Imposto extra sobre biscoitos, refrigerantes e salgadinhos? Especialistas em saúde defendem medida


Pesquisas engrossam corpo de evidências de que ultraprocessados favorecem o surgimento de doenças; mas tributação ainda é vista com desconfiança pela população e enfrenta entraves no legislativo

Por Valentina Bressan e Fernanda Simoneto
Atualização:

A tributação de alimentos ultraprocessados tem sido alvo de debates no Brasil e no exterior. Aumentar os impostos aplicados sobre biscoitos, salgadinhos, bebidas açucaradas, cereais matinais, pães embalados e outros produtos foi uma das pautas da Reforma Tributária, aprovada no início de julho na Câmara dos Deputados, mas a definição da taxação ainda depende de leis complementares para ser posta em prática.

Pesquisas indicam que a opinião pública ainda fica dividida frente a incertezas sobre os impactos da tributação nas contas do dia a dia. No campo científico, a divulgação de pesquisas que evidenciam os malefícios desse tipo de alimento à saúde reforça o argumento de entidades favoráveis à medida, que enfrenta resistência da indústria.

“Na última década, um conjunto robusto de evidências científicas vem mostrando a associação entre o consumo de ultraprocessados e um maior risco de desenvolver quadros de sobrepeso e obesidade e de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, câncer e até doenças mentais, como a depressão”, pontua Carlos Monteiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP). Monteiro é coautor de um estudo publicado no ano passado no American Journal of Preventive Medicine, que estimou em 57 mil o número de mortes prematuras em adultos de 30 a 69 anos relacionadas ao consumo desses produtos no Brasil, usando dados de 2019.

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Para evitar esses problemas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda uma dieta equilibrada, sem abuso de sódio, açúcares e gorduras saturadas. O problema é que a maioria dos ultraprocessados contém justamente esses nutrientes em excesso. Um estudo produzido em conjunto por pesquisadores de três universidades brasileiras e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), publicado em agosto na revista Nature, analisou mais de 9 mil itens nos supermercados, e constatou que o exagero de pelo menos um desses componentes estava presente em 97,1% dos ultraprocessados.

Em 2018, entidades da indústria de alimentos firmaram um acordo voluntário com o Ministério da Saúde com a meta de reduzir o teor de açúcar em algumas categorias de ultraprocessados como bolos, produtos lácteos, biscoitos recheados e bebidas açucaradas em 114 mil toneladas até 2022. Mas entidades como o Idec avaliam que medidas desse tipo são pouco eficientes. Segundo o Instituto, a redução não garante que o nível de açúcar nos produtos chegará a um patamar saudável, e o caráter voluntário da meta não implica em consequência econômicas ou legais no caso de descumprimento.

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Alimentos ultraprocessados costumam ter excesso de gorduras saturadas, açúcar ou sódio, compostos que aumentam o risco de doeças Foto: Freepik

Entidades defendem regulamentação

O conceito de alimentos ultraprocessados foi criado em 2009 por pesquisadores do Nupens e tem quatro grupos:

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  • Alimentos in natura ou minimamente processados: são aqueles consumidos da maneira como vêm da natureza (folhas, sementes, raízes, ovos, etc) ou que passam por algum processo mínimo de processamento, mas sem adição de ingredientes (como os grãos de feijão, que são apenas secos e embalados ou os grãos de café, que são torrados e moídos para virar pó).
  • Ingredientes culinários processados: são substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos, como prensagem, centrifugação e concentração, segundo o Nupens. É o caso do azeite obtido de azeitonas, da manteiga proveniente do leite e do açúcar vindo da cana ou da beterraba.
  • Alimentos processados: são os ingredientes do primeiro grupo (in natura ou minimamente processado) após passar por pequenas modificações que poderiam ser reproduzidas em ambiente doméstico, como conservas, geleias e pães artesanais.
  • Ultraprocessados: grupo composto por alimentos e bebidas que foram submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos. Aqui, entram as bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos, por exemplo.

“Hoje, vivemos uma pandemia de doenças crônicas, e diversos estudos mostram como essas doenças impactam os sistemas de saúde financeiramente”, afirma Monteiro. É com o objetivo de reduzir esse impacto que surgem projetos de lei e medidas para desestimular o consumo dos ultraprocessados.

