Febre oropouche tem ‘potencial de transmissão enorme no Brasil’, afirma pesquisador


Mudanças climáticas, desmatamento e migrações contribuem para dispersão da doença; risco de adaptação do vírus a mosquitos urbanos gera preocupação

Por Layla Shasta
Atualização:
Foto: Kelvin Souza/IEC
Entrevista comPedro VasconcelosPesquisador do Instituto Evandro Chagas

A febre oropouche, doença que já soma mais de 7 mil casos e provocou duas mortes no Brasil em 2024, apresenta um potencial significativo de se espalhar não apenas pelo País, mas por toda a América do Sul. O alerta é de Pedro Vasconcelos, pesquisador emérito do Instituto Evandro Chagas (IEC), órgão vinculado ao Ministério da Saúde que identificou anticorpos contra o vírus em recém-nascidos com microcefalia.

Vasconcelos também é professor de Patologia na Universidade do Estado do Pará (UEPA) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Viroses Emergentes e Reemergentes (INCT - VER). Em entrevista ao Estadão, ele destaca que mudanças climáticas, desmatamento e migrações humanas podem estar por trás da propagação do vírus.

Existe o risco de a febre oropouche se disseminar?

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A disseminação depende de muitos fatores, incluindo se o vírus vai se adaptar para ser transmitido por vetores diferentes. Mas, com base na experiência do Instituto Evandro Chagas, que estudou mais de 40 epidemias, vejo um risco considerável de que o vírus possa ter um potencial de transmissão enorme no Brasil e, provavelmente, na América do Sul, envolvendo todos os países da Pan-Amazônia.

Vivemos em um mundo com mudanças climáticas, desmatamento e migrações humanas em quantidades nunca vistas. Tudo isso facilita a movimentação dos vírus.

Há, porém, uma questão que pode dificultar a disseminação nos mesmos moldes que o zika e o chikungunya: o modo de transmissão. O maruim (vetor da doença) geralmente ocorre em agrovilas, bairros recém-construídos e áreas recém-desmatadas. É diferente do Aedes aegypti (que se dissemina mais facilmente em centros urbanos, onde há mais residências).

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Então, se o vírus continuar sendo transmitido pelo maruim, podemos ter epidemias, como tem ocorrido, mas talvez não atinjam o nível que o Aedes consegue com dengue, zika e chikungunya.

A pergunta que precisa ser feita a partir de agora é: será que o vírus se adaptou a outros transmissores, como o Aedes aegypti e o Aedes albopictus? Ou tivemos movimentos migratórios que levaram o vírus de um lado para outro?

O aumento de casos pode ser atribuído a essas mudanças (adaptação dos mosquitos, desmatamento e crise climática) ou é resultado da maior disponibilidade de testes para diagnóstico?

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É uma somatória de fatores. Temos um melhor diagnóstico, principalmente molecular, em que um mesmo aparelho consegue diagnosticar milhares de vírus diferentes, mas também há a possibilidade de dispersão.

Nunca tivemos uma dispersão como neste ano. Os casos começaram em Rondônia, Roraima, Acre, Amazonas, mas agora vemos grande parte do País com transmissão do vírus.

Já tínhamos feito diagnóstico, a partir de 2008, em macacos em Minas Gerais. Posteriormente, ainda em Minas, em 2012, houve várias mortes de macacos. Tivemos casos também em Goiás. Portanto, a dispersão do vírus para o Sudeste já tinha ocorrido, assim como para o Centro-Oeste.

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Nunca tivemos uma dispersão como neste ano.

Pedro Vasconcelos

Mas, com exceção do Maranhão, que é limítrofe da Amazônia, não tínhamos surtos na região Nordeste. O clima e a cobertura vegetal são muito diferentes dos da Amazônia e da Mata Atlântica. É curioso, para dizer o mínimo, o que estamos observando em Pernambuco, na Bahia etc.

O movimento populacional no Brasil é alto, então a possibilidade de pessoas em fase virêmica (primeiros dias após o início dos sintomas) ou em período de incubação carregarem o vírus para outros lugares é muito grande. Foi assim com a dengue, chikungunya e zika e provavelmente foi assim que o oropouche chegou ao Nordeste.

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Onde o maruim é encontrado? Ele pode migrar para a zona urbana?

O maruim geralmente é encontrado em áreas onde detritos orgânicos, especialmente de frutas, se acumulam, como regiões com plantação de banana, cupuaçu ou cacau.

Geralmente não vemos isso nas cidades, a não ser em regiões periféricas, onde as pessoas têm plantações no seu quintal, ou em plantações robustas para uso comercial.

