Incentivar o emagrecimento é uma fábrica de obesidade, diz nutricionista


Sophie Deram, uma das primeiras a falar em terrorismo nutricional e advogar contra as dietas no Brasil, ataca desinformação em novo livro ‘Pare de engolir mitos’

Por Leon Ferrari
Foto: Editora Sextante/Divulgação
Entrevista comSophie Deram nutricionista, engenheira agrônoma e autora de 'O peso das dietas'

“E se o que aprendemos a chamar de ‘nos cuidar’ for justamente o que está nos adoecendo?”, provoca Sophie Deram em novo livro “Pare de engolir mitos: Como as novas descobertas da nutrição podem nos orientar em meio a modismos, desinformação e pseudociência”, lançado nesta segunda-feira, 6, pela Editora Sextante.

A franco-brasileira é nutricionista, engenheira agrônoma e autora de outros dois outros livros, “O peso das dietas” e “Os 7 pilares da saúde alimentar”. Uma das primeiras a usar o termo terrorismo nutricional e advogar contra as dietas no Brasil, ela questiona na nova obra uma série de mitos que permeiam discussões sobre nutrição, alimentação e saúde.

Coloca em xeque, à luz de evidências científicas – ou da falta delas –, crenças amplamente divulgadas e aceitas, como “não devemos ingerir líquidos durante a refeição”, até modismos mais recentes, mas que já têm uma certa expressão dentro das redes sociais, a exemplo do jejum intermitente.

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Em alguns trechos, o livro beira o desabafo de uma profissional cansada de dizer a mesma coisa repetidamente. “É a leitura que eu gostaria de dar aos meus pacientes antes da primeira consulta”, explica logo nas primeiras páginas.

Para ela, essa série de desinformações nos levam a uma situação trágica. “As pessoas se desconectaram da sabedoria interna delas, e começaram a seguir regras”, fala, em entrevista ao Estadão.

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Para nutricionista Sophie Deram, foco no emagrecimento está adoecendo as pessoas. Foto: Prostock-studio/Adobe Stock

“Todo mundo terceirizou a saúde, a fome, o sono. Tem aplicativos para tudo. Não vi ainda, mas com certeza vai ser feito, um aplicativo para te lembrar de ir ao banheiro. São coisas muito básicas que não deveríamos terceirizar. Essa terceirização nos faz perder a confiança no corpo”, diz.

Isso, por sua vez, nos transporta ao olho de um furacão, ou melhor, tempestade, como Sophie prefere chamar: uma crise de saúde composta pelo avanço de doenças crônicas e alta prevalência dos transtornos de saúde mental.

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“Vivemos uma verdadeira tragédia, que combina sofrimento humano, sobrecarga médica e risco de colapso do sistema de saúde. Precisamos refletir sobre o que estamos fazendo, pois não está dando certo! Temos que parar de repetir os mesmos erros e buscar um novo olhar para a saúde”, escreve no livro.

'Pare de engolir mitos' defende a reconexão com o corpo e suas necessidades Foto: Editora Sextante/Estadão

Para ela, isso passa por repensar o foco excessivo no peso, apontado como fator de risco para várias doenças. “Incentivar a pessoa a emagrecer é uma fábrica de obesidade”, fala.

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No livro, ela abre as portas de seu consultório – ela coordena o projeto de genética e atende no Programa de Tratamento de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas do IPq-FMUSP –, e conta como tem acolhido as vítimas dessa crise. “Uma das primeiras coisas que eu trabalho é sobre o que, como e por que ele come”, diz.

“O paciente precisa virar o protagonista. O médico ou o nutricionista não sabe melhor do que a pessoa (sobre ela mesma). A pessoa dirige seu próprio barco.”

Confira os principais trechos da entrevista:

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Por que escrever esse livro? Senti, em alguns momentos, um certo tom de desabafo, no sentido de alguém cansado de falar a mesma coisa. Estou correto?

Tenho a ideia de escrever esse livro há 30 anos, porque senti na pele esses mitos da nutrição e da saúde quando eu morava nos Estados Unidos com meus filhos pequenos. Foi nesse momento que fui estudar Nutrição. Como sou engenheira agrônoma, tinha um bom background de ciência, de saber estudar e analisar pesquisa. O que me chamou atenção é o tanto de mitos que eu encontrei, falados até pelos professores e nas mídias, sem comprovação científica.

No começo, foi muito desagradável, porque eu fiz esses estudos para saber mais, e acabei ficando mais perdida. Eu fui até estudar genética, nutrigenômica, e agora estou estudando microbiota. Mas sempre volto ao básico: comer melhor, não entrar em tanta paranoia, ansiedade. A nutrição é muito mais complexa do que um simples cálculo de caloria.

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Comecei esse meu grito há dez anos, quando escrevi meu primeiro livro, ‘O Peso das Dietas’, que era o tema da minha pesquisa. Sou coordenadora do projeto de genética dos transtornos alimentares e obesidade no laboratório de neurociência. Meu projeto é justamente buscar entender o que é o gatilho para mudança de comportamento, e está muito óbvio, hoje, que a dieta não somente não funciona, porque quase todo mundo volta a engordar, mas te faz até engordar mais e muda sua relação com a comida. As pessoas estão tentando emagrecer nessa sociedade gordofóbica, perdendo a saúde, perdendo aquela sabedoria alimentar, perdendo confiança no corpo, e acabam adoecendo.

Mas o problema não é só dieta restritiva, é o discurso nutricional e de saúde, gordofobia, todo o sistema que se chama sistema de saúde, mas que deveríamos chamar de sistema da doença. Nesses 30 últimos anos, a população está adoecendo, e a indústria farmacêutica está cada vez mais forte.

O fracasso da saúde está sendo um motor muito grande para toda a indústria. Por isso, o meu desabafo: as pessoas estão cada vez mais perdidas e adoecem, e o que vai ser oferecido para elas são mais e mais remédios, que, na realidade, vão remediar sem tratar.

A senhora diz que vivemos hoje uma crise de saúde. Como a definiria?

Não tem somente uma resposta. É uma tempestade, na qual a pessoa se desconectou da sabedoria dela, e começou a seguir regras. Uma desconexão do seu corpo não vai te ajudar a ganhar saúde. Se você não escuta seu corpo, dorme em horários que não são adequados e come sem fome, desregula toda uma máquina maravilhosa. O ser humano desistiu de escutar o corpo e de acreditar que ele é confiável. É uma tragédia!

Na Engenharia Agronômica, estudei todos os ciclos de vida, de todos os seres vivos do mundo, e todos têm essa sabedoria interna, silenciosa, que chamamos de inteligência do corpo, que é a homeostase. As próprias células estão na luta para buscar equilíbrio.

O ser humano desistiu de escutar o corpo e acreditar que ele é confiável. É uma tragédia!

