar nelas sentido e significado’. O ócio pode nos rejuvenescer?

Eu diria que sim. Todas essas ações, que são gratuitas, voluntárias, feitas simplesmente porque você gosta, não porque é um sacrifício, trazem satisfação. E mais do que isso, trazem ilusão. A ilusão, o entusiasmo e o prazer de aprender, a curiosidade, são coisas que nunca devemos perder, porque, quando as perdemos, perdemos a vida.

No livro, o senhor fala muito da importância do ócio na aposentadoria. E acho que o senhor está numa posição muito especial: aposentar-se e ter mais tempo livre após estudar o poder do ócio por décadas. Como tem sido esse período?

Costumo dizer que essa é provavelmente a fase mais feliz da minha vida. Não porque seja a mais fácil, e sim porque é a época em que sou mais consciente do que faço. Isso me parece fundamental, ou seja, chegar à aposentadoria e ter muitos âmbitos nos quais você pode se desenvolver é maravilhoso.

No meu caso, aproveito tantas coisas que me dão prazer: adoro ler, gosto de cinema, de música, de caminhar, de estar na natureza, e tenho coleções das quais adoro cuidar. Isso é algo muito importante, porque posso fazer essas coisas com tranquilidade, algo que não podia fazer quando estava trabalhando, já que sempre tinha que aproveitar momentos perdidos ou em que estava muito cansado.

O ócio nos proporciona uma visão positiva da vida. Ele nos dá essa satisfação que amortece as dificuldades que podem surgir, e também nos faz descobrir que algumas coisas que pareciam ser muito duras acabam não sendo tanto assim

Manuel Cuenca Cabeza, educador

Acredito que há um aspecto importantíssimo, que é o momento de encontro. Encontrar tempo para estar com as pessoas que você ama. Durante esse tempo, minha esposa passou por um câncer e enfrentou processos muito difíceis. Tive a sorte de poder acompanhá-la continuamente, justamente por estar aposentado.

Quando precisávamos nos deslocar para um tratamento em Madri, não pensávamos apenas nisso, mas também na possibilidade de assistir a uma peça de teatro que nos interessava, ou de ver uma pintura em algum outro museu que sempre quisemos apreciar juntos. Não focávamos apenas no lado negativo, porque o ócio nos proporciona uma visão positiva da vida. Ele nos dá essa satisfação que amortece as dificuldades que podem surgir, e também nos faz descobrir que algumas coisas que pareciam ser muito duras acabam não sendo tanto assim, especialmente quando você é capaz de compartilhá-las e vivê-las de maneira consciente.

“Estou aposentado. Não trabalho, mas estou ocupado com coisas que têm sentido para mim”, diz o educador e pesquisador Manuel Cuenca Cabeza, de 78 anos, professor emérito da Universidade de Deusto, na Espanha. Ao Estadão, ele conta que há poucos dias inaugurou um centro cultural em homenagem ao irmão falecido. Um projeto que levou três anos para sair do papel e encheu os dias dele de ilusão, o que defende como crucial para viver e envelhecer bem. “A ilusão, o entusiasmo, o prazer de aprender, a curiosidade, são coisas que nunca devemos perder, porque, quando as perdemos, perdemos a vida.”

Fundador do Instituto de Estudos de Ócio, da mesma universidade, Cabeza se dedicou durante mais de três décadas a entender como as pessoas usam o tempo livre e o papel do ócio no desenvolvimento e bem-estar humano. Aposentado há 14 anos, agora escreve não mais para a academia, mas um público mais amplo, na missão de traduzir o que descobriu nessa caminhada.

No livro “Ócio valioso para envelhecer bem”, que ganhou versão brasileira pela Edições Sesc, ele explica que ócio e tempo livre não são a mesma coisa — é possível ter muito tempo livre e nada de ócio. O ócio engloba as atividades que fazemos pela satisfação que nos trazem, não porque resultem em qualquer recompensa — embora deva haver algum ganho pessoal de superação para que seja valioso.