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Então, ele é diferente do Aedes aegypti, que prefere águas limpas e claras, próximas às residências.

Por isso é muito difícil dizer que haverá um aumento explosivo da transmissão. Mas o vírus pode sofrer uma mutação que permita sua adaptação a mosquitos da área urbana. Temos uma suspeita de que essa situação possa ocorrer no futuro, assim como ocorreu com outros vírus.

As primeiras mortes por febre oropouche são casos isolados ou indicam que a doença pode ser mais grave do que se imaginava?

Eu estudo o vírus oropouche desde o início da década de 1980 e nunca vi casos assim.

No meio das grandes epidemias na Amazônia, houve relatos de formas neurológicas mais severas do que a febre clássica causada pelo oropouche, com casos de meningite e meningoencefalite. Portanto, já se tinha um aumento de gravidade, mas nunca um registro de morte.

Eu estudo o vírus oropouche desde o início da década de 1980 e nunca vi casos assim.

Pedro Vasconcelos

Isso é completamente novo e sugere maior patogenicidade, virulência e adaptabilidade do vírus para causar quadros severos em humanos. É algo que precisa ser estudado. É necessário esclarecer se há uma mutação e em qual proteína ou gene.

Devemos nos preocupar?

Motivo para preocupação existe, porque todo vírus, mesmo que não mate, causa danos. Se ele causa morte, a preocupação é maior, especialmente com as pessoas imunossuprimidas.

O que se pode dizer sobre a relação entre febre oropouche e microcefalia?

Há duas questões que estão sendo investigadas no Instituto Evandro Chagas e no Ministério da Saúde. Uma delas envolve casos de microcefalia atuais que têm sido enviados para o instituto para diagnóstico. A outra são estudos retrospectivos com amostras biológicas de casos de microcefalia que resultaram negativas para zika durante a epidemia da doença.

Tivemos dezenas de casos em que os exames para zika e outros agentes causadores de microcefalia, como toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes simples, foram negativos. Estamos investigando esse grupo de crianças e mães com abortamentos e mortes neonatais para verificar a presença do vírus oropouche e de outros vírus.

O ministério já está ciente de que pelo menos quatro casos de crianças que tinham anticorpos para o vírus oropouche em 2015 (e morreram naquele ano) foram encontrados. Esses casos são diagnosticados de forma presuntiva, indicando que a microcefalia pode ter sido causada pelo oropouche, mas ainda não conseguimos demonstrar definitivamente, e os exames estão sendo feitos.

Pedro Vasconcelos, pesquisador do Instituto Evandro Chagas Foto: Kelvin Souza/IEC

E quanto à subnotificação e confusão diagnóstica com a dengue? É possível que tenhamos mais casos do que imaginamos?

Muitos diagnósticos de dengue são clínicos em vez de laboratoriais. Isso significa que alguns casos suspeitos de dengue podem, na verdade, ser causados por vírus como oropouche, chikungunya, zika ou outras doenças virais.

Nos casos fatais, geralmente há coleta de amostras para diagnóstico laboratorial, o que torna mais difícil a presença de um agente viral não identificado. No entanto, não é impossível, especialmente se o diagnóstico não incluir outros vírus como zika ou chikungunya.

O Ministério da Saúde exige a notificação de quase todos os agravos virais, e isso está sendo feito. No entanto, muitos Estados enfrentam limitações no diagnóstico sorológico de vírus zoonóticos. A maioria dos laboratórios centrais não tem os reagentes necessários para esse diagnóstico, devido à falta de disponibilidade no mercado, e o Instituto Evandro Chagas, responsável por grande parte dos testes sorológicos, inclusive produzindo os reagentes, tem capacidade limitada.

Embora muitos laboratórios se concentrem em testes moleculares, como o PCR em tempo real, que podem identificar agentes conhecidos e desconhecidos, o custo e a complexidade desses testes tornam inviável analisar todas as amostras, especialmente durante uma epidemia.

Por isso, é fundamental melhorar o diagnóstico laboratorial para vírus como o oropouche e outros arbovírus, ampliando a capacidade dos laboratórios para realizar testes sorológicos, além dos moleculares.

Como o Brasil deve se preparar para o possível aumento de casos?

As mesmas medidas preconizadas para o combate ao Aedes aegypti também são eficazes contra o maruim.

A principal ação, e que tem se mostrado ineficaz para combater a dengue, é destruir os focos do transmissor. Essa deveria ser a principal atividade.

Do outro lado, temos a medida preventiva, fora do controle vetorial, que seria o desenvolvimento de vacinas.