A experiência não é nova: cerca de 60 países já implementaram algum tipo de taxação a esses produtos. Um exemplo próximo é a Colômbia que, em 2022, incluiu os ultraprocessados na lista de produtos que tiveram aumento de alíquotas.

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Outro local que elevou os impostos sobre bebidas açucaradas foi o município de Berkeley, na Califórnia (EUA). O resultado foi uma queda nas vendas de refrigerantes e sucos com adição de açúcar e aumento da comercialização de água, frutas, vegetais, chá e leite, de acordo com relatório produzido em 2021 pela ACT Promoção em Saúde, que analisou as consequências econômicas da taxação. “Estamos começando a ver os resultados empíricos. Os benefícios relacionados a obesidade e ao diabetes, por exemplo, demoram mais para aparecer, porque são doenças crônicas”, explica a nutricionista Bruna Hassan, coautora do estudo.

No legislativo brasileiro, tramita desde 2007 o Projeto de Lei (PL) 1755, de autoria do deputado federal Fábio Ramalho (MDB-MG, à época, PV-MG), que propõe proibir a venda de refrigerantes em escolas de educação básica. O PL foi desarquivado em 2019, mas ainda não foi votado pela Câmara. Já o PL 2183, apresentado em 2019, visa criar uma tributação especial da comercialização da produção e importação de refrigerantes e bebidas açucaradas, taxando-as em 20%. De acordo com o texto, os impostos seriam destinados a despesas com ações e serviços públicos de saúde. O projeto foi aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais, mas aguarda decisão final da Comissão de Assuntos Econômicos.

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Indústria alega risco de aumento de preço; especialistas apontam distorções fiscais

As medidas que visam reduzir a venda e o consumo dos ultraprocessados encontram resistência – especialmente por parte de representantes da indústria. A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA) entende que as categorias de processamento dos alimentos propostas pelo Nupens são inadequadas, e não devem servir de base para impostos seletivos. A entidade defende que alimentos devem ser considerados apenas segundo sua composição nutricional.

A Reforma Tributária sobre o consumo, aprovada em julho de 2023, era vista como uma janela de oportunidades para mudanças tributárias com impacto nos indicadores de saúde da população, mas as definições sobre ultraprocessados ficaram para uma lei complementar posterior.

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Para a ABIA, a indústria já enfrenta uma taxação elevada, e novos impostos só dificultariam o acesso à comida no país. “Propor aumento de imposto sobre qualquer tipo de alimento é propor que o alimento chegue mais caro à mesa do brasileiro, principalmente dos pobres”, afirma João Dornellas, presidente-executivo da ABIA.

Entidades favoráveis à tributação, no entanto, reconhecem que a medida não pode ser a única política pública adotada em relação aos ultraprocessados. Para Ana Maya, analista em saúde do Idec, o Brasil vê hoje uma distorção nos impostos e benefícios fiscais na indústria dos alimentos. “A cadeia de refrigerante no Brasil, por exemplo, recebe inúmeros incentivos. Cada brasileiro paga imposto que é direcionado para a produção de refrigerantes”, diz.

Além dos refrigerantes, os alimentos que passam por um processo mais longo de industrialização, como é o caso dos ultraprocessados, conseguem isentar tributos ao longo da cascata de produção, o que faz com que o custo final fique mais baixo. O mesmo não acontece com os pequenos produtores de alimentos in natura, que não conseguem escapar dos tributos embutidos em combustível, água e energia, entre outros insumos, fazendo com que o preço final acumule os tributos do processo.

Para especialistas em saúde, não basta aumentar os impostos em relação aos ultraprocessados: os pequenos produtores precisam contar com benefícios fiscais para que os alimentos in natura se tornem mais acessíveis Foto: João Carlos Sponchiado/Divulgação

“A gente não pode pensar na tributação como uma bala de prata, porque ela não é. São necessárias outras medidas, como educação. Também é preciso mexer no ambiente alimentar e ter essa agenda regulatória junto: o combo da rotulagem, tributação, publicidade, além de evitar produtos nas escolas ou hospitais”, explica Bruna.