Sophie Deram, nutricionista

Isso começa desde a infância, quando os pais fazem a introdução alimentar. É o primeiro momento do peso das dietas, porque vai ser o adulto que vai mandar nesse corpinho, e vemos que, em vez de respeitar a criança e a sabedoria da criança, muitas mães vão seguir aquelas regras rígidas de alimentação e de horário para dormir.

Em segundo lugar, há um exagero em buscar soluções milagrosas e de remédios para anestesiar o corpo.

A senhora também escreve que a maneira como tratamos essa crise mais atrapalha do que ajuda. Por quê? O que estamos fazendo de errado?

Temos a melhor Medicina que já existiu. Temos os remédios fantásticos, desenvolvemos uma vacina contra covid em um ano, uma coisa espetacular! Não estou criticando a Medicina, mas ela treina para prescrever remédio e cirurgia. Hoje, o maior problema são as doenças crônicas, e não mais as infecciosas. Quando você tem uma infecção, toma um antibiótico. A Medicina foi muito boa nisso, mas, agora, o problema maior está dentro da pessoa. Não é um bicho que causa uma infecção. É o próprio corpo que entra em doença crônica, seja diabetes, doença cardiovascular, e não existe prescrição (que resolva isso).

Esse aumento de doença crônica no mundo começou há mais ou menos 30 anos. No Brasil, até 45 anos atrás, o problema era desnutrição, e, de repente, é obesidade, sobrepeso, diabetes. O que aconteceu? Não teve mudança genética, ou seja, é a mesma população, mas o corpo está sofrendo doenças crônicas severas.

Quais são as explicações? O que mudou nos anos 1990? Fomos orientados a evitar gordura, ficar comendo mais alimentos light e diet. Quando você tira a gordura de uma pessoa, ela vai buscar mais carboidrato – hoje, tem um incentivo a comer mais proteína, mas, naturalmente, o ser humano não está buscando excesso de proteína. E também houve um foco maior no peso da pessoa. A própria OMS deu o corte de sobrepeso e obesidade pelo peso dividido a altura (isto é, o índice de massa corporal, ou IMC). A altura ninguém vai mexer, porque é considerada uma coisa que você não decide. O peso virou o alvo do profissional de saúde, e isso foi um grande erro.

Há quem aponte que o aumento da prevalência de doenças crônicas seja explicado principalmente por uma expectativa de vida maior. O que a senhora pensa?

Faz todo sentido. As pessoas estão vivendo mais e carregam mais doenças. A doença crônica, pela definição, não é rápida, é devagar. Quando você está preso dentro de uma doença crônica, só vai agravar se não fizer uma mudança de estilo de vida. Uma solução seria a mudança de estilo de vida, mas isso você não consegue prescrever. Imagina o médico falar ‘bom, a partir de agora mude seu estilo de vida, tchau, e volta daqui a um mês’. A pessoa fica presa, porque os estilos de vida são pilotos automáticos que adquirimos.

O estilo de vida está sendo muito estudado, porque, até agora, não existe prescrição de remédios para tratar doença crônica, mas o médico e o nutricionista foram treinados a prescrever. Agora, você vê que dentro daquele sucesso todo da indústria farmacêutica, tem todos esses suplementos. É uma pergunta, por exemplo, que eu não fazia há uns 15 anos (para os pacientes): ‘Quantos suplementos você está tomando?’. A resposta varia, mas de dez a 20, às vezes mais. As pessoas estão se automedicando também. O próprio paciente está perdido, acredita que o corpo dele não funciona sem ajuda de suplementos e remédios.

Muitos remédios são muito bem sucedidos para controlar doenças crônicas, como a insulina, no caso de diabetes. A senhora quer dizer que não há tratamento ou que não há como reverter o quadro com remédios?

Para o diabetes tipo 1, com certeza, a insulina foi um remédio maravilhoso, que salvou vidas. A pessoa vai precisar de insulina para não morrer. Mas o diabetes tipo 2, o mais prevalente hoje, que é resultante de fatores de risco, e um deles é a obesidade, não é pela insulina que você vai ajudar a pessoa. Você não trata diabetes tipo 2 com insulina, apenas se o pâncreas entrou em colapso. Por isso que, por exemplo, esses injetáveis são recomendados para o paciente que tem um colapso do pâncreas e precisa estimulá-lo a produzir insulina. O diabetes tipo 2 conseguimos reverter com mudança de estilo de vida. De novo: alimentação, sono, atividade física e melhor controle do estresse. Quando o pâncreas entrar em colapso, claro, vai precisar (de remédio) e, até agora, não existe reversão.

Obesidade é a mesma coisa. Não existe remédio padrão ouro para tratar obesidade. Deveríamos ver a obesidade mais como uma consequência do que a causa do problema. A pessoa engorda por quê? Porque o corpo está se defendendo, não tá bem, aí vai acumulando (gordura). Atacar o peso é como dar um remédio para baixar a febre. Você vai ajudar, vai remediar, mas não vai curar, não sabe por que a pessoa está com febre. Se você não atacar a causa, o problema vai voltar. É isso que está acontecendo com essas doenças crônicas.

A senhora escreve que a crise de saúde atual tem um componente de saúde mental. O que é o comer emocional? E qual o peso dele?

Na nutrição, há dois fatores bem descritos de ganho de peso. Um deles é fazer dieta, porque você engorda, emagrece, engorda, emagrece, engorda (o famoso efeito sanfona). O outro fator é o comer emocional, que é comer em momentos em que você não está com fome. Ele se desenvolve em ratos também e é muito ligado a uma relação conturbada com a comida.

É como se o cérebro fizesse questão de que você não se esqueça de comer. Ele vai usar a comida como refúgio para tudo. Você vai comer em momentos de tristeza, cansaço, tédio, ansiedade. E, dentro do comer emocional, esses alimentos são sempre ricos em energia: carboidrato e gordura. Isso sobrecarrega o corpo, e ele fica cansado de receber tanta energia que nem está pronto para processar.

A senhora reforça muito que nutrição não é matemática, mas sim biologia. Cita que caloria, por exemplo, é um conceito da física, e diz que não indicam nada sobre o peso e que contá-las pode trazer prejuízos à saúde. A nutrição deveria abandonar essa medida?

O profissional foi treinado para passar dieta. Eu mesma fui, e tive que desaprender. É muito difícil, dá muito medo. Aprendemos a calcular calorias e prescrever dieta. Não é questão de fazer a revolução, jogar tudo fora. Pode continuar fazendo avaliação de calorias, é um dado que pode ser interessante, mas jamais fazer o paciente entrar nesse cálculo. A pessoa não precisa saber tanto.