Aqui no Brasil acredito que não temos nada em desenvolvimento. Mas nos Estados Unidos há universidades com estudos sendo desenvolvidos. É um caminho a ser seguido.

Desenvolver uma vacina contra o vírus oropouche é importante para que, daqui a dois ou três anos, possamos utilizá-la para prevenir surtos em maior escala do que estamos enfrentando hoje.

A febre oropouche, doença que já soma mais de 7 mil casos e provocou duas mortes no Brasil em 2024, apresenta um potencial significativo de se espalhar não apenas pelo País, mas por toda a América do Sul. O alerta é de Pedro Vasconcelos, pesquisador emérito do Instituto Evandro Chagas (IEC), órgão vinculado ao Ministério da Saúde que identificou anticorpos contra o vírus em recém-nascidos com microcefalia.

Vasconcelos também é professor de Patologia na Universidade do Estado do Pará (UEPA) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Viroses Emergentes e Reemergentes (INCT - VER). Em entrevista ao Estadão, ele destaca que mudanças climáticas, desmatamento e migrações humanas podem estar por trás da propagação do vírus.

Existe o risco de a febre oropouche se disseminar?

A disseminação depende de muitos fatores, incluindo se o vírus vai se adaptar para ser transmitido por vetores diferentes. Mas, com base na experiência do Instituto Evandro Chagas, que estudou mais de 40 epidemias, vejo um risco considerável de que o vírus possa ter um potencial de transmissão enorme no Brasil e, provavelmente, na América do Sul, envolvendo todos os países da Pan-Amazônia.

Vivemos em um mundo com mudanças climáticas, desmatamento e migrações humanas em quantidades nunca vistas. Tudo isso facilita a movimentação dos vírus.

Há, porém, uma questão que pode dificultar a disseminação nos mesmos moldes que o zika e o chikungunya: o modo de transmissão. O maruim (vetor da doença) geralmente ocorre em agrovilas, bairros recém-construídos e áreas recém-desmatadas. É diferente do Aedes aegypti (que se dissemina mais facilmente em centros urbanos, onde há mais residências).

Então, se o vírus continuar sendo transmitido pelo maruim, podemos ter epidemias, como tem ocorrido, mas talvez não atinjam o nível que o Aedes consegue com dengue, zika e chikungunya.

A pergunta que precisa ser feita a partir de agora é: será que o vírus se adaptou a outros transmissores, como o Aedes aegypti e o Aedes albopictus? Ou tivemos movimentos migratórios que levaram o vírus de um lado para outro?

O aumento de casos pode ser atribuído a essas mudanças (adaptação dos mosquitos, desmatamento e crise climática) ou é resultado da maior disponibilidade de testes para diagnóstico?

É uma somatória de fatores. Temos um melhor diagnóstico, principalmente molecular, em que um mesmo aparelho consegue diagnosticar milhares de vírus diferentes, mas também há a possibilidade de dispersão.

Nunca tivemos uma dispersão como neste ano. Os casos começaram em Rondônia, Roraima, Acre, Amazonas, mas agora vemos grande parte do País com transmissão do vírus.

Já tínhamos feito diagnóstico, a partir de 2008, em macacos em Minas Gerais. Posteriormente, ainda em Minas, em 2012, houve várias mortes de macacos. Tivemos casos também em Goiás. Portanto, a dispersão do vírus para o Sudeste já tinha ocorrido, assim como para o Centro-Oeste.

Nunca tivemos uma dispersão como neste ano.

Pedro Vasconcelos

Mas, com exceção do Maranhão, que é limítrofe da Amazônia, não tínhamos surtos na região Nordeste. O clima e a cobertura vegetal são muito diferentes dos da Amazônia e da Mata Atlântica. É curioso, para dizer o mínimo, o que estamos observando em Pernambuco, na Bahia etc.

O movimento populacional no Brasil é alto, então a possibilidade de pessoas em fase virêmica (primeiros dias após o início dos sintomas) ou em período de incubação carregarem o vírus para outros lugares é muito grande. Foi assim com a dengue, chikungunya e zika e provavelmente foi assim que o oropouche chegou ao Nordeste.

Onde o maruim é encontrado? Ele pode migrar para a zona urbana?

O maruim geralmente é encontrado em áreas onde detritos orgânicos, especialmente de frutas, se acumulam, como regiões com plantação de banana, cupuaçu ou cacau.

Geralmente não vemos isso nas cidades, a não ser em regiões periféricas, onde as pessoas têm plantações no seu quintal, ou em plantações robustas para uso comercial.

Então, ele é diferente do Aedes aegypti, que prefere águas limpas e claras, próximas às residências.