Segundo a pesquisadora, as medidas passam ainda pela desoneração da cadeia produtiva dos alimentos in natura e minimamente processados. Para a nutricionista, ações governamentais como a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos, que prioriza agricultores familiares na compra pública de alimentos destinados a beneficiários da assistência social, também são exemplos eficientes.

“De forma alguma a ideia é encarecer a alimentação para a população”, completa.

Pesquisas refletem incerteza da população

A opinião da população sobre a taxação dos ultraprocessados é ainda bastante heterogênea, e depende da forma como a questão é colocada. Uma pesquisa da ACT mostrou que, no contexto da Reforma Tributária, 94% dos brasileiros são favoráveis à taxação de pelo menos um tipo de produto considerado danoso à saúde e ao meio ambiente, embora apenas 46% entendam que os alimentos ultraprocessados deveriam ser incluídos na lista.

Já uma pesquisa encomendada pela ABIA mostrou que 86% dos consultados eram contra a taxação de alimentos em geral, o que incluiria ultraprocessados. O enunciado dizia que o cidadão deveria levar em conta “que o aumento dos impostos vai refletir no preço final e pode aumentar o preço dos alimentos”.

“De maneira geral, é mais difícil para que as pessoas entendam a tributação, porque elas têm uma noção geral de que pagamos muitos impostos”, explica Bruna. “No caso da tributação, você vai ter de fato aumento no preço de produtos que não são saudáveis. O que falta mesmo é a população entender os grandes malefícios desses produtos ultraprocessados”, completa.

Mesmo sem taxação específica, alguns mecanismos tentam levar a realidade das pesquisas científicas para as prateleiras do supermercado. Desde outubro de 2022, está em vigor um novo sistema de rotulagem aprovado pela Anvisa. O chamado “modelo da lupa” traz para a parte frontal das embalagens a identificação dos alimentos que possuem alto teor de açúcares adicionados, gorduras saturadas e sódio. A intenção é conscientizar o consumidor sobre os componentes potencialmente prejudiciais do produto.

“A rotulagem frontal é um mecanismo importantíssimo que contribui para a melhoria do padrão alimentar da nossa população no sentido de informar o consumidor”, afirma Ana.

Acompanhe o Summit Saúde e Bem-Estar 2023

A alimentação saudável é fundamental para evitar algumas das doenças mais prevalentes entre a população brasileira, como obesidade, diabetes e até alguns tipos de câncer. E, mesmo com tanta produção agrícola e alta disponibilidade de alimentos in natura, o Brasil vem apresentando altos índices de consumo de itens ultraprocessados. Os riscos disso serão discutidos no Summit Saúde e Bem-Estar 2023, organizado pelo Estadão.

O evento ocorre no dia 5 de outubro e contará com a participação de renomados nomes na área da saúde. As palestras podem ser acompanhadas pelas redes do Estadão e pela página oficial.

A tributação de alimentos ultraprocessados tem sido alvo de debates no Brasil e no exterior. Aumentar os impostos aplicados sobre biscoitos, salgadinhos, bebidas açucaradas, cereais matinais, pães embalados e outros produtos foi uma das pautas da Reforma Tributária, aprovada no início de julho na Câmara dos Deputados, mas a definição da taxação ainda depende de leis complementares para ser posta em prática.

Pesquisas indicam que a opinião pública ainda fica dividida frente a incertezas sobre os impactos da tributação nas contas do dia a dia. No campo científico, a divulgação de pesquisas que evidenciam os malefícios desse tipo de alimento à saúde reforça o argumento de entidades favoráveis à medida, que enfrenta resistência da indústria.

“Na última década, um conjunto robusto de evidências científicas vem mostrando a associação entre o consumo de ultraprocessados e um maior risco de desenvolver quadros de sobrepeso e obesidade e de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, câncer e até doenças mentais, como a depressão”, pontua Carlos Monteiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP). Monteiro é coautor de um estudo publicado no ano passado no American Journal of Preventive Medicine, que estimou em 57 mil o número de mortes prematuras em adultos de 30 a 69 anos relacionadas ao consumo desses produtos no Brasil, usando dados de 2019.

