O Ministério da Saúde atendeu somente um de cada cinco pedidos dos Estados por recursos extras para o custeio de cirurgias de quadril que constavam nas filas prioritárias do SUS em 2023.
De acordo com o próprio governo, são 40 mil pessoas que esperam por esse procedimento, das quais 8.346 estavam em listas prioritárias enviadas pelas unidades da federação ao ministério no ano passado como requisito para receberem um repasse extra por meio do Programa Nacional de Redução de Filas (PNRF). O ministério, no entanto, autorizou a verba adicional para a realização de apenas 1.807 (21,6%) dessas cirurgias, segundo levantamento feito pelo Estadão.
Embora essas 8.346 operações de quadril representem menos de 1% do total de procedimentos na fila prioritária do SUS, que tem cerca de 1 milhão de pessoas, tal cirurgia ganhou destaque após ser mencionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em vídeo publicado em suas redes sociais no último sábado, 30, no qual ele contou a própria experiência ao passar pela operação - feita no Hospital Sírio-Libanês - e afirmou que cobraria a ministra Nísia Trindade para acelerar a fila desse procedimento. “Não é possível as pessoas ficarem com dores como eu fiquei.”
Questionado, o Ministério da Saúde afirmou que o Programa Nacional de Redução de Filas possibilitou, com investimento de R$ 1,8 bilhão, a realização de 650 mil cirurgias eletivas em um ano, superando em 35% a meta inicial do governo e reduzindo em 65% a lista de espera. Sobre as cirurgias de quadril, a pasta disse que quase 4 mil operações do tipo estão previstas, mas que a alocação de recursos é baseada nas necessidades específicas de cada Estado. A pasta, porém, não explicou por que não atendeu a maior parte dos pedidos estaduais de recursos extras para os mais de 8 mil procedimentos de quadril listados (leia mais abaixo).
O PNRF foi lançado no início do ano passado pela gestão Lula como um grande esforço para reduzir as imensas filas do SUS, problema histórico que se agravou com o represamento de procedimentos eletivos ocorrido durante a pandemia de covid-19, quando os esforços do sistema de saúde estavam concentrados no combate à emergência sanitária. Na apresentação do programa, o ministério anunciou um primeiro repasse de R$ 600 milhões aos Estados para custear cirurgias que estavam na fila do SUS.
A verba é adicional ao repasse já enviado rotineiramente aos Estados para custear serviços de média e alta complexidade e vem sendo repassada desde o ano passado em programa ainda vigente. Para ter acesso aos repasses extras, as unidades da federação tiveram que informar, em planos estaduais, o tamanho da demanda reprimida prioritária para a qual gostariam de receber o aporte.
O levantamento feito pelo Estadão considerou justamente os dados informados nesses planos estaduais. Para calcular o tamanho da fila prioritária das cirurgias de quadril, a reportagem considerou as artroplastias de quadril e as artrodeses coxofemorais.
O caso da cirurgia do quadril ilustra alguns dos problemas do PNRF, que ainda caminha a passos lentos passado um ano de seu lançamento. Uma das políticas mais destacadas pelo presidente Lula e promessa de campanha, o programa não conseguiu atender toda a fila prioritária de cirurgias informadas pelos Estados e tem esbarrado em outros gargalos, como falta de estrutura das redes para ampliação do número de procedimentos, dificuldade dos pacientes em conseguir realizar os exames e consultas pré-operatórios para avaliar risco cirúrgico e carência de médicos especialistas.
Do total de cirurgias eletivas prioritárias das filas informadas nos planos estaduais (cerca de 1 milhão de procedimentos), só 65% foram viabilizadas pelo repasse federal desde o ano passado, com o agravante de que essas filas nem sequer correspondiam à totalidade dos pacientes à espera de um procedimento no SUS.