Por isso é muito difícil dizer que haverá um aumento explosivo da transmissão. Mas o vírus pode sofrer uma mutação que permita sua adaptação a mosquitos da área urbana. Temos uma suspeita de que essa situação possa ocorrer no futuro, assim como ocorreu com outros vírus.

As primeiras mortes por febre oropouche são casos isolados ou indicam que a doença pode ser mais grave do que se imaginava?

Eu estudo o vírus oropouche desde o início da década de 1980 e nunca vi casos assim.

No meio das grandes epidemias na Amazônia, houve relatos de formas neurológicas mais severas do que a febre clássica causada pelo oropouche, com casos de meningite e meningoencefalite. Portanto, já se tinha um aumento de gravidade, mas nunca um registro de morte.

Eu estudo o vírus oropouche desde o início da década de 1980 e nunca vi casos assim.

Pedro Vasconcelos

Isso é completamente novo e sugere maior patogenicidade, virulência e adaptabilidade do vírus para causar quadros severos em humanos. É algo que precisa ser estudado. É necessário esclarecer se há uma mutação e em qual proteína ou gene.

Devemos nos preocupar?

Motivo para preocupação existe, porque todo vírus, mesmo que não mate, causa danos. Se ele causa morte, a preocupação é maior, especialmente com as pessoas imunossuprimidas.

O que se pode dizer sobre a relação entre febre oropouche e microcefalia?

Há duas questões que estão sendo investigadas no Instituto Evandro Chagas e no Ministério da Saúde. Uma delas envolve casos de microcefalia atuais que têm sido enviados para o instituto para diagnóstico. A outra são estudos retrospectivos com amostras biológicas de casos de microcefalia que resultaram negativas para zika durante a epidemia da doença.

Tivemos dezenas de casos em que os exames para zika e outros agentes causadores de microcefalia, como toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes simples, foram negativos. Estamos investigando esse grupo de crianças e mães com abortamentos e mortes neonatais para verificar a presença do vírus oropouche e de outros vírus.

O ministério já está ciente de que pelo menos quatro casos de crianças que tinham anticorpos para o vírus oropouche em 2015 (e morreram naquele ano) foram encontrados. Esses casos são diagnosticados de forma presuntiva, indicando que a microcefalia pode ter sido causada pelo oropouche, mas ainda não conseguimos demonstrar definitivamente, e os exames estão sendo feitos.

Pedro Vasconcelos, pesquisador do Instituto Evandro Chagas Foto: Kelvin Souza/IEC

E quanto à subnotificação e confusão diagnóstica com a dengue? É possível que tenhamos mais casos do que imaginamos?

Muitos diagnósticos de dengue são clínicos em vez de laboratoriais. Isso significa que alguns casos suspeitos de dengue podem, na verdade, ser causados por vírus como oropouche, chikungunya, zika ou outras doenças virais.

Nos casos fatais, geralmente há coleta de amostras para diagnóstico laboratorial, o que torna mais difícil a presença de um agente viral não identificado. No entanto, não é impossível, especialmente se o diagnóstico não incluir outros vírus como zika ou chikungunya.

O Ministério da Saúde exige a notificação de quase todos os agravos virais, e isso está sendo feito. No entanto, muitos Estados enfrentam limitações no diagnóstico sorológico de vírus zoonóticos. A maioria dos laboratórios centrais não tem os reagentes necessários para esse diagnóstico, devido à falta de disponibilidade no mercado, e o Instituto Evandro Chagas, responsável por grande parte dos testes sorológicos, inclusive produzindo os reagentes, tem capacidade limitada.

Embora muitos laboratórios se concentrem em testes moleculares, como o PCR em tempo real, que podem identificar agentes conhecidos e desconhecidos, o custo e a complexidade desses testes tornam inviável analisar todas as amostras, especialmente durante uma epidemia.

Por isso, é fundamental melhorar o diagnóstico laboratorial para vírus como o oropouche e outros arbovírus, ampliando a capacidade dos laboratórios para realizar testes sorológicos, além dos moleculares.

Como o Brasil deve se preparar para o possível aumento de casos?

As mesmas medidas preconizadas para o combate ao Aedes aegypti também são eficazes contra o maruim.

A principal ação, e que tem se mostrado ineficaz para combater a dengue, é destruir os focos do transmissor. Essa deveria ser a principal atividade.

Do outro lado, temos a medida preventiva, fora do controle vetorial, que seria o desenvolvimento de vacinas.

Aqui no Brasil acredito que não temos nada em desenvolvimento. Mas nos Estados Unidos há universidades com estudos sendo desenvolvidos. É um caminho a ser seguido.