Para evitar esses problemas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda uma dieta equilibrada, sem abuso de sódio, açúcares e gorduras saturadas. O problema é que a maioria dos ultraprocessados contém justamente esses nutrientes em excesso. Um estudo produzido em conjunto por pesquisadores de três universidades brasileiras e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), publicado em agosto na revista Nature, analisou mais de 9 mil itens nos supermercados, e constatou que o exagero de pelo menos um desses componentes estava presente em 97,1% dos ultraprocessados.

Em 2018, entidades da indústria de alimentos firmaram um acordo voluntário com o Ministério da Saúde com a meta de reduzir o teor de açúcar em algumas categorias de ultraprocessados como bolos, produtos lácteos, biscoitos recheados e bebidas açucaradas em 114 mil toneladas até 2022. Mas entidades como o Idec avaliam que medidas desse tipo são pouco eficientes. Segundo o Instituto, a redução não garante que o nível de açúcar nos produtos chegará a um patamar saudável, e o caráter voluntário da meta não implica em consequência econômicas ou legais no caso de descumprimento.

Alimentos ultraprocessados costumam ter excesso de gorduras saturadas, açúcar ou sódio, compostos que aumentam o risco de doeças Foto: Freepik

Entidades defendem regulamentação

O conceito de alimentos ultraprocessados foi criado em 2009 por pesquisadores do Nupens e tem quatro grupos:

  • Alimentos in natura ou minimamente processados: são aqueles consumidos da maneira como vêm da natureza (folhas, sementes, raízes, ovos, etc) ou que passam por algum processo mínimo de processamento, mas sem adição de ingredientes (como os grãos de feijão, que são apenas secos e embalados ou os grãos de café, que são torrados e moídos para virar pó).
  • Ingredientes culinários processados: são substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos, como prensagem, centrifugação e concentração, segundo o Nupens. É o caso do azeite obtido de azeitonas, da manteiga proveniente do leite e do açúcar vindo da cana ou da beterraba.
  • Alimentos processados: são os ingredientes do primeiro grupo (in natura ou minimamente processado) após passar por pequenas modificações que poderiam ser reproduzidas em ambiente doméstico, como conservas, geleias e pães artesanais.
  • Ultraprocessados: grupo composto por alimentos e bebidas que foram submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos. Aqui, entram as bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos, por exemplo.

“Hoje, vivemos uma pandemia de doenças crônicas, e diversos estudos mostram como essas doenças impactam os sistemas de saúde financeiramente”, afirma Monteiro. É com o objetivo de reduzir esse impacto que surgem projetos de lei e medidas para desestimular o consumo dos ultraprocessados.

A experiência não é nova: cerca de 60 países já implementaram algum tipo de taxação a esses produtos. Um exemplo próximo é a Colômbia que, em 2022, incluiu os ultraprocessados na lista de produtos que tiveram aumento de alíquotas.

Outro local que elevou os impostos sobre bebidas açucaradas foi o município de Berkeley, na Califórnia (EUA). O resultado foi uma queda nas vendas de refrigerantes e sucos com adição de açúcar e aumento da comercialização de água, frutas, vegetais, chá e leite, de acordo com relatório produzido em 2021 pela ACT Promoção em Saúde, que analisou as consequências econômicas da taxação. “Estamos começando a ver os resultados empíricos. Os benefícios relacionados a obesidade e ao diabetes, por exemplo, demoram mais para aparecer, porque são doenças crônicas”, explica a nutricionista Bruna Hassan, coautora do estudo.

No legislativo brasileiro, tramita desde 2007 o Projeto de Lei (PL) 1755, de autoria do deputado federal Fábio Ramalho (MDB-MG, à época, PV-MG), que propõe proibir a venda de refrigerantes em escolas de educação básica. O PL foi desarquivado em 2019, mas ainda não foi votado pela Câmara. Já o PL 2183, apresentado em 2019, visa criar uma tributação especial da comercialização da produção e importação de refrigerantes e bebidas açucaradas, taxando-as em 20%. De acordo com o texto, os impostos seriam destinados a despesas com ações e serviços públicos de saúde. O projeto foi aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais, mas aguarda decisão final da Comissão de Assuntos Econômicos.