“O ócio valioso pleno é aquele que nos abre novos horizontes de nossa personalidade”, escreveu. “A profundidade nos faz evoluir. Seja no esporte ou em qualquer outra área, o aprofundamento nos leva a querer saber mais e a melhorar nossas habilidades, tornando-nos pessoas melhores.”

Cabeza e a família durante inauguração do centro cultural que ele idealizou para homenagear o irmão Foto: Arquivo pessoal

Segundo ele, caso carregue todas essas características, muitas atividades podem ser classificadas como ócio valioso. Podem ser lúdicas, esportivas, culturais, festivas, ecológicas e/ou solidárias. Por exigirem um esforço mental, o autor diz que são uma oportunidade para estimular a plasticidade cerebral (capacidade de o cérebro se adaptar e evoluir) e, por vezes, podem ajudar as pessoas a preservarem suas capacidades e combater estigmas associados à idade.

Na velhice, o ócio também deve ajudar a prevenir certas doenças e a manter tanto os recursos físicos quanto mentais

Manuel Cuenca Cabeza, educador

Algo que ele próprio faz ao poder falar em primeira pessoa sobre esse momento da vida, que, com o envelhecimento populacional, será experimentado por cada vez mais pessoas. “É provavelmente a fase mais feliz da minha vida. Não porque seja a mais fácil, e sim porque é a época em que estou mais consciente do que faço.”

Embora defenda a necessidade de uma educação para o ócio desde a infância, com bons exemplos em casa e na escola, e destacar que quanto mais o negligenciamos, mais difícil será conquistá-lo, fala que não é impossível iniciar uma prática exitosa quando mais velho. Mas a pessoa precisa estar aberta a aprender coisas novas. “Não podemos continuar (só) fazendo o que sempre fizemos.”

Confira a entrevista completa, em que ele dá dicas sobre como encontrar o ócio valioso:

O que torna o ócio algo valioso?

Uma das variáveis importantes a considerar no ócio é a satisfação que essas experiências proporcionam. Essas experiências não geram dor nem frustração, embora possam causar cansaço. No entanto, a satisfação não é suficiente. Também é necessário considerar as consequências de nossas ações. Embora (no ócio) não ajamos apenas por utilidade, todas as nossas ações têm consequências.

No caso do ócio, embora geralmente falemos dele de forma geral, na prática ele se manifesta de várias maneiras. Para uma pessoa, o ócio pode ser caminhar ou escalar montanhas, enquanto para outra pode ser algo completamente diferente. Essas diversas manifestações também trazem benefícios diferenciados.

No contexto do envelhecimento, o ócio deve considerar seus benefícios, já que não se trata apenas de se divertir ou passar o tempo de maneira agradável. O ócio na velhice também deve ajudar a prevenir certas doenças e a manter tanto os recursos físicos quanto mentais.

Sabemos que as práticas de ócio podem aumentar nossa motivação, um aspecto que vai se perdendo com a idade devido à ausência de responsabilidades como o trabalho ou a criação dos filhos. O ócio pode aumentar essa motivação e contribuir para o desenvolvimento da plasticidade cerebral.

Apesar de o cérebro perder certas capacidades com o tempo, a neurociência tem demonstrado a importância de mantê-lo ativo e que é possível gerar novos neurônios. O aprendizado, por exemplo, é possível ao longo de toda a vida e é uma fonte de satisfação para a maioria das pessoas.

Sei que defende a importância da educação para o ócio desde cedo. Mas que conselho daria para quem tem tempo livre hoje, mas sente dificuldade de praticar ócio?

Acredito que há dois aspectos importantes a considerar: a ilusão e a superação. Precisamos ser pessoas com esperança, e nos enche de esperança aquilo de que gostamos, que acreditamos que vale a pena fazer. Mas isso não é suficiente. Somos pessoas em construção, podemos nos superar, ser melhores a cada dia até o fim de nossa vida. Essa ideia de superação, de tentar fazer o melhor possível, é essencial porque, à medida que a pessoa amadurece, ela pode ir se aprofundando.

