Dos cerca de 2,5 mil pacientes que implantam um stent cardíaco todos os anos no Instituto do Coração (InCor), seu Raimundo, de 70 anos, representará um marco a partir de agora. Não porque ele tenha uma condição rara ou um quadro mais complexo do que o normal. Na verdade, o tratamento de pacientes com quadros como o dele - idosos com hipertensão e colesterol alto - faz parte da rotina diária da equipe do centro médico. O que tornou o caso de seu Raimundo singular foi ele ter sido o primeiro paciente na América do Sul a passar por uma angioplastia feita com o auxílio de inteligência artificial.
O procedimento foi realizado pela equipe de cardiologia intervencionista do InCor na manhã desta quinta-feira, 16, e acompanhado pelo Estadão. A angioplastia é um procedimento minimamente invasivo para desobstruir artérias coronárias entupidas (geralmente por placas de gordura ou calcificações).
Nela, a equipe médica insere, por meio do braço ou da virilha do paciente, um cateter que chega até o vaso cardíaco obstruído, possibilitando a colocação de um stent, um componente metálico parecido com uma pequena mola que, após ser inserido no vaso, é expandido por meio de um balão operado pelos médicos, abrindo passagem para a circulação sanguínea e reduzindo o risco de problemas cardiovasculares como o infarto.
Na maioria dos hospitais do País, a equipe usa um equipamento de raio-x para visualizar os pontos de obstrução e guiar a implantação do stent. Em alguns centros especializados, como o InCor, os médicos têm à disposição também um aparelho que consegue visualizar o interior do vaso com resolução similar à de um microscópio, método chamado de tomografia de coerência óptica.
O que a inteligência artificial faz é analisar as duas imagens conjuntamente e oferecer informações mais precisas para a tomada de decisão dos cardiologistas. “Esse algoritmo faz uma fusão das imagens de raio-x e da tomografia e identifica os locais de maior gravidade da obstrução, as características da placa, se há calcificações, as espessuras e o ângulo dessas calcificações, além de avaliar, depois da colocação do stent, se ele está corretamente expandido”, explica Carlos Campos, médico do Departamento de Cardiologia Intervencionista do InCor e um dos cardiologistas que realizou o procedimento nesta quinta.
O algoritmo funciona por meio do software Ultreon 1.0, desenvolvido pela farmacêutica americana Abbott e que recebeu registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em janeiro. A empresa fez uma parceria com o InCor para ofertar de forma gratuita a tecnologia ao centro médico com a contrapartida de que o instituto atuasse na formação de outros profissionais do Brasil e do exterior.
Na angioplastia acompanhada pela reportagem, os médicos contaram com a ajuda da inteligência artificial em três principais momentos. Primeiro, o algoritmo foi capaz de indicar os pontos específicos de calcificação das artérias. “Se o stent encontrar calcificações no caminho, ele pode não se expandir adequadamente. Como o software nos ajudou a identificá-las e elas estavam localizadas em pontos anteriores aos pontos de maior obstrução por gordura, entramos antes com um dispositivo que quebra essas calcificações para facilitar a posterior passagem do stent”, diz Campos.
Em seguida, o software calculou o melhor tamanho de stent de acordo com as obstruções identificadas - foram duas. E após a colocação do dispositivo, o algoritmo identificou pontos onde o stent não estava expandido adequadamente dentro da artéria, possibilitando que os médicos corrigissem o problema.
“Se você implantar o stent com pressão muito elevada, você pode até romper o vaso. E se você faz uma subexpansão, a chance de voltar a doença e a angina (dor no peito) é maior. Então, após o implante do stent, nós voltamos a colher as imagens tomográficas dentro das artérias e, usando o algoritmo de inteligência artificial, conseguimos deixá-lo melhor expandido, o que melhora o fluxo sanguíneo e reduz a chance de o paciente voltar a ter uma obstrução naquele local”, afirma Alexandre Abizaid, diretor do Departamento de Cardiologia Intervencionista, que também fez parte da equipe que realizou o procedimento.
“O índice ideal de expansão é de 80% a 90% da artéria. Para os nossos olhos, o stent nesse paciente estava perfeito, mas a inteligência artificial foi capaz de identificar que, em alguns trechos, o stent estava com 75% de expansão e, com isso, pudemos ir novamente com o balão naquele ponto e expandir o stent um pouco mais”, destaca Campos.
Os cardiologistas ressaltam que os médicos são capazes de fazer a identificação e análise das obstruções, mas que a inteligência artificial traz maior precisão para o procedimento. “Estudos mostram que a angioplastia feita com o auxílio da tomografia de coerência óptica e da inteligência artificial tem 30% menos risco de eventos como óbito, infarto e necessidade de outra angioplastia, em comparação ao procedimento tradicional feito apenas com imagens de raio-x”, diz Campos.
Para Roberto Kalil Filho, presidente do Conselho Diretor do InCor, a nova tecnologia, além de aprimorar o tratamento de pacientes com doença coronariana, traz ganhos para o sistema de saúde. “Quanto mais a inteligência artificial ajudar o médico, mais acurácia os métodos vão ter para o benefício do paciente. E qualquer procedimento ou avanço que você minimiza riscos e melhora o resultado, você vai ter impacto direto no sistema de saúde”, diz.
Ele afirmou que o InCor já começou a treinar nesta quinta médicos de outros Estados do País na técnica. Especialistas da Argentina, Chile e Colômbia deverão passar por capacitação no InCor no mês que vem.
Abizaid afirma que a tecnologia usada na angioplastia deverá ser oferecida para pacientes de maior complexidade, o que representa cerca de 10% dos doentes que passam pelo procedimento no InCor. Isso porque, como ela não está na lista de procedimentos custeados pelo Ministério da Saúde, o hospital precisa subsidiar o custo do procedimento. “Privilegiamos aqueles pacientes que serão mais beneficiados pelo uso da tomografia e da inteligência artificial por terem casos mais complexos, como lesões em bifurcações, com muito cálcio ou uma lesão no tronco principal da artéria coronária”, diz.