Indústria alega risco de aumento de preço; especialistas apontam distorções fiscais

As medidas que visam reduzir a venda e o consumo dos ultraprocessados encontram resistência – especialmente por parte de representantes da indústria. A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA) entende que as categorias de processamento dos alimentos propostas pelo Nupens são inadequadas, e não devem servir de base para impostos seletivos. A entidade defende que alimentos devem ser considerados apenas segundo sua composição nutricional.

A Reforma Tributária sobre o consumo, aprovada em julho de 2023, era vista como uma janela de oportunidades para mudanças tributárias com impacto nos indicadores de saúde da população, mas as definições sobre ultraprocessados ficaram para uma lei complementar posterior.

Para a ABIA, a indústria já enfrenta uma taxação elevada, e novos impostos só dificultariam o acesso à comida no país. “Propor aumento de imposto sobre qualquer tipo de alimento é propor que o alimento chegue mais caro à mesa do brasileiro, principalmente dos pobres”, afirma João Dornellas, presidente-executivo da ABIA.

Entidades favoráveis à tributação, no entanto, reconhecem que a medida não pode ser a única política pública adotada em relação aos ultraprocessados. Para Ana Maya, analista em saúde do Idec, o Brasil vê hoje uma distorção nos impostos e benefícios fiscais na indústria dos alimentos. “A cadeia de refrigerante no Brasil, por exemplo, recebe inúmeros incentivos. Cada brasileiro paga imposto que é direcionado para a produção de refrigerantes”, diz.

Além dos refrigerantes, os alimentos que passam por um processo mais longo de industrialização, como é o caso dos ultraprocessados, conseguem isentar tributos ao longo da cascata de produção, o que faz com que o custo final fique mais baixo. O mesmo não acontece com os pequenos produtores de alimentos in natura, que não conseguem escapar dos tributos embutidos em combustível, água e energia, entre outros insumos, fazendo com que o preço final acumule os tributos do processo.

Para especialistas em saúde, não basta aumentar os impostos em relação aos ultraprocessados: os pequenos produtores precisam contar com benefícios fiscais para que os alimentos in natura se tornem mais acessíveis Foto: João Carlos Sponchiado/Divulgação

“A gente não pode pensar na tributação como uma bala de prata, porque ela não é. São necessárias outras medidas, como educação. Também é preciso mexer no ambiente alimentar e ter essa agenda regulatória junto: o combo da rotulagem, tributação, publicidade, além de evitar produtos nas escolas ou hospitais”, explica Bruna.

Segundo a pesquisadora, as medidas passam ainda pela desoneração da cadeia produtiva dos alimentos in natura e minimamente processados. Para a nutricionista, ações governamentais como a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos, que prioriza agricultores familiares na compra pública de alimentos destinados a beneficiários da assistência social, também são exemplos eficientes.

“De forma alguma a ideia é encarecer a alimentação para a população”, completa.

Pesquisas refletem incerteza da população

A opinião da população sobre a taxação dos ultraprocessados é ainda bastante heterogênea, e depende da forma como a questão é colocada. Uma pesquisa da ACT mostrou que, no contexto da Reforma Tributária, 94% dos brasileiros são favoráveis à taxação de pelo menos um tipo de produto considerado danoso à saúde e ao meio ambiente, embora apenas 46% entendam que os alimentos ultraprocessados deveriam ser incluídos na lista.

Já uma pesquisa encomendada pela ABIA mostrou que 86% dos consultados eram contra a taxação de alimentos em geral, o que incluiria ultraprocessados. O enunciado dizia que o cidadão deveria levar em conta “que o aumento dos impostos vai refletir no preço final e pode aumentar o preço dos alimentos”.

“De maneira geral, é mais difícil para que as pessoas entendam a tributação, porque elas têm uma noção geral de que pagamos muitos impostos”, explica Bruna. “No caso da tributação, você vai ter de fato aumento no preço de produtos que não são saudáveis. O que falta mesmo é a população entender os grandes malefícios desses produtos ultraprocessados”, completa.