Inclusive, calcular calorias é um traço de comer transtornado. Na anorexia, meninas e meninos geralmente sabem mais do que o nutricionista, e essa noção de caloria não indica qualidade. O que a gente quer? Que o paciente coma melhor, não que ele entre numa calculadora para comer. Comer com mais qualidade é comer mais comida fresca, caseira.

Queremos que o paciente coma melhor, não que ele entre numa calculadora para comer

Sophie Deram, nutricionista

Nós, profissionais, podemos continuar calculando calorias, mas, na hora de falar à pessoa, ela é a especialista sobre ela mesma. Você vai apoiar e não virar o comandante, um general da pessoa. Deveríamos acolher o paciente, escutar e orientar, mas é ele que toma a decisão. Cada ser humano é uma entidade totalmente única.

Isso exige tempo. E, muitas vezes, o paciente vai ser julgado só pelo peso, e não pelo ‘como você está?’, ‘o que está acontecendo?’, ‘será que você engordou recentemente?’. Um número externo à pessoa não deveria ser o número que vai julgar se ela está ou não doente.

No Canadá, um país adiantado ao trabalhar doenças crônicas, eles falam que no tratamento da obesidade não podemos usar o peso como fator de avaliação, que a saúde é bem maior do que só o número do peso. Eles falam que, na primeira sessão com o paciente com obesidade, seria importante pedir permissão para falar sobre o peso. Aqui, o paciente é meio que pesado como gado: ‘Vamos emagrecer primeiro e depois a gente conversa’.

No livro, a senhora coloca em dúvida a visão de obesidade enquanto doença. Por quê? Alguns especialistas apontam que esse reconhecimento é importante para diminuir a estigmatização e pararmos de culpar a pessoa por seu peso. Alguns dizem, inclusive, que o discurso contra remédio e cirurgia tem raízes gordofóbicas. O que a senhora acha?

Eu concordo que isso pode ajudar no combate à estigmatização da obesidade. Sabemos que a maioria dos profissionais de saúde vai enxergar a pessoa com obesidade como preguiçosa, sem força de vontade, desleixada, que não tem autocuidado. Não sou contra a obesidade ser chamada de doença, mas prefiro chamar de condição. É uma condição, é um estado, não é seu peso que vai determinar se você está doente ou não. Mas é muito prático para a indústria: se a pessoa tá com o IMC 30, vamos bombardear de remédios. Agora tem até incentivo a passar remédios antes da obesidade, porque a pessoa está em sobrepeso.

Não é seu peso que vai determinar se você está doente ou não

Sophie Deram, nutricionista

Por que pessoas engordam ao longo do tempo? Porque elas são incentivadas a emagrecer. A mecânica do peso só vai fazer ela piorar. Ela vai fazer dieta, como o médico ou o nutricionista indicar, vai emagrecer, depois vai engordar tudo de volta. Ela vai engordar ainda mais, porque quando você emagrece rápido, perde músculos e água primeiro, e quando ganha peso rápido, ganha gordura. A pessoa depois de uma dieta não é a mesma. Ela vai engordar mais e ter o comportamento alimentar alterado, com mais comer emocional, mais vontade de comer e, às vezes, compulsão.

O que é muito assustador é que o próprio fato de incentivar uma pessoa a perder peso vai colocá-la em risco de entrar nesse gatilho do risco de obesidade e doença crônica. Na saúde pública da Europa, há uma discussão sobre parar de incentivar a emagrecer e, no lugar disso, incentivar a manter o peso, ou seja, não engordar mais. Incentivar a pessoa a emagrecer é uma fábrica de obesidade. Não sou a única a falar, tem uma pesquisadora da Noruega (Kirsi Pietiläinen) que fala que a dieta é, em parte, responsável pela epidemia da obesidade.

Você vai incentivar um paciente com obesidade a fazer dieta e vai colocá-lo numa situação pior. O raciocínio do profissional de saúde é que, quando a dieta não funciona, então vamos fazer cirurgia bariátrica. Só que a cirurgia vai atacar o quê? O estômago, quando, na realidade, a questão é muito mais no cérebro. Não adianta reduzir o estômago se você não mudar o comportamento da pessoa.

Por que pessoas engordam ao longo do tempo? Porque elas são incentivadas a emagrecer

Sophie Deram, nutricionista

Por isso que, para mim, a obesidade é uma condição, na qual você armazena um tecido gordo maior, com risco para doença cardiovascular, diabetes, etc. Mas a questão é: por que você engordou?

Tem estudos que mostram que não é porque você está com IMC 30, 31, 32, que necessariamente tem um problema de saúde. (Ela cita um estudo, publicado na revista científica Science, que mostra que, em uma amostra de adultos dos Estados Unidos com IMC na faixa de obesidade, 10% deles eram considerados metabolicamente saudáveis). Vemos que, ao longo do tempo, se a pessoa fica na obesidade, sim, aí pode começar a ter uma inflamação dos tecidos adiposos e entrar em doença.

Se um paciente chega com obesidade no meu consultório, quero ver os exames primeiro, ver se tem problema de saúde. Se tem, vamos trabalhar a saúde primeiro, não atacar o peso. Mas isso é complicado de explicar, porque parece contraintuitivo.

O que fazer com esse paciente então? É preciso fazer ele se reconectar com o corpo? Como?

Todos os pacientes querem emagrecer. Eu vou falar ‘não vou esquecer que você quer emagrecer, só que vamos mudar o foco’. A vida inteira você tentou emagrecer e, tentando emagrecer, só engordou. E o paciente vai falar ‘pois é, faz 20 anos que estou tentando emagrecer. Comecei querendo emagrecer três quilos, hoje preciso emagrecer 20′. O nosso foco vai ser comer melhor, viver melhor, melhorar o estilo de vida. Muitas vezes, o paciente tem medo, porque ele só engordou a vida inteira. A minha dificuldade é fazer o paciente comer, porque ele não quer comer.

Focamos em comer melhor. Como? Primeiro, tomar consciência de como você está comendo. Muitos pacientes não sabem, porque eles seguiram regras externas de várias dietas. Digo: ‘vamos observar como você funciona, e vamos melhorar como você come’. Geralmente, vem um pouquinho de tristeza do paciente, porque ele fala ‘nossa, eu tento comer perfeito e, a partir das 17h, desanda’. É o famoso comer emocional.

Como melhorar isso? O primeiro passo é ter certeza de que você não está com fome. Se está com fome, é melhor comer. Uma vez que cuidou dessa fome física, precisa perceber o que tem de psicológico na sua fome. É um trabalho de terapia.

A minha dificuldade é fazer o paciente comer, porque ele não quer comer

Sophie Deram, nutricionista

Trabalho geralmente com cinco sessões, e depois eu deixo o paciente decidir se ele quer continuar ou não, mas preciso de pelo menos cinco sessões para abordar toda a questão do comportamento. Os pacientes melhoram.