Desenvolver uma vacina contra o vírus oropouche é importante para que, daqui a dois ou três anos, possamos utilizá-la para prevenir surtos em maior escala do que estamos enfrentando hoje.

A febre oropouche, doença que já soma mais de 7 mil casos e provocou duas mortes no Brasil em 2024, apresenta um potencial significativo de se espalhar não apenas pelo País, mas por toda a América do Sul. O alerta é de Pedro Vasconcelos, pesquisador emérito do Instituto Evandro Chagas (IEC), órgão vinculado ao Ministério da Saúde que identificou anticorpos contra o vírus em recém-nascidos com microcefalia.

Vasconcelos também é professor de Patologia na Universidade do Estado do Pará (UEPA) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Viroses Emergentes e Reemergentes (INCT - VER). Em entrevista ao Estadão, ele destaca que mudanças climáticas, desmatamento e migrações humanas podem estar por trás da propagação do vírus.

Existe o risco de a febre oropouche se disseminar?

A disseminação depende de muitos fatores, incluindo se o vírus vai se adaptar para ser transmitido por vetores diferentes. Mas, com base na experiência do Instituto Evandro Chagas, que estudou mais de 40 epidemias, vejo um risco considerável de que o vírus possa ter um potencial de transmissão enorme no Brasil e, provavelmente, na América do Sul, envolvendo todos os países da Pan-Amazônia.

Vivemos em um mundo com mudanças climáticas, desmatamento e migrações humanas em quantidades nunca vistas. Tudo isso facilita a movimentação dos vírus.

Há, porém, uma questão que pode dificultar a disseminação nos mesmos moldes que o zika e o chikungunya: o modo de transmissão. O maruim (vetor da doença) geralmente ocorre em agrovilas, bairros recém-construídos e áreas recém-desmatadas. É diferente do Aedes aegypti (que se dissemina mais facilmente em centros urbanos, onde há mais residências).

Então, se o vírus continuar sendo transmitido pelo maruim, podemos ter epidemias, como tem ocorrido, mas talvez não atinjam o nível que o Aedes consegue com dengue, zika e chikungunya.

A pergunta que precisa ser feita a partir de agora é: será que o vírus se adaptou a outros transmissores, como o Aedes aegypti e o Aedes albopictus? Ou tivemos movimentos migratórios que levaram o vírus de um lado para outro?

O aumento de casos pode ser atribuído a essas mudanças (adaptação dos mosquitos, desmatamento e crise climática) ou é resultado da maior disponibilidade de testes para diagnóstico?

É uma somatória de fatores. Temos um melhor diagnóstico, principalmente molecular, em que um mesmo aparelho consegue diagnosticar milhares de vírus diferentes, mas também há a possibilidade de dispersão.

Nunca tivemos uma dispersão como neste ano. Os casos começaram em Rondônia, Roraima, Acre, Amazonas, mas agora vemos grande parte do País com transmissão do vírus.

Já tínhamos feito diagnóstico, a partir de 2008, em macacos em Minas Gerais. Posteriormente, ainda em Minas, em 2012, houve várias mortes de macacos. Tivemos casos também em Goiás. Portanto, a dispersão do vírus para o Sudeste já tinha ocorrido, assim como para o Centro-Oeste.

Nunca tivemos uma dispersão como neste ano.

Pedro Vasconcelos

Mas, com exceção do Maranhão, que é limítrofe da Amazônia, não tínhamos surtos na região Nordeste. O clima e a cobertura vegetal são muito diferentes dos da Amazônia e da Mata Atlântica. É curioso, para dizer o mínimo, o que estamos observando em Pernambuco, na Bahia etc.

O movimento populacional no Brasil é alto, então a possibilidade de pessoas em fase virêmica (primeiros dias após o início dos sintomas) ou em período de incubação carregarem o vírus para outros lugares é muito grande. Foi assim com a dengue, chikungunya e zika e provavelmente foi assim que o oropouche chegou ao Nordeste.

Onde o maruim é encontrado? Ele pode migrar para a zona urbana?

O maruim geralmente é encontrado em áreas onde detritos orgânicos, especialmente de frutas, se acumulam, como regiões com plantação de banana, cupuaçu ou cacau.

Geralmente não vemos isso nas cidades, a não ser em regiões periféricas, onde as pessoas têm plantações no seu quintal, ou em plantações robustas para uso comercial.

Então, ele é diferente do Aedes aegypti, que prefere águas limpas e claras, próximas às residências.

