Eram 19 horas da quarta-feira quando o epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz-Amazônia, divulgou um alerta nas redes sociais, para órgãos do governo e até para a Câmara e o Senado. Manaus, segundo ele, tinha se tornado a “capital mundial da pandemia de covid-19”.
No alerta, Orellana adverte: “O caos sanitário e humanitário em que a cidade mergulhou durante a segunda onda, traduzido pelo pico explosivo de mortalidade e de internações em leitos clínicos e de UTI no início de janeiro, não deixa qualquer dúvida sobre a extensão da tragédia anunciada.” Foi o 13.º alerta que ele divulgou desde agosto.
Na manhã desta quinta-feira, 14, Orellana viu seus temores se concretizando. Por pelo menos cinco horas, boa parte dos hospitais da cidade ficou sem oxigênio e pacientes morreram asfixiados. “Leitos viraram câmaras de asfixia”, comparou.
Em entrevista ao Estadão, o pesquisador afirmou que desde agosto havia sinais de que a situação ia piorar se não fosse interrompida a circulação do vírus. Ele criticou a divulgação de um estudo segundo o qual Manaus poderia ter atingido a imunidade de rebanho. E afirmou que uma nova cepa do coronavírus, identificada em turistas japoneses após viagem à Amazônia, é a explicação mais plausível para a explosão atual de casos.
Você vem defendendo há meses que Manaus deveria decretar um lockdown. Como anteviu com tanto tempo o colapso que culminaria nesta quinta-feira com a falta de oxigênio?
Nós começamos a visualizar os primeiros sinais da segunda onda já na primeira quinzena de agosto de 2020, quando percebemos que ocorreu uma reversão da queda de casos. A curva epidêmica vinha com um padrão de queda, estabilizou e começou a subir. Foi o primeiro sinal, mas muitos ignoraram. Em setembro a situação piorou. Estávamos em contato com Ministério Público, Defensoria Pública, Secretaria de Saúde e recomendamos o lockdown. Fomos muito criticados, mas conseguimos convencer o ex-prefeito (Arthur Virgílio Neto, que propôs a medida ao governador Wilson Lima). Mas não durou 24 horas a decisão. Depois que (o presidente Jair) Bolsonaro classificou a medida como absurda, o governador a descartou totalmente. E tivemos um agravante sério de má ciência quando um grupo de pesquisadores publicou um artigo dizendo que Manaus tinha atingido a imunidade de rebanho. Fizemos um comentário técnico do artigo apontando os erros, mas ele nunca foi retratado. Isso circulou pelo meio político, nas mesas de bar. Hoje mais gente questiona o estudo. Mas a partir dali a população relaxou e o final da história é esse que vimos nesta manhã de completo colapso.
Quanto esta cepa do coronavírus identificada em turistas japoneses que voltavam da Amazônia e apontada por vocês na Fiocruz como uma nova variante pode ter colaborado com essa explosão de casos?
Apesar de todo esse contexto de relaxamento da população em relação aos cuidados, acreditamos que esta nova cepa é a explicação mais plausível para um crescimento tão explosivo considerando o histórico de Manaus. Porque esse tipo de crescimento tão explosivo a gente normalmente aceita quando toda a população é considerada suscetível ao novo vírus. Mas essa disseminação que estamos vendo num contexto em que pelo menos 30% a 40% da população já tinha sido exposta ao coronavírus só pode ser porque essa nova cepa se propaga muito mais rapidamente que todas as 11 variantes que circularam antes na região.
Ainda estamos investigando se de fato ela é mais contagiosa, mas as mutações que observamos são muito parecidas com as vistas no Reino Unido e na África do Sul em novas cepas que também mostraram mais fáceis de serem transmitidas. E a pior consequência – além das centenas de mortes que aconteceram nos últimos seis dias e as milhares que ainda devem acontecer nos próximos – é a possibilidade de disseminar essa nova cepa Brasil afora porque estamos mandando dezenas de pacientes daqui para outros Estados. Em outras palavras, estamos mandando o vírus para outros Estados. Isso ninguém está falando ainda, mas vamos ver a bomba estourar daqui uns 15 dias.
O que aconteceu nesta quinta-feira?
Eu estava trabalhando normalmente quando recebi uma mensagem, depois uma ligação, depois vídeos, fotos. De repente era uma avalanche de informações e vi que não podia ser fake news porque vinha das pessoas que confio muito que estavam dentro dos hospitais. Já temos a confirmação de que aconteceram seis óbitos de uma só vez no Hospital Universitário Getúlio Vargas e outros na Fundação de Medicina Tropical e em outros serviços de pronto-atendimento, além de dezenas de pacientes que estavam sendo ambuzadas (ventilação mecânica). Pessoas que estavam 20 minutos seguidos em cima dos pacientes, fazendo ventilação manual… o que é outra fonte de contágio, porque é humanamente impossível colocar a mesma pessoa para fazer ventilação mecânica por horas seguidas. Tem de revezar com outros.
Isso sem contar as pessoas que ficaram sem suprimento de oxigênio, mas não morreram... não temos ideia do que pode acontecer em termos de sequelas neurológicas com elas. Depois de algumas horas os hospitais que tiveram o problema foram provisoriamente supridos, mas como a transmissão comunitária está violenta, não sabemos como vai ser amanhã. Podemos ser surpreendidos com uma nova avalanche de internações. Estamos num contexto de fila para internações de leito clínico e de UTI, tanto de pacientes de Manaus quanto do interior do Amazonas. É um caos absoluto.
Como ficou o clima na cidade?
O governo do Estado colocou polícia na frente de alguns hospitais para evitar manifestações de familiares. Imagine que dezenas de pessoas foram a óbito em menos de cinco horas em Manaus e muitos dos familiares ainda não sabem quem foram as pessoas que morreram. Pensa comigo: se você ficar 15 segundos sem respirar você consegue sobreviver? Imagine ficar sem respirar por uma hora. O que ocorreu é que literalmente os leitos se tornaram câmaras de asfixia. Isso não é uma imagem artística. Foi real. Essa é uma das maiores tragédias recentes da história da saúde pública mundial.
Diante deste cenário, o que é possível fazer agora?
De imediato, honestamente, não tem nada a ser feito além de pelo menos manter o suprimento de oxigênio. Essas mortes de hoje são resultado de infecções de pelo menos 15 dias atrás. Pelos próximos dias ainda as infecções das últimas semanas vão continuar aumentando a demanda dos hospitais. E vai precisar de muito oxigênio.
Em abril e maio do ano passado, que tinha sido o pico dos casos em Manaus, tivemos um consumo X de oxigênio. Neste começo de janeiro foi duas a três vezes superior. Só isso já dá uma ideia do caos. Além disso, uma quantidade grande de pessoas ficou com um consumo irregular de oxigênio nesta manhã. Com isso elas evoluíram negativamente. Se consumiam 1 litro antes do colapso, agora vão precisar de 1,5. A situação delas piorou. As pessoas se asfixiaram no hospital, mas já estavam também morrendo em casa asfixiadas por falta de leito. Foi o recorde de mortes em domicílio nos últimos sete dias. Ambulâncias pegando corpos ou pessoas quase mortas em casa.