Isso porque, como o recurso federal nesse programa era limitado, alguns Estados informaram somente os procedimentos prioritários para os quais acreditavam ser possível receber o aporte, e não todos os pacientes na fila. A Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, por exemplo, listou em seu plano cerca de 111 mil cirurgias, mas explicou ao Estadão que “a demanda reprimida informada ao Ministério da Saúde representa uma parte prioritária das cirurgias represadas, ou seja, as com maior fila identificada na ocasião da elaboração do plano”.
Passado um ano, mesmo com o repasse extra federal que possibilitou a realização de cerca de 74 mil operações eletivas no Estado e a realização de mutirões com recursos estaduais que permitiram a execução de 326 mil cirurgias, São Paulo ainda tem cerca de 200 mil pacientes na fila por cirurgias eletivas.
Há ainda filas paralelas dos municípios e de alguns hospitais de referência. Na prática, portanto, o ministério não sabe quantos pacientes estão na fila do SUS nem o quanto conseguiu reduzir da demanda total.
“Poucos Estados têm controle real da fila. Essa fila que colocamos nos planos é uma fila através da informação do município, mas são dados muito pouco acertados. A fila é maior do que essa com toda certeza”, explica o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Fábio Baccheretti Vitor.
Além disso, a segunda fase do PNRF, que distribuiria recursos para enfrentar as filas de exames e consultas especializadas e que havia sido prometida para o segundo semestre do ano passado, ainda não saiu do papel. Após a pressão sofrida pelo Ministério da Saúde para “mostrar serviço” após as crises da dengue, Yanomami e dos hospitais federais do Rio, a pasta deverá anunciar na próxima segunda-feira, com a presença de Lula, um programa para enfrentar a demanda reprimidade de exames e consultas.
Fonte interna do ministério afirmou, sob anonimato, que, em encontro privado com Nísia após a reunião ministerial, Lula cobrou ações de cunho popular, com referência direta à questão das filas do SUS, um gargalo que, se amenizado, tem forte apelo na popularidade do presidente.
“Foi uma exigência para que a ministra agisse nessa frente e desse celeridade ao processo”, disse a fonte. O vídeo publicado por Lula falando sobre a cirurgia de quadril já é considerado um desdobramento dessa conversa. “Eu vou conversar com a nossa ministra da Saúde na perspectiva de fazer com que essa fila possa andar”, afirmou Lula na publicação.
A fila de 40 mil pessoas à espera de uma cirurgia de quadril foi informada pelo próprio presidente no vídeo. No ano passado, o ministério até conseguiu elevar o número de procedimentos do tipo feitos, mas o volume está aquém da necessidade, considerando o tamanho da fila informada por Lula.
Somando as cirurgias feitas com repasses extras e com o custeio de rotina, o SUS fez 13.993 cirurgias de quadril em 2023, número 13,2% maior do que o realizado em 2022, último ano de mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, e 22,7% maior do que o de 2019, segundo dados do portal Datasus. No entanto, mesmo se ninguém entrasse na fila e o ritmo de cirurgias do governo Lula fosse mantido, o SUS levaria pelo menos três anos para zerar a espera.
Idosa espera cirurgia de quadril há 2 anos e meio
Um dos brasileiros que sabe bem o impacto das dores no quadril citadas pelo presidente é a idosa Cleude Pereira Alves, de 76 anos. Moradora de Osasco, na Grande São Paulo, ela aguarda uma cirurgia de quadril há dois anos e meio.
O pedido médico com a indicação da operação foi feito em setembro de 2021, após a paciente procurar ajuda especializada com dores no quadril e nas pernas, e o profissional diagnosticar fraturas na região que seriam decorrentes de uma queda. “Logo após essa queda, eu não percebi nenhum problema, mas, com o tempo, foi piorando a dor e, quando o médico viu o exame, ele disse que meu quadril estava destruído e que eu ia precisar operar”, conta. “Ele colocou urgente no pedido, mas não adiantou nada.”
Desde então, as dores de Cleude vêm piorando e ela tem cada vez mais limitações nas atividades do dia a dia. “Hoje só consigo andar com bengala e já não faço muita coisa. Eu gostava muito de fazer caminhada, fazia exercícios. Hoje, é como se eu não prestasse para nada”, lamenta a paciente.
