“Comecei no clepto há duas semanas e descobri que sou mão leve. Mirtilagem de hoje foi melhor do que eu esperava”, compartilhou Juliana (nome fictício) em seu perfil no Bluesky, rede social que tem ganhado popularidade após a suspensão do X (antigo Twitter) no Brasil. Na publicação, ela exibe os itens furtados em uma única ida ao shopping, usando uma bolsa com fundo falso. Entre os objetos estão roupas, doces, maquiagens, perfumes e artigos de papelaria. “Tudo isso deu R$ 1.695,60. Já estou ansiosa pela próxima,” acrescentou.
O perfil de Juliana segue o padrão de muitos jovens envolvidos na comunidade #clepto, uma referência à cleptomania, transtorno psiquiátrico marcado por uma vontade incontrolável de furtar: a foto de perfil é um personagem de anime (animação japonesa) e, em sua descrição, ela usa emojis de rato e mirtilos, símbolos utilizados para identificar e unir aqueles que também costumam compartilhar suas “colheitas” e “mirtilagens”: furtos geralmente realizados em perfumarias, farmácias, papelarias, supermercados e lojas de departamento.
É importante destacar que, no Brasil, o furto — definido como “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” — é classificado como crime, conforme o Código Penal, e pode resultar em pena de reclusão de um a quatro anos, além de multa.
Apesar disso, a troca de informações entre os “mirtileiros” ocorre de forma pública e sem qualquer pudor, já que muitos perfis não são privados. Além de ostentar as aquisições ilegais, os participantes compartilham dicas sobre como despistar “formigas” (seguranças, no dialeto #clepto), desativar alarmes em roupas, enganar vendedores que realizam contagem de peças e evitar possíveis abordagens. Também são compartilhadas indicações de lojas consideradas fáceis de furtar, horários menos vigiados, sugestões de vestimentas para passar despercebido e tutoriais detalhados sobre o que fazer ou não em caso de flagrante, geralmente escritos por pessoas que já passaram por essa situação.
Embora a tendência não seja exclusivamente brasileira, marcando presença também em países como Espanha e Estados Unidos, as “mirtilagens” têm gerado repercussões inusitadas por aqui. Com mais de 100 mil visualizações no YouTube, uma música chamada “Clepto Girls” fala sobre as garotas do movimento, que geralmente furtam roupas e lingeries rendadas, itens da cultura japonesa (como mangás), ursos de pelúcia e produtos de skincare. Alguns itens, como objetos da Hello Kitty e brinquedos da linha Sylvanian Families, são verdadeiras tendências entre elas. “Me chamam de problema, mas quem vai julgar, se é tão fácil pegar e sair sem pagar?”, diz a letra da música, que tem inspirado coreografias no TikTok.
Ao Estadão, Camila (nome fictício) conta que o movimento #clepto começou no X (antigo Twitter). Segundo ela, antes da suspensão da rede social, os posts sobre furtos eram ainda mais frequentes, e algumas pessoas se tornaram conhecidas justamente por isso, ganhando o status de veteranos ou, em alguns casos, de “clepto mommy” (algo como “mamãe clepto”). Camila também relata que a maioria dos participantes têm entre 13 e 20 anos e não enfrenta dificuldades financeiras, pertencendo majoritariamente à classe média alta. “No meu caso, comecei a furtar depois de ver outras pessoas fazendo. Os posts me deram segurança, parecia algo fácil”, contou Camila, que preferiu não revelar sua idade, mas afirmou estar respondendo à reportagem diretamente da escola.
Alana (nome fictício), por sua vez, relata que começou a furtar aos 13 anos, pouco antes de se unir ao grupo nas redes sociais. “No começo, eu pegava uma coisinha ou outra, tipo um óleo de cabelo ou um chocolate, mas não compartilhava”. Na última foto que postou no Bluesky, no entanto, ela mostra itens de papelaria, produtos de cabelo e skincare, além de doces importados, totalizando R$ 900 em furtos. “Agora que já completei quase todos os itens da minha lista de metas, pode ser que eu pare logo, porque, no fundo, vai contra meus ideais”, conta Alana, que diz não saber se é cleptomaníaca ou não.
Questionada sobre suas motivações, ela diz que gosta de compartilhar experiências com outros “mirtileiros”, e também se diz motivada pelas “falhas no sistema capitalista”. “É um sistema bizarro que te faz pagar um valor altíssimo por um produto de qualidade boa, mas não excelente. Ou a gente rala, ou a gente furta”, afirma. Ela também informa que, apesar de não ser uma regra, a maioria dos participantes evita furtar em lojas pequenas. “Os donos dessas grandes lojas são milionários, não faz diferença para eles. Agora, nas lojas menores, nem penso em pegar nada. Sou até amiga das vendedoras”, compartilha Alana.