Por isso é muito difícil dizer que haverá um aumento explosivo da transmissão. Mas o vírus pode sofrer uma mutação que permita sua adaptação a mosquitos da área urbana. Temos uma suspeita de que essa situação possa ocorrer no futuro, assim como ocorreu com outros vírus.

As primeiras mortes por febre oropouche são casos isolados ou indicam que a doença pode ser mais grave do que se imaginava?

Eu estudo o vírus oropouche desde o início da década de 1980 e nunca vi casos assim.

No meio das grandes epidemias na Amazônia, houve relatos de formas neurológicas mais severas do que a febre clássica causada pelo oropouche, com casos de meningite e meningoencefalite. Portanto, já se tinha um aumento de gravidade, mas nunca um registro de morte.

Eu estudo o vírus oropouche desde o início da década de 1980 e nunca vi casos assim.

Pedro Vasconcelos

Isso é completamente novo e sugere maior patogenicidade, virulência e adaptabilidade do vírus para causar quadros severos em humanos. É algo que precisa ser estudado. É necessário esclarecer se há uma mutação e em qual proteína ou gene.

Devemos nos preocupar?

Motivo para preocupação existe, porque todo vírus, mesmo que não mate, causa danos. Se ele causa morte, a preocupação é maior, especialmente com as pessoas imunossuprimidas.

O que se pode dizer sobre a relação entre febre oropouche e microcefalia?

Há duas questões que estão sendo investigadas no Instituto Evandro Chagas e no Ministério da Saúde. Uma delas envolve casos de microcefalia atuais que têm sido enviados para o instituto para diagnóstico. A outra são estudos retrospectivos com amostras biológicas de casos de microcefalia que resultaram negativas para zika durante a epidemia da doença.

Tivemos dezenas de casos em que os exames para zika e outros agentes causadores de microcefalia, como toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes simples, foram negativos. Estamos investigando esse grupo de crianças e mães com abortamentos e mortes neonatais para verificar a presença do vírus oropouche e de outros vírus.

O ministério já está ciente de que pelo menos quatro casos de crianças que tinham anticorpos para o vírus oropouche em 2015 (e morreram naquele ano) foram encontrados. Esses casos são diagnosticados de forma presuntiva, indicando que a microcefalia pode ter sido causada pelo oropouche, mas ainda não conseguimos demonstrar definitivamente, e os exames estão sendo feitos.

Pedro Vasconcelos, pesquisador do Instituto Evandro Chagas Foto: Kelvin Souza/IEC

E quanto à subnotificação e confusão diagnóstica com a dengue? É possível que tenhamos mais casos do que imaginamos?

Muitos diagnósticos de dengue são clínicos em vez de laboratoriais. Isso significa que alguns casos suspeitos de dengue podem, na verdade, ser causados por vírus como oropouche, chikungunya, zika ou outras doenças virais.

Nos casos fatais, geralmente há coleta de amostras para diagnóstico laboratorial, o que torna mais difícil a presença de um agente viral não identificado. No entanto, não é impossível, especialmente se o diagnóstico não incluir outros vírus como zika ou chikungunya.

O Ministério da Saúde exige a notificação de quase todos os agravos virais, e isso está sendo feito. No entanto, muitos Estados enfrentam limitações no diagnóstico sorológico de vírus zoonóticos. A maioria dos laboratórios centrais não tem os reagentes necessários para esse diagnóstico, devido à falta de disponibilidade no mercado, e o Instituto Evandro Chagas, responsável por grande parte dos testes sorológicos, inclusive produzindo os reagentes, tem capacidade limitada.

Embora muitos laboratórios se concentrem em testes moleculares, como o PCR em tempo real, que podem identificar agentes conhecidos e desconhecidos, o custo e a complexidade desses testes tornam inviável analisar todas as amostras, especialmente durante uma epidemia.

Por isso, é fundamental melhorar o diagnóstico laboratorial para vírus como o oropouche e outros arbovírus, ampliando a capacidade dos laboratórios para realizar testes sorológicos, além dos moleculares.

Como o Brasil deve se preparar para o possível aumento de casos?

As mesmas medidas preconizadas para o combate ao Aedes aegypti também são eficazes contra o maruim.

A principal ação, e que tem se mostrado ineficaz para combater a dengue, é destruir os focos do transmissor. Essa deveria ser a principal atividade.

Do outro lado, temos a medida preventiva, fora do controle vetorial, que seria o desenvolvimento de vacinas.

Aqui no Brasil acredito que não temos nada em desenvolvimento. Mas nos Estados Unidos há universidades com estudos sendo desenvolvidos. É um caminho a ser seguido.

Desenvolver uma vacina contra o vírus oropouche é importante para que, daqui a dois ou três anos, possamos utilizá-la para prevenir surtos em maior escala do que estamos enfrentando hoje.