O sobrinho de Cleude chegou a fazer uma reclamação na Ouvidoria da Prefeitura de Osasco em janeiro deste ano diante da demora. Recebeu como resposta que “cirurgias de alta complexidade são competência dos Estados” e que a paciente foi inserida na fila estadual. Afirmou ainda “não ser possível assumir demandas pertencentes” ao governo estadual visto que o repasse orçamentário do SUS não é “suficiente para as necessidades obrigatórias”. Boa parte desse repasse vem do Ministério da Saúde.
O Estadão procurou a prefeitura para questionar o motivo da demora, mas o órgão repetiu o mesmo argumento dado à família, de que a idosa estava na fila estadual. Disse ainda que, durante a pandemia de covid-19, “as cirurgias eletivas foram suspensas, priorizando-se integralmente o combate à emergência sanitária”, ocasionando um “represamento significativo nas filas de espera por procedimentos”.
A Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, por sua vez, afirmou que a paciente foi inserida na central de regulação de vagas (Cross) em janeiro de 2024 e que será atendida no dia 15 de maio no Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do Hospital das Clínicas.
Adair Gonçalves da Silva, de 74 anos, foi vítima do problema histórico das filas do SUS em 2012 e enfrenta uma nova espera angustiante neste ano. Há 12 anos, ele precisava realizar uma cirurgia nos olhos para tratar um quadro de degeneração, mas a demora na execução do procedimento fez com ele perdesse a visão.
Na época, a família chegou a entrar na Justiça para acelerar o processo, mas o idoso precisava fazer duas cirurgias, fez só a primeira e, quando o SUS finalmente o convocou para a realização da segunda, ele não estava mais enxergando.
Agora, ele descobriu um câncer no esôfago e aguarda, desde janeiro, a cirurgia de retirada do tumor. “Fico preocupada e me sinto impotente diante da situação. Vendo meu pai idoso, deficiente e agora com um câncer que pode ser tratável, dependendo de uma decisão do Estado em priorizar ou não o caso dele”, disse Bete Gonçalves, filha de Adair.
Programa de redução de filas está sob comando de secretaria em crise
O programa de redução de filas é tocado no âmbito da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde (Saes), que foi alvo de trocas recentes, após a crise nos hospitais federais do Rio de Janeiro. No mês passado, em meio à tensão que fragilizou sua segurança no cargo, a ministra Nísia Trindade exonerou o secretário Helvécio Magalhães, que cuidava do tema.
A gestora chegou a levar uma “bronca” de Lula durante reunião ministerial devido a falhas no manejo de crises relacionadas à epidemia de dengue, emergência em território Yanomami e caos nos hospitais federais. O contexto elevou a temperatura na pasta, que passou a sofrer uma pressão ainda maior por entregas.
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Gestores afirmam que apesar dos aportes extras anunciados pelo governo federal para enfrentar o problema das filas de cirurgia (R$ 600 milhões no ano passado e R$ 1,2 bilhão neste ano) e do aumento no número de procedimentos realizados, o esforço ainda é insuficiente e há entraves relevantes.
“Hoje nós temos um gargalo muito grande: os municípios não estão tendo recurso para garantir os exames de risco cirúrgico. Estamos aguardando esse recurso para acompanhar esse crescimento (no número de cirurgias). É importante o governo federal ampliar os recursos vinculados à preparação cirúrgica”, afirma o presidente do Conass.
Os recursos para custear exames de risco cirúrgico estão inseridos no âmbito das verbas de média e alta Complexidade. Como o Estadão revelou, o governo repassou R$ 8 bilhões do Ministério da Saúde atropelando critérios técnicos e bagunçando o financiamento de cirurgias e exames. Em alguns casos, o repasse superou em mais de 1.000% a capacidade desses municípios de realizarem os procedimentos, enquanto outras redes ficaram descobertas.