Mesmo sem taxação específica, alguns mecanismos tentam levar a realidade das pesquisas científicas para as prateleiras do supermercado. Desde outubro de 2022, está em vigor um novo sistema de rotulagem aprovado pela Anvisa. O chamado “modelo da lupa” traz para a parte frontal das embalagens a identificação dos alimentos que possuem alto teor de açúcares adicionados, gorduras saturadas e sódio. A intenção é conscientizar o consumidor sobre os componentes potencialmente prejudiciais do produto.

“A rotulagem frontal é um mecanismo importantíssimo que contribui para a melhoria do padrão alimentar da nossa população no sentido de informar o consumidor”, afirma Ana.

Acompanhe o Summit Saúde e Bem-Estar 2023

A alimentação saudável é fundamental para evitar algumas das doenças mais prevalentes entre a população brasileira, como obesidade, diabetes e até alguns tipos de câncer. E, mesmo com tanta produção agrícola e alta disponibilidade de alimentos in natura, o Brasil vem apresentando altos índices de consumo de itens ultraprocessados. Os riscos disso serão discutidos no Summit Saúde e Bem-Estar 2023, organizado pelo Estadão.

O evento ocorre no dia 5 de outubro e contará com a participação de renomados nomes na área da saúde. As palestras podem ser acompanhadas pelas redes do Estadão e pela página oficial.

A tributação de alimentos ultraprocessados tem sido alvo de debates no Brasil e no exterior. Aumentar os impostos aplicados sobre biscoitos, salgadinhos, bebidas açucaradas, cereais matinais, pães embalados e outros produtos foi uma das pautas da Reforma Tributária, aprovada no início de julho na Câmara dos Deputados, mas a definição da taxação ainda depende de leis complementares para ser posta em prática.

Pesquisas indicam que a opinião pública ainda fica dividida frente a incertezas sobre os impactos da tributação nas contas do dia a dia. No campo científico, a divulgação de pesquisas que evidenciam os malefícios desse tipo de alimento à saúde reforça o argumento de entidades favoráveis à medida, que enfrenta resistência da indústria.

“Na última década, um conjunto robusto de evidências científicas vem mostrando a associação entre o consumo de ultraprocessados e um maior risco de desenvolver quadros de sobrepeso e obesidade e de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, câncer e até doenças mentais, como a depressão”, pontua Carlos Monteiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP). Monteiro é coautor de um estudo publicado no ano passado no American Journal of Preventive Medicine, que estimou em 57 mil o número de mortes prematuras em adultos de 30 a 69 anos relacionadas ao consumo desses produtos no Brasil, usando dados de 2019.

Para evitar esses problemas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda uma dieta equilibrada, sem abuso de sódio, açúcares e gorduras saturadas. O problema é que a maioria dos ultraprocessados contém justamente esses nutrientes em excesso. Um estudo produzido em conjunto por pesquisadores de três universidades brasileiras e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), publicado em agosto na revista Nature, analisou mais de 9 mil itens nos supermercados, e constatou que o exagero de pelo menos um desses componentes estava presente em 97,1% dos ultraprocessados.

Em 2018, entidades da indústria de alimentos firmaram um acordo voluntário com o Ministério da Saúde com a meta de reduzir o teor de açúcar em algumas categorias de ultraprocessados como bolos, produtos lácteos, biscoitos recheados e bebidas açucaradas em 114 mil toneladas até 2022. Mas entidades como o Idec avaliam que medidas desse tipo são pouco eficientes. Segundo o Instituto, a redução não garante que o nível de açúcar nos produtos chegará a um patamar saudável, e o caráter voluntário da meta não implica em consequência econômicas ou legais no caso de descumprimento.