A febre oropouche, doença que já soma mais de 7 mil casos e provocou duas mortes no Brasil em 2024, apresenta um potencial significativo de se espalhar não apenas pelo País, mas por toda a América do Sul. O alerta é de Pedro Vasconcelos, pesquisador emérito do Instituto Evandro Chagas (IEC), órgão vinculado ao Ministério da Saúde que identificou anticorpos contra o vírus em recém-nascidos com microcefalia.

Vasconcelos também é professor de Patologia na Universidade do Estado do Pará (UEPA) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Viroses Emergentes e Reemergentes (INCT - VER). Em entrevista ao Estadão, ele destaca que mudanças climáticas, desmatamento e migrações humanas podem estar por trás da propagação do vírus.

Existe o risco de a febre oropouche se disseminar?

A disseminação depende de muitos fatores, incluindo se o vírus vai se adaptar para ser transmitido por vetores diferentes. Mas, com base na experiência do Instituto Evandro Chagas, que estudou mais de 40 epidemias, vejo um risco considerável de que o vírus possa ter um potencial de transmissão enorme no Brasil e, provavelmente, na América do Sul, envolvendo todos os países da Pan-Amazônia.

Vivemos em um mundo com mudanças climáticas, desmatamento e migrações humanas em quantidades nunca vistas. Tudo isso facilita a movimentação dos vírus.

Há, porém, uma questão que pode dificultar a disseminação nos mesmos moldes que o zika e o chikungunya: o modo de transmissão. O maruim (vetor da doença) geralmente ocorre em agrovilas, bairros recém-construídos e áreas recém-desmatadas. É diferente do Aedes aegypti (que se dissemina mais facilmente em centros urbanos, onde há mais residências).

Então, se o vírus continuar sendo transmitido pelo maruim, podemos ter epidemias, como tem ocorrido, mas talvez não atinjam o nível que o Aedes consegue com dengue, zika e chikungunya.

A pergunta que precisa ser feita a partir de agora é: será que o vírus se adaptou a outros transmissores, como o Aedes aegypti e o Aedes albopictus? Ou tivemos movimentos migratórios que levaram o vírus de um lado para outro?

O aumento de casos pode ser atribuído a essas mudanças (adaptação dos mosquitos, desmatamento e crise climática) ou é resultado da maior disponibilidade de testes para diagnóstico?

É uma somatória de fatores. Temos um melhor diagnóstico, principalmente molecular, em que um mesmo aparelho consegue diagnosticar milhares de vírus diferentes, mas também há a possibilidade de dispersão.

Nunca tivemos uma dispersão como neste ano. Os casos começaram em Rondônia, Roraima, Acre, Amazonas, mas agora vemos grande parte do País com transmissão do vírus.

Já tínhamos feito diagnóstico, a partir de 2008, em macacos em Minas Gerais. Posteriormente, ainda em Minas, em 2012, houve várias mortes de macacos. Tivemos casos também em Goiás. Portanto, a dispersão do vírus para o Sudeste já tinha ocorrido, assim como para o Centro-Oeste.

Nunca tivemos uma dispersão como neste ano.

Pedro Vasconcelos

Mas, com exceção do Maranhão, que é limítrofe da Amazônia, não tínhamos surtos na região Nordeste. O clima e a cobertura vegetal são muito diferentes dos da Amazônia e da Mata Atlântica. É curioso, para dizer o mínimo, o que estamos observando em Pernambuco, na Bahia etc.

O movimento populacional no Brasil é alto, então a possibilidade de pessoas em fase virêmica (primeiros dias após o início dos sintomas) ou em período de incubação carregarem o vírus para outros lugares é muito grande. Foi assim com a dengue, chikungunya e zika e provavelmente foi assim que o oropouche chegou ao Nordeste.

Onde o maruim é encontrado? Ele pode migrar para a zona urbana?

O maruim geralmente é encontrado em áreas onde detritos orgânicos, especialmente de frutas, se acumulam, como regiões com plantação de banana, cupuaçu ou cacau.

Geralmente não vemos isso nas cidades, a não ser em regiões periféricas, onde as pessoas têm plantações no seu quintal, ou em plantações robustas para uso comercial.

Então, ele é diferente do Aedes aegypti, que prefere águas limpas e claras, próximas às residências.

Por isso é muito difícil dizer que haverá um aumento explosivo da transmissão. Mas o vírus pode sofrer uma mutação que permita sua adaptação a mosquitos da área urbana. Temos uma suspeita de que essa situação possa ocorrer no futuro, assim como ocorreu com outros vírus.