Outro ponto de dificuldade enfrentado por Estados e municípios é a indisponibilidade de médicos anestesistas para realizar os procedimentos. De acordo com a pesquisa Demografia Médica no Brasil 2023, o Brasil tem uma razão de 14,46 médicos dessa especialidade para cada 100 mil habitantes. A título de comparação, a razão de ginecologistas e obstetras por 100 mil habitantes é de 41,69. Além disso, a distribuição desses médicos é desigual no território brasileiro.
“Temos uma carência desse especialista. Hoje o mercado privado também está contratando muito esses médicos. A gente vem lutando junto ao governo federal pela ampliação de vagas de residência de anestesia. Não queremos fazer apenas os procedimentos que não foram feitos na pandemia, queremos resolver esse problema histórico”, diz Vitor.
Um relatório do Ministério da Saúde elaborado em fevereiro mostra que o País realizou, no ano passado, entre março e dezembro, 3.870.518 de cirurgias eletivas. O número representa um aumento de 18% em comparação com o mesmo período de 2022.
O crescimento, no entanto, ocorreu de forma desigual entre as regiões do País. Enquanto o Centro-Oeste apresentou uma ampliação de 24%, superando a média nacional, a região Norte registrou apenas 11% de aumento. Tanto o Sudeste quanto o Nordeste tiveram um crescimento de 19% no número de cirurgias. Já a região Sul registrou 17% de alta.
Ministério afirma que reduziu em 65% fila de espera informada pelos Estados
Questionado sobre os repasses insuficientes para as cirurgias de quadril e sobre os outros gargalos do PNRF, o Ministério da Saúde afirmou que o programa “é uma estratégia inovadora da atual gestão” que já possibilitou a realização de mais de 650 mil cirurgias eletivas entre fevereiro de 2023 e fevereiro de 2024.
Ao Estadão, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, destacou, em nota enviada por sua assessoria, que o programa ultrapassou a meta estabelecida pela pasta e reduziu o número de pessoas em lista de espera. “Quando lançamos o programa, em 2023, os Estados listaram mais de um milhão de pessoas que aguardavam procedimentos eletivos em todo o País. Desde então, já realizamos mais de 650 mil cirurgias, ultrapassando em 35% nossa meta inicial (500 mil) e reduzindo em 65% a fila de espera declarada há um ano”, diz Nísia.
Ela acrescentou que os números “comprovam o sucesso do programa”. “Com recursos e incentivos de gestão adequados, é possível enfrentar o desafio de oferecer um melhor cuidado para a nossa população”, afirma.
Segundo o ministério, o número de cirurgias ambulatoriais cresceu 17,6% em relação a 2022, chegando a 8,2 milhões de procedimentos. Já as operações feitas em ambiente hospitalar tiveram alta de 23%, somando 2,6 milhões no ano passado. Para alcançar tais resultados, o ministério destaca que repassou o recurso total de R$ 600 milhões aos Estados ainda em 2023 e mais R$ 1,2 bilhão neste ano.
Sobre as cirurgias de quadril, o ministério diz que o PNRF “prevê atualmente a execução de quase 4 mil cirurgias eletivas do tipo” e que “as prioridades e quantidades de procedimentos a serem atendidos foram definidos por cada gestor de saúde, levando em consideração as realidades específicas de cada Estado e em colaboração com os gestores municipais, conforme os planos estaduais enviados” ao ministério. A pasta não explicou por que não repassou recursos para a totalidade dos mais de 8 mil procedimentos de quadril listados nos planos estaduais.
Em relação ao subdimensionamento da fila do SUS e ao desafio de o ministério não saber o real tamanho da demanda reprimida, o ministério afirmou que “a Política Nacional de Regulação estabelece que Estados e municípios realizam este gerenciamento”, mas que iniciativas como o PNRF “oferecem uma oportunidade de visão geral da espera por procedimentos em todo o País, com base nos dados informados pelos Estados”.