Os valores de uma sociedade definem, em boa medida, o comportamento das pessoas, incluindo os produtos e serviços que são oferecidos e consumidos. No caso do treinamento físico e do universo fitness, não é muito difícil perceber a importância que têm os valores estéticos. A idealização de um corpo belo, cada vez mais musculoso, hipertrofiado e “trincado” parece ser a tônica de parte significativa dos produtos oferecidos, dos suplementos consumidos, do uso de drogas com riscos sérios de efeito colaterais, e também da forma como nós nos habituamos a pensar o treinamento físico.
A musculação é uma das modalidades de treinamento mais populares entre o público geral, em especial entre adolescentes e adultos. Há não muito tempo, a musculação era vista com desconfiança e preconceito, mas hoje ela parece ter encontrado um lugar de destaque em nossa sociedade ao atender muito bem nossos ideais estéticos.
A musculação começou a se popularizar por volta dos anos 1980, com a ascensão de estrelas do fisiculturismo para o cinema, como Arnold Schwarzenegger e Lou Ferrigno. Dentro desse contexto, as pessoas começaram a treinar de forma muito semelhante aos fisiculturistas. A própria forma de pensar o treinamento de força foi importada dos fisiculturistas. As raízes da musculação que praticamos hoje em dia estão profundamente ancoradas nas necessidades competitivas desses atletas e na ideia de esculpir o corpo até chegarmos a um formato perfeito e ideal.
Ainda que a musculação que fazemos hoje tenha inúmeros e inquestionáveis benefícios à saúde e promova qualidade de vida, cumpre perguntar: por que estamos treinando como fisiculturistas? Por que estamos aplicando a mesma lógica dos fisiculturistas em nossas rotinas de treino? Por que temos nos esforçado tanto para esculpir cada músculo de nosso corpo, dando prioridade à hipertrofia e aos resultados estéticos, mesmo quando não participamos de competições de fisiculturismo?
Um princípio básico do treinamento é o da especificidade, que diz que as adaptações ou os resultados que temos quando fazemos certo tipo de treinamento são específicos àqueles estímulos. No caso da musculação, os treinos mais típicos têm como principal objetivo o aumento do tamanho dos músculos, ou hipertrofia muscular. Estamos condicionados a oferecer treinos voltados à hipertrofia para a maioria das pessoas que frequentam academia.
Esse objetivo também concentra a maior parte dos estudos científicos na área do treinamento de força, que se debruçam sobre as melhores estratégias para maximizar os ganhos de massa muscular. E aqui cabe outra pergunta: precisamos mesmo de tanta hipertrofia muscular?
A resposta rápida para essa pergunta é: não, não precisamos de tanta hipertrofia. Logo, a resposta para as perguntas que fiz anteriormente também são “não”, ou seja, não precisamos treinar como fisiculturistas, tampouco esculpir cada um de nossos músculos como fazem os fisiculturistas.
Na verdade, o excesso de foco na hipertrofia e na estética pode até nos levar a negligenciar outras importantes capacidades físicas e habilidades que deveriam ser aprimoradas, especialmente em nosso contexto atual, em que ficamos sentados e parados em boa parte de nossos dias, hábitos que levam à perda importante de função ao longo da vida.
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A ideia aqui não é, de forma alguma, defender a tese de que aumentar a força e ter hipertrofia muscular tenham importância secundária, pois sabemos que músculos fortes e saudáveis são essenciais para a saúde. A questão é se deveríamos continuar formatando nossos treinos para priorizar a hipertrofia, e muitas vezes até mesmo treinar exclusivamente para ganhar hipertrofia.
Ao fazermos isso, deixamos de lado capacidades fundamentais para nossa saúde e para tarefas do dia a dia, tais como mobilidade, flexibilidade, aptidão cardiorrespiratória, resistência muscular, velocidade, estabilidade, equilíbrio e capacidade de gerar força em movimentos similares aos que usamos em nossas vidas.
O que defendo aqui é que devemos considerar menos “a aparência que queremos para nosso corpo”, e dar mais importância para “o que queremos que nosso corpo seja capaz de fazer”. Portanto, em uma abordagem que supere o pensamento tradicional da musculação, a aparência do corpo deixa de ser o objetivo primário, e sua funcionalidade assume maior protagonismo; o treinamento voltado aos grupos musculares dá lugar ao treinamento voltado aos movimentos (por exemplo, levantar, abaixar, rotacionar, estabilizar e saltar) combinados com capacidades (força, resistência, amplitude, etc.).
Ao abandonar a visão clássica herdada dos fisiculturistas, as possibilidades de treinamento aumentam. Isso amplia os ganhos que vão além da hipertrofia e a gama de objetivos que podem ser alcançados.
Esse é o princípio que norteia métodos de treinamento funcionais. Infelizmente, o termo “treino funcional” virou sinônimo de exercícios esquisitos, muitas vezes perigosos, e frequentemente sem muito sentido. É também uma pena que muitos que dizem oferecer treinamento funcional adotem uma postura de que “esses são os treinos que funcionam”, automaticamente implicando que as demais modalidades não têm utilidade. Sabemos que isso não é verdade, pois virtualmente todo e qualquer treino funciona.
A grande questão é se continuaremos formatando treinamentos para hipertrofia para pessoas que podem se beneficiar de uma variedade maior de estímulos. Será que nós, profissionais do treinamento, iremos continuar priorizando a forma em detrimento da função?