As primeiras mortes por febre oropouche são casos isolados ou indicam que a doença pode ser mais grave do que se imaginava?

Eu estudo o vírus oropouche desde o início da década de 1980 e nunca vi casos assim.

No meio das grandes epidemias na Amazônia, houve relatos de formas neurológicas mais severas do que a febre clássica causada pelo oropouche, com casos de meningite e meningoencefalite. Portanto, já se tinha um aumento de gravidade, mas nunca um registro de morte.

Eu estudo o vírus oropouche desde o início da década de 1980 e nunca vi casos assim.

Pedro Vasconcelos

Isso é completamente novo e sugere maior patogenicidade, virulência e adaptabilidade do vírus para causar quadros severos em humanos. É algo que precisa ser estudado. É necessário esclarecer se há uma mutação e em qual proteína ou gene.

Devemos nos preocupar?

Motivo para preocupação existe, porque todo vírus, mesmo que não mate, causa danos. Se ele causa morte, a preocupação é maior, especialmente com as pessoas imunossuprimidas.

O que se pode dizer sobre a relação entre febre oropouche e microcefalia?

Há duas questões que estão sendo investigadas no Instituto Evandro Chagas e no Ministério da Saúde. Uma delas envolve casos de microcefalia atuais que têm sido enviados para o instituto para diagnóstico. A outra são estudos retrospectivos com amostras biológicas de casos de microcefalia que resultaram negativas para zika durante a epidemia da doença.

Tivemos dezenas de casos em que os exames para zika e outros agentes causadores de microcefalia, como toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes simples, foram negativos. Estamos investigando esse grupo de crianças e mães com abortamentos e mortes neonatais para verificar a presença do vírus oropouche e de outros vírus.

O ministério já está ciente de que pelo menos quatro casos de crianças que tinham anticorpos para o vírus oropouche em 2015 (e morreram naquele ano) foram encontrados. Esses casos são diagnosticados de forma presuntiva, indicando que a microcefalia pode ter sido causada pelo oropouche, mas ainda não conseguimos demonstrar definitivamente, e os exames estão sendo feitos.

Pedro Vasconcelos, pesquisador do Instituto Evandro Chagas Foto: Kelvin Souza/IEC

E quanto à subnotificação e confusão diagnóstica com a dengue? É possível que tenhamos mais casos do que imaginamos?

Muitos diagnósticos de dengue são clínicos em vez de laboratoriais. Isso significa que alguns casos suspeitos de dengue podem, na verdade, ser causados por vírus como oropouche, chikungunya, zika ou outras doenças virais.

Nos casos fatais, geralmente há coleta de amostras para diagnóstico laboratorial, o que torna mais difícil a presença de um agente viral não identificado. No entanto, não é impossível, especialmente se o diagnóstico não incluir outros vírus como zika ou chikungunya.

O Ministério da Saúde exige a notificação de quase todos os agravos virais, e isso está sendo feito. No entanto, muitos Estados enfrentam limitações no diagnóstico sorológico de vírus zoonóticos. A maioria dos laboratórios centrais não tem os reagentes necessários para esse diagnóstico, devido à falta de disponibilidade no mercado, e o Instituto Evandro Chagas, responsável por grande parte dos testes sorológicos, inclusive produzindo os reagentes, tem capacidade limitada.

Embora muitos laboratórios se concentrem em testes moleculares, como o PCR em tempo real, que podem identificar agentes conhecidos e desconhecidos, o custo e a complexidade desses testes tornam inviável analisar todas as amostras, especialmente durante uma epidemia.

Por isso, é fundamental melhorar o diagnóstico laboratorial para vírus como o oropouche e outros arbovírus, ampliando a capacidade dos laboratórios para realizar testes sorológicos, além dos moleculares.

Como o Brasil deve se preparar para o possível aumento de casos?

As mesmas medidas preconizadas para o combate ao Aedes aegypti também são eficazes contra o maruim.

A principal ação, e que tem se mostrado ineficaz para combater a dengue, é destruir os focos do transmissor. Essa deveria ser a principal atividade.

Do outro lado, temos a medida preventiva, fora do controle vetorial, que seria o desenvolvimento de vacinas.

Aqui no Brasil acredito que não temos nada em desenvolvimento. Mas nos Estados Unidos há universidades com estudos sendo desenvolvidos. É um caminho a ser seguido.

Desenvolver uma vacina contra o vírus oropouche é importante para que, daqui a dois ou três anos, possamos utilizá-la para prevenir surtos em maior escala do que estamos enfrentando hoje.

Entrevista por Layla Shasta

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