Alimentos ultraprocessados costumam ter excesso de gorduras saturadas, açúcar ou sódio, compostos que aumentam o risco de doeças Foto: Freepik

Entidades defendem regulamentação

O conceito de alimentos ultraprocessados foi criado em 2009 por pesquisadores do Nupens e tem quatro grupos:

  • Alimentos in natura ou minimamente processados: são aqueles consumidos da maneira como vêm da natureza (folhas, sementes, raízes, ovos, etc) ou que passam por algum processo mínimo de processamento, mas sem adição de ingredientes (como os grãos de feijão, que são apenas secos e embalados ou os grãos de café, que são torrados e moídos para virar pó).
  • Ingredientes culinários processados: são substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos, como prensagem, centrifugação e concentração, segundo o Nupens. É o caso do azeite obtido de azeitonas, da manteiga proveniente do leite e do açúcar vindo da cana ou da beterraba.
  • Alimentos processados: são os ingredientes do primeiro grupo (in natura ou minimamente processado) após passar por pequenas modificações que poderiam ser reproduzidas em ambiente doméstico, como conservas, geleias e pães artesanais.
  • Ultraprocessados: grupo composto por alimentos e bebidas que foram submetidos a métodos mais agressivos de alteração do produto in natura, além da adição de substâncias de uso industrial, como aromatizantes, corantes, conservantes, emulsificantes e outros aditivos. Aqui, entram as bebidas lácteas, barrinhas de cereais, macarrão instantâneo, sucos em pó, nuggets de frango, bolachas e biscoitos, por exemplo.

“Hoje, vivemos uma pandemia de doenças crônicas, e diversos estudos mostram como essas doenças impactam os sistemas de saúde financeiramente”, afirma Monteiro. É com o objetivo de reduzir esse impacto que surgem projetos de lei e medidas para desestimular o consumo dos ultraprocessados.

A experiência não é nova: cerca de 60 países já implementaram algum tipo de taxação a esses produtos. Um exemplo próximo é a Colômbia que, em 2022, incluiu os ultraprocessados na lista de produtos que tiveram aumento de alíquotas.

Outro local que elevou os impostos sobre bebidas açucaradas foi o município de Berkeley, na Califórnia (EUA). O resultado foi uma queda nas vendas de refrigerantes e sucos com adição de açúcar e aumento da comercialização de água, frutas, vegetais, chá e leite, de acordo com relatório produzido em 2021 pela ACT Promoção em Saúde, que analisou as consequências econômicas da taxação. “Estamos começando a ver os resultados empíricos. Os benefícios relacionados a obesidade e ao diabetes, por exemplo, demoram mais para aparecer, porque são doenças crônicas”, explica a nutricionista Bruna Hassan, coautora do estudo.

No legislativo brasileiro, tramita desde 2007 o Projeto de Lei (PL) 1755, de autoria do deputado federal Fábio Ramalho (MDB-MG, à época, PV-MG), que propõe proibir a venda de refrigerantes em escolas de educação básica. O PL foi desarquivado em 2019, mas ainda não foi votado pela Câmara. Já o PL 2183, apresentado em 2019, visa criar uma tributação especial da comercialização da produção e importação de refrigerantes e bebidas açucaradas, taxando-as em 20%. De acordo com o texto, os impostos seriam destinados a despesas com ações e serviços públicos de saúde. O projeto foi aprovado pela Comissão de Assuntos Sociais, mas aguarda decisão final da Comissão de Assuntos Econômicos.

Indústria alega risco de aumento de preço; especialistas apontam distorções fiscais

As medidas que visam reduzir a venda e o consumo dos ultraprocessados encontram resistência – especialmente por parte de representantes da indústria. A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (ABIA) entende que as categorias de processamento dos alimentos propostas pelo Nupens são inadequadas, e não devem servir de base para impostos seletivos. A entidade defende que alimentos devem ser considerados apenas segundo sua composição nutricional.

A Reforma Tributária sobre o consumo, aprovada em julho de 2023, era vista como uma janela de oportunidades para mudanças tributárias com impacto nos indicadores de saúde da população, mas as definições sobre ultraprocessados ficaram para uma lei complementar posterior.

Para a ABIA, a indústria já enfrenta uma taxação elevada, e novos impostos só dificultariam o acesso à comida no país. “Propor aumento de imposto sobre qualquer tipo de alimento é propor que o alimento chegue mais caro à mesa do brasileiro, principalmente dos pobres”, afirma João Dornellas, presidente-executivo da ABIA.