Fiz um uma pesquisa interna, não científica, com meus pacientes. Perguntei: ‘Você tá comendo melhor?’. ‘Nossa, muito melhor, porque eu não tenho tanto comer emocional’. Pergunto: ‘Você acha que você come menos?’. A maioria fala que sim, de 30% a 50%. Comendo melhor, mais em paz, respeitando o corpo e as vontades, mas identificando o comer emocional para responder sem comer a essas emoções.

O paciente não somente come melhor, mas ele come menos. Quando você tem permissão de comer, não precisa mais fazer ‘despedida’, se entupir de um pacote de doce. É uma reeducação total da relação com a comida. Eu incentivo também atividade física e dormir melhor.

O que é uma alimentação saudável?

Não tem consenso dentro da nutrição. Alguns vão dizer que é comer tudo orgânico, outros vão dizer que não pode glúten, lactose ou alimentos inflamatórios. E tudo isso é defendido por alguns profissionais sem muitas vezes ter ciência por trás. Alimentação saudável deveria ter uma definição bem mais ampla, porque até alimentos como um bolo de chocolate podem ser saudáveis se você come em paz.

Tenho uma definição do comer mais saudável que é comer de tudo sem restrição, sem culpa, com prazer e respeitando a fome e as emoções (‘comer de tudo, mas não tudo’ é o mantra que repete várias vezes no novo livro). No comer saudável, não será um alimento ou outro que vai fazer a diferença, é mais uma atitude geral. E, claro, incentivo mais alimentos frescos, caseiros, menos dietas e mais legumes e frutas. É importante ver o seu comer como um padrão. Não é uma refeição que vai estragar toda a saúde do seu corpo.

Como se proteger de mitos, então?

No final do livro, tem uma lista (do que fazer). Primeiro, reconectar-se: você é o seu melhor especialista. É interessante ter informação, mas tem que ter muita cautela em filtrar. Se escutar uma coisa que te assusta, busque uma segunda opinião. Outra coisa: nenhum corpo funciona igual. Então, o especialista, aquela pessoa que estuda mesmo, vai sempre ter um discurso relativamente ponderado. Jamais vai ser oito ou 80, porque não existe essa certidão.

Os discursos terroristas desses charlatões mudam constantemente. Eles vão atacar o leite, depois o pão... Meu livro foi escrito para as pessoas não ficarem com mais medo, pelo contrário. A ideia é deixá-las mais empoderadas a falar e a questionar se é verdade ou não e de onde vem as informações.

“E se o que aprendemos a chamar de ‘nos cuidar’ for justamente o que está nos adoecendo?”, provoca Sophie Deram em novo livro “Pare de engolir mitos: Como as novas descobertas da nutrição podem nos orientar em meio a modismos, desinformação e pseudociência”, lançado nesta segunda-feira, 6, pela Editora Sextante.

A franco-brasileira é nutricionista, engenheira agrônoma e autora de outros dois outros livros, “O peso das dietas” e “Os 7 pilares da saúde alimentar”. Uma das primeiras a usar o termo terrorismo nutricional e advogar contra as dietas no Brasil, ela questiona na nova obra uma série de mitos que permeiam discussões sobre nutrição, alimentação e saúde.

Coloca em xeque, à luz de evidências científicas – ou da falta delas –, crenças amplamente divulgadas e aceitas, como “não devemos ingerir líquidos durante a refeição”, até modismos mais recentes, mas que já têm uma certa expressão dentro das redes sociais, a exemplo do jejum intermitente.

Em alguns trechos, o livro beira o desabafo de uma profissional cansada de dizer a mesma coisa repetidamente. “É a leitura que eu gostaria de dar aos meus pacientes antes da primeira consulta”, explica logo nas primeiras páginas.

Para ela, essa série de desinformações nos levam a uma situação trágica. “As pessoas se desconectaram da sabedoria interna delas, e começaram a seguir regras”, fala, em entrevista ao Estadão.

Para nutricionista Sophie Deram, foco no emagrecimento está adoecendo as pessoas. Foto: Prostock-studio/Adobe Stock

“Todo mundo terceirizou a saúde, a fome, o sono. Tem aplicativos para tudo. Não vi ainda, mas com certeza vai ser feito, um aplicativo para te lembrar de ir ao banheiro. São coisas muito básicas que não deveríamos terceirizar. Essa terceirização nos faz perder a confiança no corpo”, diz.

Isso, por sua vez, nos transporta ao olho de um furacão, ou melhor, tempestade, como Sophie prefere chamar: uma crise de saúde composta pelo avanço de doenças crônicas e alta prevalência dos transtornos de saúde mental.

“Vivemos uma verdadeira tragédia, que combina sofrimento humano, sobrecarga médica e risco de colapso do sistema de saúde. Precisamos refletir sobre o que estamos fazendo, pois não está dando certo! Temos que parar de repetir os mesmos erros e buscar um novo olhar para a saúde”, escreve no livro.

'Pare de engolir mitos' defende a reconexão com o corpo e suas necessidades Foto: Editora Sextante/Estadão

Para ela, isso passa por repensar o foco excessivo no peso, apontado como fator de risco para várias doenças. “Incentivar a pessoa a emagrecer é uma fábrica de obesidade”, fala.

No livro, ela abre as portas de seu consultório – ela coordena o projeto de genética e atende no Programa de Tratamento de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas do IPq-FMUSP –, e conta como tem acolhido as vítimas dessa crise. “Uma das primeiras coisas que eu trabalho é sobre o que, como e por que ele come”, diz.

“O paciente precisa virar o protagonista. O médico ou o nutricionista não sabe melhor do que a pessoa (sobre ela mesma). A pessoa dirige seu próprio barco.”

Confira os principais trechos da entrevista:

Por que escrever esse livro? Senti, em alguns momentos, um certo tom de desabafo, no sentido de alguém cansado de falar a mesma coisa. Estou correto?

Tenho a ideia de escrever esse livro há 30 anos, porque senti na pele esses mitos da nutrição e da saúde quando eu morava nos Estados Unidos com meus filhos pequenos. Foi nesse momento que fui estudar Nutrição. Como sou engenheira agrônoma, tinha um bom background de ciência, de saber estudar e analisar pesquisa. O que me chamou atenção é o tanto de mitos que eu encontrei, falados até pelos professores e nas mídias, sem comprovação científica.

No começo, foi muito desagradável, porque eu fiz esses estudos para saber mais, e acabei ficando mais perdida. Eu fui até estudar genética, nutrigenômica, e agora estou estudando microbiota. Mas sempre volto ao básico: comer melhor, não entrar em tanta paranoia, ansiedade. A nutrição é muito mais complexa do que um simples cálculo de caloria.

