A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) anunciou nesta terça-feira, 26, novas regras para a prescrição e manipulação de implantes hormonais no Brasil. Em outubro, a agência havia proibido integralmente o uso desses dispositivos, mas, na última sexta-feira, 22, recuou parcialmente, restringindo a proibição apenas aos implantes para finalidades estéticas, popularmente conhecidos como ‘chip da beleza’.
De maneira geral, os implantes hormonais são dispositivos de silicone inseridos sob a pele – geralmente nos glúteos ou no abdômen – para liberar substâncias de forma contínua. No caso do ‘chip da beleza’, hormônios anabolizantes como testosterona, oxandrolona e gestrinona eram frequentemente prescritos com promessas de emagrecimento, ganho de massa muscular, aumento da disposição física e da libido, além de alívio de sintomas da menopausa.
Especialistas ouvidos pelo Estadão afirmam que esses dispositivos vinham sendo indicados por médicos, mesmo sem regulamentação específica, com motivações “altamente comerciais”. Essa prática foi associada a uma série de efeitos colaterais, incluindo hipertensão, dislipidemia, acidente vascular cerebral (AVC), arritmias cardíacas e alterações hormonais, como hirsutismo (crescimento excessivo de pelos) e alopecia (queda de cabelo) — fatores que, segundo a Anvisa, foram determinantes para a proibição.
Com o recuo parcial, a agência passou a permitir o uso de implantes hormonais apenas para finalidades médicas, com proibição total dos implantes para fins estéticos, ganho de massa muscular ou melhora do desempenho esportivo. Isso, contudo, deve ser feito com base nas seguintes regras:
- A prescrição deve acontecer apenas quando o médico constatar que nenhum medicamento disponível no mercado atende à necessidade específica de um paciente.
- O médico responsável pela prescrição deve emitir uma receita de controle especial, que precisa ser registrada pelas farmácias no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), plataforma desenvolvida pela Anvisa que controla a entrada e saída de medicamentos.
- O médico que for prescrever vai ter que incluir na receita o CID, ou seja, terá que apontar para qual condição de saúde está indicando o implante como tratamento, sendo que continua proibida qualquer circunstância que seja estética ou que envolva expectativas de melhora no desempenho esportivo ou ganho de massa muscular.
- A prescrição também deverá vir acompanhada de um termo de responsabilidade, documento que apresenta ao paciente todos os riscos e possíveis efeitos colaterais do implante hormonal, assegurando que ele esteja plenamente informado antes de iniciar o tratamento.
- Apenas podem ser manipulados implantes hormonais contendo insumos farmacêuticos ativos (IFA) que já tiveram eficácia e segurança avaliadas pela Anvisa.
- Qualquer efeito colateral passa a ser de notificação compulsória, para que os órgãos de saúde possam ter controle sobre o número de pessoas impactadas. A notificação deverá ser registrada no sistema Vigimed (clique aqui).
Apesar das regras, especialistas citam falta de evidências científicas
O endocrinologista Clayton Macedo, presidente do Departamento de Endocrinologia e Metabologia da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem), frisa que, embora as regras tenham sido determinadas, não existem estudos robustos que garantam a eficácia e segurança dos implantes hormonais, mesmo para finalidades médicas. “Muitos dos estudos que existem hoje têm metodologias questionáveis e foram produzidos por pessoas que têm interesse na venda desses produtos”, explica.
Segundo a ginecologista e obstetra Maria Celeste Wender, presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), o problema disso é a ausência de dados confiáveis sobre como os implantes funcionam no corpo. “Não conseguimos ter certeza se, após a colocação na gordura sob a pele, esses hormônios são liberados em uma quantidade definida, por um tempo adequado, e sem atingir concentrações no sangue que possam colocar os pacientes em risco”.
Apesar disso, para Clayton, as regras têm sua importância, já que “expressam um reconhecimento de que o uso dos implantes pode apresentar riscos à saúde”. Isso não significa, contudo, que não existam brechas para que os dispositivos sejam utilizados de forma desalinhada com os critérios estabelecidos pela agência reguladora. “Há pontos fortes nessas regras, mas, se não forem cumpridas ou fiscalizadas, perdem a finalidade”.
Macedo, que coordena a plataforma VIGICOM – Hormônios, criada para monitorar os efeitos adversos do uso indiscriminado de hormônios, considera a exigência de registrar as receitas no SNGPC como um dos pontos mais significativos. “Isso pode ampliar o controle sobre a cadeia de produção e prescrição, além de alertar para casos de abuso. Por exemplo, se um profissional estiver prescrevendo implantes em excesso para uma patologia específica, isso pode levantar suspeitas”, explica.
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Outro aspecto positivo, segundo Maria Celeste, é a obrigatoriedade de que os profissionais de saúde indiquem a condição clínica do paciente ao prescrever os implantes. Essa exigência pode aumentar a rastreabilidade e reduzir prescrições sem embasamento. “No entanto, também há risco de fraudes, como a inserção de CIDs inespecíficos. Isso é comum no mau uso de hormônios, quando, por exemplo, se justifica a prescrição de testosterona alegando sarcopenia [perda de massa muscular] em pacientes que não têm essa condição”, avalia.
Embora a regra que determina que os implantes contenham apenas substâncias registradas pela Anvisa seja aparentemente positiva, Macedo considera o texto pouco específico. “Ele é muito amplo e pode permitir o uso de substâncias questionáveis. Não é porque um componente é registrado que está livre de riscos. Sem uma lista clara de substâncias que devem ser evitadas e em quais contextos, corremos o risco de ver produtos esdrúxulos sendo utilizados”.
Outro ponto de fragilidade, na opinião dele, é a falta de critérios objetivos que justifiquem o uso dos implantes manipulados em detrimento de terapias já registradas, reconhecidas pelas sociedades médicas e com evidências científicas. Maria Celeste compartilha da mesma opinião e ressalta que, para todas as condições médicas que defensores dos implantes afirmam que esses dispositivos são necessários – como endometriose ou menopausa –, existem diversas opções no mercado que atendem à população, respaldadas por estudos científicos robustos.
“A falta de critérios dá abertura para qualquer tipo de justificativa, das mais fracas possíveis”, opina. “Se, por exemplo, a receita diz que a paciente precisa do implante por causa de endometriose, como a Anvisa vai verificar se a paciente realmente possui essa condição? Existem inúmeros tratamentos para endometriose no Brasil. Como será confirmado que o implante era a única solução?”, questiona.
A expectativa, de acordo com a ginecologista, é que a agência reguladora consiga, pelo menos, analisar as receitas emitidas. Isso pode ajudar a Anvisa a entender quantos implantes estão sendo manipulados por dia, quantos são inseridos, quem é o médico que está prescrevendo, qual é a condição pela qual ele indicou e quais substâncias aparecem naquele produto. “É uma forma de gerar dados e gerar desconfiança quando houver, por exemplo, prescrições em excesso”, explica. “Mas, para isso, é preciso que exista fiscalização. Do contrário, as regras serão apenas formalidades”.