A sabedoria surge quando você sai de si mesmo e se encontra com os outros

Manuel Cuenca Cabeza, educador

A sabedoria antiga, que tem sido tão negligenciada ultimamente, baseava-se nessa ideia: uma pessoa ia amadurecendo e se aperfeiçoando, e, ao final, dizia-se que era um sábio. Hoje, o problema é que uma pessoa não pode ser considerada sábia porque não pode acompanhar todos os conhecimentos que se desenvolvem ao longo do tempo, mas ainda assim pode ser uma pessoa sábia no conhecimento da vida, na maturidade de sua pessoa. Para isso, é necessário se cultivar. A sabedoria surge quando você sai de si mesmo e se encontra com os outros.

Sobre a ilusão, o senhor escreveu que ‘o envelhecimento não se encontra tanto nas mudanças corporais que vamos experimentando com o passar dos anos, mas que envelhecemos à medida que perdemos a capacidade de enfrentar as situações vitais diárias sem ilusão, sem encontrar nelas sentido e significado’. O ócio pode nos rejuvenescer?

Eu diria que sim. Todas essas ações, que são gratuitas, voluntárias, feitas simplesmente porque você gosta, não porque é um sacrifício, trazem satisfação. E mais do que isso, trazem ilusão. A ilusão, o entusiasmo e o prazer de aprender, a curiosidade, são coisas que nunca devemos perder, porque, quando as perdemos, perdemos a vida.

No livro, o senhor fala muito da importância do ócio na aposentadoria. E acho que o senhor está numa posição muito especial: aposentar-se e ter mais tempo livre após estudar o poder do ócio por décadas. Como tem sido esse período?

Costumo dizer que essa é provavelmente a fase mais feliz da minha vida. Não porque seja a mais fácil, e sim porque é a época em que sou mais consciente do que faço. Isso me parece fundamental, ou seja, chegar à aposentadoria e ter muitos âmbitos nos quais você pode se desenvolver é maravilhoso.

No meu caso, aproveito tantas coisas que me dão prazer: adoro ler, gosto de cinema, de música, de caminhar, de estar na natureza, e tenho coleções das quais adoro cuidar. Isso é algo muito importante, porque posso fazer essas coisas com tranquilidade, algo que não podia fazer quando estava trabalhando, já que sempre tinha que aproveitar momentos perdidos ou em que estava muito cansado.

O ócio nos proporciona uma visão positiva da vida. Ele nos dá essa satisfação que amortece as dificuldades que podem surgir, e também nos faz descobrir que algumas coisas que pareciam ser muito duras acabam não sendo tanto assim

Manuel Cuenca Cabeza, educador

Acredito que há um aspecto importantíssimo, que é o momento de encontro. Encontrar tempo para estar com as pessoas que você ama. Durante esse tempo, minha esposa passou por um câncer e enfrentou processos muito difíceis. Tive a sorte de poder acompanhá-la continuamente, justamente por estar aposentado.

Quando precisávamos nos deslocar para um tratamento em Madri, não pensávamos apenas nisso, mas também na possibilidade de assistir a uma peça de teatro que nos interessava, ou de ver uma pintura em algum outro museu que sempre quisemos apreciar juntos. Não focávamos apenas no lado negativo, porque o ócio nos proporciona uma visão positiva da vida. Ele nos dá essa satisfação que amortece as dificuldades que podem surgir, e também nos faz descobrir que algumas coisas que pareciam ser muito duras acabam não sendo tanto assim, especialmente quando você é capaz de compartilhá-las e vivê-las de maneira consciente.

Entrevista por Leon Ferrari

Repórter de Saúde e Bem-Estar. É formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Menção honrosa do 40º Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.

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