Comecei esse meu grito há dez anos, quando escrevi meu primeiro livro, ‘O Peso das Dietas’, que era o tema da minha pesquisa. Sou coordenadora do projeto de genética dos transtornos alimentares e obesidade no laboratório de neurociência. Meu projeto é justamente buscar entender o que é o gatilho para mudança de comportamento, e está muito óbvio, hoje, que a dieta não somente não funciona, porque quase todo mundo volta a engordar, mas te faz até engordar mais e muda sua relação com a comida. As pessoas estão tentando emagrecer nessa sociedade gordofóbica, perdendo a saúde, perdendo aquela sabedoria alimentar, perdendo confiança no corpo, e acabam adoecendo.

Mas o problema não é só dieta restritiva, é o discurso nutricional e de saúde, gordofobia, todo o sistema que se chama sistema de saúde, mas que deveríamos chamar de sistema da doença. Nesses 30 últimos anos, a população está adoecendo, e a indústria farmacêutica está cada vez mais forte.

O fracasso da saúde está sendo um motor muito grande para toda a indústria. Por isso, o meu desabafo: as pessoas estão cada vez mais perdidas e adoecem, e o que vai ser oferecido para elas são mais e mais remédios, que, na realidade, vão remediar sem tratar.

A senhora diz que vivemos hoje uma crise de saúde. Como a definiria?

Não tem somente uma resposta. É uma tempestade, na qual a pessoa se desconectou da sabedoria dela, e começou a seguir regras. Uma desconexão do seu corpo não vai te ajudar a ganhar saúde. Se você não escuta seu corpo, dorme em horários que não são adequados e come sem fome, desregula toda uma máquina maravilhosa. O ser humano desistiu de escutar o corpo e de acreditar que ele é confiável. É uma tragédia!

Na Engenharia Agronômica, estudei todos os ciclos de vida, de todos os seres vivos do mundo, e todos têm essa sabedoria interna, silenciosa, que chamamos de inteligência do corpo, que é a homeostase. As próprias células estão na luta para buscar equilíbrio.

O ser humano desistiu de escutar o corpo e acreditar que ele é confiável. É uma tragédia!

Sophie Deram, nutricionista

Isso começa desde a infância, quando os pais fazem a introdução alimentar. É o primeiro momento do peso das dietas, porque vai ser o adulto que vai mandar nesse corpinho, e vemos que, em vez de respeitar a criança e a sabedoria da criança, muitas mães vão seguir aquelas regras rígidas de alimentação e de horário para dormir.

Em segundo lugar, há um exagero em buscar soluções milagrosas e de remédios para anestesiar o corpo.

A senhora também escreve que a maneira como tratamos essa crise mais atrapalha do que ajuda. Por quê? O que estamos fazendo de errado?

Temos a melhor Medicina que já existiu. Temos os remédios fantásticos, desenvolvemos uma vacina contra covid em um ano, uma coisa espetacular! Não estou criticando a Medicina, mas ela treina para prescrever remédio e cirurgia. Hoje, o maior problema são as doenças crônicas, e não mais as infecciosas. Quando você tem uma infecção, toma um antibiótico. A Medicina foi muito boa nisso, mas, agora, o problema maior está dentro da pessoa. Não é um bicho que causa uma infecção. É o próprio corpo que entra em doença crônica, seja diabetes, doença cardiovascular, e não existe prescrição (que resolva isso).

Esse aumento de doença crônica no mundo começou há mais ou menos 30 anos. No Brasil, até 45 anos atrás, o problema era desnutrição, e, de repente, é obesidade, sobrepeso, diabetes. O que aconteceu? Não teve mudança genética, ou seja, é a mesma população, mas o corpo está sofrendo doenças crônicas severas.

Quais são as explicações? O que mudou nos anos 1990? Fomos orientados a evitar gordura, ficar comendo mais alimentos light e diet. Quando você tira a gordura de uma pessoa, ela vai buscar mais carboidrato – hoje, tem um incentivo a comer mais proteína, mas, naturalmente, o ser humano não está buscando excesso de proteína. E também houve um foco maior no peso da pessoa. A própria OMS deu o corte de sobrepeso e obesidade pelo peso dividido a altura (isto é, o índice de massa corporal, ou IMC). A altura ninguém vai mexer, porque é considerada uma coisa que você não decide. O peso virou o alvo do profissional de saúde, e isso foi um grande erro.

Há quem aponte que o aumento da prevalência de doenças crônicas seja explicado principalmente por uma expectativa de vida maior. O que a senhora pensa?

Faz todo sentido. As pessoas estão vivendo mais e carregam mais doenças. A doença crônica, pela definição, não é rápida, é devagar. Quando você está preso dentro de uma doença crônica, só vai agravar se não fizer uma mudança de estilo de vida. Uma solução seria a mudança de estilo de vida, mas isso você não consegue prescrever. Imagina o médico falar ‘bom, a partir de agora mude seu estilo de vida, tchau, e volta daqui a um mês’. A pessoa fica presa, porque os estilos de vida são pilotos automáticos que adquirimos.

O estilo de vida está sendo muito estudado, porque, até agora, não existe prescrição de remédios para tratar doença crônica, mas o médico e o nutricionista foram treinados a prescrever. Agora, você vê que dentro daquele sucesso todo da indústria farmacêutica, tem todos esses suplementos. É uma pergunta, por exemplo, que eu não fazia há uns 15 anos (para os pacientes): ‘Quantos suplementos você está tomando?’. A resposta varia, mas de dez a 20, às vezes mais. As pessoas estão se automedicando também. O próprio paciente está perdido, acredita que o corpo dele não funciona sem ajuda de suplementos e remédios.

Muitos remédios são muito bem sucedidos para controlar doenças crônicas, como a insulina, no caso de diabetes. A senhora quer dizer que não há tratamento ou que não há como reverter o quadro com remédios?

Para o diabetes tipo 1, com certeza, a insulina foi um remédio maravilhoso, que salvou vidas. A pessoa vai precisar de insulina para não morrer. Mas o diabetes tipo 2, o mais prevalente hoje, que é resultante de fatores de risco, e um deles é a obesidade, não é pela insulina que você vai ajudar a pessoa. Você não trata diabetes tipo 2 com insulina, apenas se o pâncreas entrou em colapso. Por isso que, por exemplo, esses injetáveis são recomendados para o paciente que tem um colapso do pâncreas e precisa estimulá-lo a produzir insulina. O diabetes tipo 2 conseguimos reverter com mudança de estilo de vida. De novo: alimentação, sono, atividade física e melhor controle do estresse. Quando o pâncreas entrar em colapso, claro, vai precisar (de remédio) e, até agora, não existe reversão.