Entidades favoráveis à tributação, no entanto, reconhecem que a medida não pode ser a única política pública adotada em relação aos ultraprocessados. Para Ana Maya, analista em saúde do Idec, o Brasil vê hoje uma distorção nos impostos e benefícios fiscais na indústria dos alimentos. “A cadeia de refrigerante no Brasil, por exemplo, recebe inúmeros incentivos. Cada brasileiro paga imposto que é direcionado para a produção de refrigerantes”, diz.

Além dos refrigerantes, os alimentos que passam por um processo mais longo de industrialização, como é o caso dos ultraprocessados, conseguem isentar tributos ao longo da cascata de produção, o que faz com que o custo final fique mais baixo. O mesmo não acontece com os pequenos produtores de alimentos in natura, que não conseguem escapar dos tributos embutidos em combustível, água e energia, entre outros insumos, fazendo com que o preço final acumule os tributos do processo.

Para especialistas em saúde, não basta aumentar os impostos em relação aos ultraprocessados: os pequenos produtores precisam contar com benefícios fiscais para que os alimentos in natura se tornem mais acessíveis Foto: João Carlos Sponchiado/Divulgação

“A gente não pode pensar na tributação como uma bala de prata, porque ela não é. São necessárias outras medidas, como educação. Também é preciso mexer no ambiente alimentar e ter essa agenda regulatória junto: o combo da rotulagem, tributação, publicidade, além de evitar produtos nas escolas ou hospitais”, explica Bruna.

Segundo a pesquisadora, as medidas passam ainda pela desoneração da cadeia produtiva dos alimentos in natura e minimamente processados. Para a nutricionista, ações governamentais como a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos, que prioriza agricultores familiares na compra pública de alimentos destinados a beneficiários da assistência social, também são exemplos eficientes.

“De forma alguma a ideia é encarecer a alimentação para a população”, completa.

Pesquisas refletem incerteza da população

A opinião da população sobre a taxação dos ultraprocessados é ainda bastante heterogênea, e depende da forma como a questão é colocada. Uma pesquisa da ACT mostrou que, no contexto da Reforma Tributária, 94% dos brasileiros são favoráveis à taxação de pelo menos um tipo de produto considerado danoso à saúde e ao meio ambiente, embora apenas 46% entendam que os alimentos ultraprocessados deveriam ser incluídos na lista.

Já uma pesquisa encomendada pela ABIA mostrou que 86% dos consultados eram contra a taxação de alimentos em geral, o que incluiria ultraprocessados. O enunciado dizia que o cidadão deveria levar em conta “que o aumento dos impostos vai refletir no preço final e pode aumentar o preço dos alimentos”.

“De maneira geral, é mais difícil para que as pessoas entendam a tributação, porque elas têm uma noção geral de que pagamos muitos impostos”, explica Bruna. “No caso da tributação, você vai ter de fato aumento no preço de produtos que não são saudáveis. O que falta mesmo é a população entender os grandes malefícios desses produtos ultraprocessados”, completa.

Mesmo sem taxação específica, alguns mecanismos tentam levar a realidade das pesquisas científicas para as prateleiras do supermercado. Desde outubro de 2022, está em vigor um novo sistema de rotulagem aprovado pela Anvisa. O chamado “modelo da lupa” traz para a parte frontal das embalagens a identificação dos alimentos que possuem alto teor de açúcares adicionados, gorduras saturadas e sódio. A intenção é conscientizar o consumidor sobre os componentes potencialmente prejudiciais do produto.

“A rotulagem frontal é um mecanismo importantíssimo que contribui para a melhoria do padrão alimentar da nossa população no sentido de informar o consumidor”, afirma Ana.

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A alimentação saudável é fundamental para evitar algumas das doenças mais prevalentes entre a população brasileira, como obesidade, diabetes e até alguns tipos de câncer. E, mesmo com tanta produção agrícola e alta disponibilidade de alimentos in natura, o Brasil vem apresentando altos índices de consumo de itens ultraprocessados. Os riscos disso serão discutidos no Summit Saúde e Bem-Estar 2023, organizado pelo Estadão.

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