Cleptomania?
Apesar da comunidade fazer alusão à cleptomania, o psiquiatra forense Guido Palomba, afirma que a associação é completamente equivocada.
Ele explica que a cleptomania é um transtorno mental sério e que envolve uma perda de controle sobre os impulsos, levando o indivíduo a sentir um desejo intenso de furtar objetos, mesmo que isso cause sofrimento. “As pessoas com cleptomania têm consciência de que o furto é errado, mas lutam contra esses pensamentos e, em um determinado momento, acabam cedendo”, explica Palomba.
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Essa luta interna, de acordo com o psiquiatra, que é diretor cultural adjunto da Associação Paulista de Medicina (APM), pode ser tão desgastante que acaba gerando um sofrimento profundo, uma vez que o ato impulsivo resulta em arrependimento e culpa. Já a dinâmica observada na comunidade #clepto é diferente. Isso porque os participantes geralmente planejam suas ações, selecionando lojas, horários e elaborando listas e metas sobre aquilo que pretendem furtar.
“O que observamos nesse grupo não é uma manifestação de um transtorno mental, mas uma tentativa de imitar comportamentos associados a uma condição séria, visando benefícios pessoais e o desejo de pertencimento”, afirma Palomba. Ele também explica que, na cleptomania, os objetos furtados são os mais aleatórios e variados possíveis, não possuindo qualquer tipo de utilidade na maioria das vezes.
O psiquiatra Elton Kanomata, do Hospital Israelita Albert Einstein, complementa que pessoas diagnosticadas com cleptomania quase sempre se sentem envergonhadas, uma realidade que destoa daquelas que compartilham fotos dos furtos nas redes sociais. “Essas publicações demonstram a ausência de qualquer sentimento de culpa ou vergonha. Na verdade, há uma exaltação e até uma hierarquia, na qual aqueles que furtam mais se tornam mais evidentes. Tudo isso reflete aspectos bem divergentes do conceito de transtorno mental”, destaca Kanomata.
Para o especialista, essa situação acarreta um risco significativo de banalização e reforça o estigma já associado à doença. Como resultado, pessoas que realmente sofrem com o transtorno acabam sendo injustamente rotuladas como pessoas de má-fé, um preconceito que ainda precisa ser desconstruído. “A cleptomania já é uma condição pouco compreendida, e movimentos como esses nas redes sociais só agravam o problema. Quem de fato convive com o transtorno torna-se ainda mais vulnerável ao julgamento, o que dificulta a busca por ajuda médica”, ressalta o médico.
Busca por pertencimento
A discussão sobre o movimento #clepto se torna ainda mais complexa quando consideramos o conceito de groupthink, ou pensamento de grupo, que pode ser um fator envolvido na formação dessas comunidades.
Conforme explica a psiquiatra Lilian Lucas, que é membro do Departamento de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o groupthink se caracteriza pela busca por pertencimento dentro de um grupo ou movimento, onde a harmonia existente nas trocas entre os participantes prevalece sobre a crítica e o questionamento, podendo resultar na normalização de ações desviantes, como o furto.
“Nesse contexto, especialmente entre os mais jovens, que estão em fase de formação da identidade, há uma tendência a desenvolver uma moralidade coletiva que, em outras situações, seria vista como errada. Isso fica evidente em discursos como ‘estamos apenas tirando dos mais ricos’. Vão se criando mecanismos para justificar o comportamento e se conectar com pessoas que pensam da mesma forma”, observa Lilian, que enfatiza o papel amplificador das redes sociais quando se trata da formação desse tipo de comunidade.
A psiquiatra também ressalta a questão da autoestima — particularmente sensível durante a adolescência — como um fator que pode influenciar certos comportamentos online, onde até mesmo furtos se tornam uma maneira de atrair visualizações, curtidas e popularidade.
“Além disso, estamos falando de uma fase de transição conhecida como ‘rito de passagem’, em que os adolescentes, ao buscar mais independência e autoafirmação, tendem a desafiar as regras. Tudo isso torna o uso das redes sociais, frequentemente desprovido de moderação e fiscalização externa, um risco particular para os mais jovens”, aponta a médica.
Procurada pelo Estadão, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que “não há registros desse tipo de crime junto à Polícia Civil, que iniciou uma investigação preliminar por meio do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC)”.
A reportagem também solicitou um posicionamento do Bluesky, mas, até o momento, não houve resposta.