Obesidade é a mesma coisa. Não existe remédio padrão ouro para tratar obesidade. Deveríamos ver a obesidade mais como uma consequência do que a causa do problema. A pessoa engorda por quê? Porque o corpo está se defendendo, não tá bem, aí vai acumulando (gordura). Atacar o peso é como dar um remédio para baixar a febre. Você vai ajudar, vai remediar, mas não vai curar, não sabe por que a pessoa está com febre. Se você não atacar a causa, o problema vai voltar. É isso que está acontecendo com essas doenças crônicas.

A senhora escreve que a crise de saúde atual tem um componente de saúde mental. O que é o comer emocional? E qual o peso dele?

Na nutrição, há dois fatores bem descritos de ganho de peso. Um deles é fazer dieta, porque você engorda, emagrece, engorda, emagrece, engorda (o famoso efeito sanfona). O outro fator é o comer emocional, que é comer em momentos em que você não está com fome. Ele se desenvolve em ratos também e é muito ligado a uma relação conturbada com a comida.

É como se o cérebro fizesse questão de que você não se esqueça de comer. Ele vai usar a comida como refúgio para tudo. Você vai comer em momentos de tristeza, cansaço, tédio, ansiedade. E, dentro do comer emocional, esses alimentos são sempre ricos em energia: carboidrato e gordura. Isso sobrecarrega o corpo, e ele fica cansado de receber tanta energia que nem está pronto para processar.

A senhora reforça muito que nutrição não é matemática, mas sim biologia. Cita que caloria, por exemplo, é um conceito da física, e diz que não indicam nada sobre o peso e que contá-las pode trazer prejuízos à saúde. A nutrição deveria abandonar essa medida?

O profissional foi treinado para passar dieta. Eu mesma fui, e tive que desaprender. É muito difícil, dá muito medo. Aprendemos a calcular calorias e prescrever dieta. Não é questão de fazer a revolução, jogar tudo fora. Pode continuar fazendo avaliação de calorias, é um dado que pode ser interessante, mas jamais fazer o paciente entrar nesse cálculo. A pessoa não precisa saber tanto.

Inclusive, calcular calorias é um traço de comer transtornado. Na anorexia, meninas e meninos geralmente sabem mais do que o nutricionista, e essa noção de caloria não indica qualidade. O que a gente quer? Que o paciente coma melhor, não que ele entre numa calculadora para comer. Comer com mais qualidade é comer mais comida fresca, caseira.

Queremos que o paciente coma melhor, não que ele entre numa calculadora para comer

Sophie Deram, nutricionista

Nós, profissionais, podemos continuar calculando calorias, mas, na hora de falar à pessoa, ela é a especialista sobre ela mesma. Você vai apoiar e não virar o comandante, um general da pessoa. Deveríamos acolher o paciente, escutar e orientar, mas é ele que toma a decisão. Cada ser humano é uma entidade totalmente única.

Isso exige tempo. E, muitas vezes, o paciente vai ser julgado só pelo peso, e não pelo ‘como você está?’, ‘o que está acontecendo?’, ‘será que você engordou recentemente?’. Um número externo à pessoa não deveria ser o número que vai julgar se ela está ou não doente.

No Canadá, um país adiantado ao trabalhar doenças crônicas, eles falam que no tratamento da obesidade não podemos usar o peso como fator de avaliação, que a saúde é bem maior do que só o número do peso. Eles falam que, na primeira sessão com o paciente com obesidade, seria importante pedir permissão para falar sobre o peso. Aqui, o paciente é meio que pesado como gado: ‘Vamos emagrecer primeiro e depois a gente conversa’.

No livro, a senhora coloca em dúvida a visão de obesidade enquanto doença. Por quê? Alguns especialistas apontam que esse reconhecimento é importante para diminuir a estigmatização e pararmos de culpar a pessoa por seu peso. Alguns dizem, inclusive, que o discurso contra remédio e cirurgia tem raízes gordofóbicas. O que a senhora acha?

Eu concordo que isso pode ajudar no combate à estigmatização da obesidade. Sabemos que a maioria dos profissionais de saúde vai enxergar a pessoa com obesidade como preguiçosa, sem força de vontade, desleixada, que não tem autocuidado. Não sou contra a obesidade ser chamada de doença, mas prefiro chamar de condição. É uma condição, é um estado, não é seu peso que vai determinar se você está doente ou não. Mas é muito prático para a indústria: se a pessoa tá com o IMC 30, vamos bombardear de remédios. Agora tem até incentivo a passar remédios antes da obesidade, porque a pessoa está em sobrepeso.

Não é seu peso que vai determinar se você está doente ou não

Sophie Deram, nutricionista

Por que pessoas engordam ao longo do tempo? Porque elas são incentivadas a emagrecer. A mecânica do peso só vai fazer ela piorar. Ela vai fazer dieta, como o médico ou o nutricionista indicar, vai emagrecer, depois vai engordar tudo de volta. Ela vai engordar ainda mais, porque quando você emagrece rápido, perde músculos e água primeiro, e quando ganha peso rápido, ganha gordura. A pessoa depois de uma dieta não é a mesma. Ela vai engordar mais e ter o comportamento alimentar alterado, com mais comer emocional, mais vontade de comer e, às vezes, compulsão.

O que é muito assustador é que o próprio fato de incentivar uma pessoa a perder peso vai colocá-la em risco de entrar nesse gatilho do risco de obesidade e doença crônica. Na saúde pública da Europa, há uma discussão sobre parar de incentivar a emagrecer e, no lugar disso, incentivar a manter o peso, ou seja, não engordar mais. Incentivar a pessoa a emagrecer é uma fábrica de obesidade. Não sou a única a falar, tem uma pesquisadora da Noruega (Kirsi Pietiläinen) que fala que a dieta é, em parte, responsável pela epidemia da obesidade.

Você vai incentivar um paciente com obesidade a fazer dieta e vai colocá-lo numa situação pior. O raciocínio do profissional de saúde é que, quando a dieta não funciona, então vamos fazer cirurgia bariátrica. Só que a cirurgia vai atacar o quê? O estômago, quando, na realidade, a questão é muito mais no cérebro. Não adianta reduzir o estômago se você não mudar o comportamento da pessoa.

Por que pessoas engordam ao longo do tempo? Porque elas são incentivadas a emagrecer

Sophie Deram, nutricionista

Por isso que, para mim, a obesidade é uma condição, na qual você armazena um tecido gordo maior, com risco para doença cardiovascular, diabetes, etc. Mas a questão é: por que você engordou?

Tem estudos que mostram que não é porque você está com IMC 30, 31, 32, que necessariamente tem um problema de saúde. (Ela cita um estudo, publicado na revista científica Science, que mostra que, em uma amostra de adultos dos Estados Unidos com IMC na faixa de obesidade, 10% deles eram considerados metabolicamente saudáveis). Vemos que, ao longo do tempo, se a pessoa fica na obesidade, sim, aí pode começar a ter uma inflamação dos tecidos adiposos e entrar em doença.

Se um paciente chega com obesidade no meu consultório, quero ver os exames primeiro, ver se tem problema de saúde. Se tem, vamos trabalhar a saúde primeiro, não atacar o peso. Mas isso é complicado de explicar, porque parece contraintuitivo.

O que fazer com esse paciente então? É preciso fazer ele se reconectar com o corpo? Como?

Todos os pacientes querem emagrecer. Eu vou falar ‘não vou esquecer que você quer emagrecer, só que vamos mudar o foco’. A vida inteira você tentou emagrecer e, tentando emagrecer, só engordou. E o paciente vai falar ‘pois é, faz 20 anos que estou tentando emagrecer. Comecei querendo emagrecer três quilos, hoje preciso emagrecer 20′. O nosso foco vai ser comer melhor, viver melhor, melhorar o estilo de vida. Muitas vezes, o paciente tem medo, porque ele só engordou a vida inteira. A minha dificuldade é fazer o paciente comer, porque ele não quer comer.

Focamos em comer melhor. Como? Primeiro, tomar consciência de como você está comendo. Muitos pacientes não sabem, porque eles seguiram regras externas de várias dietas. Digo: ‘vamos observar como você funciona, e vamos melhorar como você come’. Geralmente, vem um pouquinho de tristeza do paciente, porque ele fala ‘nossa, eu tento comer perfeito e, a partir das 17h, desanda’. É o famoso comer emocional.

Como melhorar isso? O primeiro passo é ter certeza de que você não está com fome. Se está com fome, é melhor comer. Uma vez que cuidou dessa fome física, precisa perceber o que tem de psicológico na sua fome. É um trabalho de terapia.

A minha dificuldade é fazer o paciente comer, porque ele não quer comer

Sophie Deram, nutricionista

Trabalho geralmente com cinco sessões, e depois eu deixo o paciente decidir se ele quer continuar ou não, mas preciso de pelo menos cinco sessões para abordar toda a questão do comportamento. Os pacientes melhoram.

Fiz um uma pesquisa interna, não científica, com meus pacientes. Perguntei: ‘Você tá comendo melhor?’. ‘Nossa, muito melhor, porque eu não tenho tanto comer emocional’. Pergunto: ‘Você acha que você come menos?’. A maioria fala que sim, de 30% a 50%. Comendo melhor, mais em paz, respeitando o corpo e as vontades, mas identificando o comer emocional para responder sem comer a essas emoções.

O paciente não somente come melhor, mas ele come menos. Quando você tem permissão de comer, não precisa mais fazer ‘despedida’, se entupir de um pacote de doce. É uma reeducação total da relação com a comida. Eu incentivo também atividade física e dormir melhor.

O que é uma alimentação saudável?

Não tem consenso dentro da nutrição. Alguns vão dizer que é comer tudo orgânico, outros vão dizer que não pode glúten, lactose ou alimentos inflamatórios. E tudo isso é defendido por alguns profissionais sem muitas vezes ter ciência por trás. Alimentação saudável deveria ter uma definição bem mais ampla, porque até alimentos como um bolo de chocolate podem ser saudáveis se você come em paz.

Tenho uma definição do comer mais saudável que é comer de tudo sem restrição, sem culpa, com prazer e respeitando a fome e as emoções (‘comer de tudo, mas não tudo’ é o mantra que repete várias vezes no novo livro). No comer saudável, não será um alimento ou outro que vai fazer a diferença, é mais uma atitude geral. E, claro, incentivo mais alimentos frescos, caseiros, menos dietas e mais legumes e frutas. É importante ver o seu comer como um padrão. Não é uma refeição que vai estragar toda a saúde do seu corpo.

Como se proteger de mitos, então?

No final do livro, tem uma lista (do que fazer). Primeiro, reconectar-se: você é o seu melhor especialista. É interessante ter informação, mas tem que ter muita cautela em filtrar. Se escutar uma coisa que te assusta, busque uma segunda opinião. Outra coisa: nenhum corpo funciona igual. Então, o especialista, aquela pessoa que estuda mesmo, vai sempre ter um discurso relativamente ponderado. Jamais vai ser oito ou 80, porque não existe essa certidão.

Os discursos terroristas desses charlatões mudam constantemente. Eles vão atacar o leite, depois o pão... Meu livro foi escrito para as pessoas não ficarem com mais medo, pelo contrário. A ideia é deixá-las mais empoderadas a falar e a questionar se é verdade ou não e de onde vem as informações.

“E se o que aprendemos a chamar de ‘nos cuidar’ for justamente o que está nos adoecendo?”, provoca Sophie Deram em novo livro “Pare de engolir mitos: Como as novas descobertas da nutrição podem nos orientar em meio a modismos, desinformação e pseudociência”, lançado nesta segunda-feira, 6, pela Editora Sextante.

A franco-brasileira é nutricionista, engenheira agrônoma e autora de outros dois outros livros, “O peso das dietas” e “Os 7 pilares da saúde alimentar”. Uma das primeiras a usar o termo terrorismo nutricional e advogar contra as dietas no Brasil, ela questiona na nova obra uma série de mitos que permeiam discussões sobre nutrição, alimentação e saúde.

Coloca em xeque, à luz de evidências científicas – ou da falta delas –, crenças amplamente divulgadas e aceitas, como “não devemos ingerir líquidos durante a refeição”, até modismos mais recentes, mas que já têm uma certa expressão dentro das redes sociais, a exemplo do jejum intermitente.

Em alguns trechos, o livro beira o desabafo de uma profissional cansada de dizer a mesma coisa repetidamente. “É a leitura que eu gostaria de dar aos meus pacientes antes da primeira consulta”, explica logo nas primeiras páginas.

Para ela, essa série de desinformações nos levam a uma situação trágica. “As pessoas se desconectaram da sabedoria interna delas, e começaram a seguir regras”, fala, em entrevista ao Estadão.

Para nutricionista Sophie Deram, foco no emagrecimento está adoecendo as pessoas. Foto: Prostock-studio/Adobe Stock

“Todo mundo terceirizou a saúde, a fome, o sono. Tem aplicativos para tudo. Não vi ainda, mas com certeza vai ser feito, um aplicativo para te lembrar de ir ao banheiro. São coisas muito básicas que não deveríamos terceirizar. Essa terceirização nos faz perder a confiança no corpo”, diz.

Isso, por sua vez, nos transporta ao olho de um furacão, ou melhor, tempestade, como Sophie prefere chamar: uma crise de saúde composta pelo avanço de doenças crônicas e alta prevalência dos transtornos de saúde mental.

“Vivemos uma verdadeira tragédia, que combina sofrimento humano, sobrecarga médica e risco de colapso do sistema de saúde. Precisamos refletir sobre o que estamos fazendo, pois não está dando certo! Temos que parar de repetir os mesmos erros e buscar um novo olhar para a saúde”, escreve no livro.

'Pare de engolir mitos' defende a reconexão com o corpo e suas necessidades Foto: Editora Sextante/Estadão

Para ela, isso passa por repensar o foco excessivo no peso, apontado como fator de risco para várias doenças. “Incentivar a pessoa a emagrecer é uma fábrica de obesidade”, fala.

No livro, ela abre as portas de seu consultório – ela coordena o projeto de genética e atende no Programa de Tratamento de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas do IPq-FMUSP –, e conta como tem acolhido as vítimas dessa crise. “Uma das primeiras coisas que eu trabalho é sobre o que, como e por que ele come”, diz.

“O paciente precisa virar o protagonista. O médico ou o nutricionista não sabe melhor do que a pessoa (sobre ela mesma). A pessoa dirige seu próprio barco.”

Confira os principais trechos da entrevista:

Por que escrever esse livro? Senti, em alguns momentos, um certo tom de desabafo, no sentido de alguém cansado de falar a mesma coisa. Estou correto?

Tenho a ideia de escrever esse livro há 30 anos, porque senti na pele esses mitos da nutrição e da saúde quando eu morava nos Estados Unidos com meus filhos pequenos. Foi nesse momento que fui estudar Nutrição. Como sou engenheira agrônoma, tinha um bom background de ciência, de saber estudar e analisar pesquisa. O que me chamou atenção é o tanto de mitos que eu encontrei, falados até pelos professores e nas mídias, sem comprovação científica.

No começo, foi muito desagradável, porque eu fiz esses estudos para saber mais, e acabei ficando mais perdida. Eu fui até estudar genética, nutrigenômica, e agora estou estudando microbiota. Mas sempre volto ao básico: comer melhor, não entrar em tanta paranoia, ansiedade. A nutrição é muito mais complexa do que um simples cálculo de caloria.

Comecei esse meu grito há dez anos, quando escrevi meu primeiro livro, ‘O Peso das Dietas’, que era o tema da minha pesquisa. Sou coordenadora do projeto de genética dos transtornos alimentares e obesidade no laboratório de neurociência. Meu projeto é justamente buscar entender o que é o gatilho para mudança de comportamento, e está muito óbvio, hoje, que a dieta não somente não funciona, porque quase todo mundo volta a engordar, mas te faz até engordar mais e muda sua relação com a comida. As pessoas estão tentando emagrecer nessa sociedade gordofóbica, perdendo a saúde, perdendo aquela sabedoria alimentar, perdendo confiança no corpo, e acabam adoecendo.

Mas o problema não é só dieta restritiva, é o discurso nutricional e de saúde, gordofobia, todo o sistema que se chama sistema de saúde, mas que deveríamos chamar de sistema da doença. Nesses 30 últimos anos, a população está adoecendo, e a indústria farmacêutica está cada vez mais forte.

O fracasso da saúde está sendo um motor muito grande para toda a indústria. Por isso, o meu desabafo: as pessoas estão cada vez mais perdidas e adoecem, e o que vai ser oferecido para elas são mais e mais remédios, que, na realidade, vão remediar sem tratar.

A senhora diz que vivemos hoje uma crise de saúde. Como a definiria?

Não tem somente uma resposta. É uma tempestade, na qual a pessoa se desconectou da sabedoria dela, e começou a seguir regras. Uma desconexão do seu corpo não vai te ajudar a ganhar saúde. Se você não escuta seu corpo, dorme em horários que não são adequados e come sem fome, desregula toda uma máquina maravilhosa. O ser humano desistiu de escutar o corpo e de acreditar que ele é confiável. É uma tragédia!

Na Engenharia Agronômica, estudei todos os ciclos de vida, de todos os seres vivos do mundo, e todos têm essa sabedoria interna, silenciosa, que chamamos de inteligência do corpo, que é a homeostase. As próprias células estão na luta para buscar equilíbrio.

O ser humano desistiu de escutar o corpo e acreditar que ele é confiável. É uma tragédia!

Sophie Deram, nutricionista

Isso começa desde a infância, quando os pais fazem a introdução alimentar. É o primeiro momento do peso das dietas, porque vai ser o adulto que vai mandar nesse corpinho, e vemos que, em vez de respeitar a criança e a sabedoria da criança, muitas mães vão seguir aquelas regras rígidas de alimentação e de horário para dormir.

Em segundo lugar, há um exagero em buscar soluções milagrosas e de remédios para anestesiar o corpo.

A senhora também escreve que a maneira como tratamos essa crise mais atrapalha do que ajuda. Por quê? O que estamos fazendo de errado?

Temos a melhor Medicina que já existiu. Temos os remédios fantásticos, desenvolvemos uma vacina contra covid em um ano, uma coisa espetacular! Não estou criticando a Medicina, mas ela treina para prescrever remédio e cirurgia. Hoje, o maior problema são as doenças crônicas, e não mais as infecciosas. Quando você tem uma infecção, toma um antibiótico. A Medicina foi muito boa nisso, mas, agora, o problema maior está dentro da pessoa. Não é um bicho que causa uma infecção. É o próprio corpo que entra em doença crônica, seja diabetes, doença cardiovascular, e não existe prescrição (que resolva isso).

Esse aumento de doença crônica no mundo começou há mais ou menos 30 anos. No Brasil, até 45 anos atrás, o problema era desnutrição, e, de repente, é obesidade, sobrepeso, diabetes. O que aconteceu? Não teve mudança genética, ou seja, é a mesma população, mas o corpo está sofrendo doenças crônicas severas.

Quais são as explicações? O que mudou nos anos 1990? Fomos orientados a evitar gordura, ficar comendo mais alimentos light e diet. Quando você tira a gordura de uma pessoa, ela vai buscar mais carboidrato – hoje, tem um incentivo a comer mais proteína, mas, naturalmente, o ser humano não está buscando excesso de proteína. E também houve um foco maior no peso da pessoa. A própria OMS deu o corte de sobrepeso e obesidade pelo peso dividido a altura (isto é, o índice de massa corporal, ou IMC). A altura ninguém vai mexer, porque é considerada uma coisa que você não decide. O peso virou o alvo do profissional de saúde, e isso foi um grande erro.

Há quem aponte que o aumento da prevalência de doenças crônicas seja explicado principalmente por uma expectativa de vida maior. O que a senhora pensa?

Faz todo sentido. As pessoas estão vivendo mais e carregam mais doenças. A doença crônica, pela definição, não é rápida, é devagar. Quando você está preso dentro de uma doença crônica, só vai agravar se não fizer uma mudança de estilo de vida. Uma solução seria a mudança de estilo de vida, mas isso você não consegue prescrever. Imagina o médico falar ‘bom, a partir de agora mude seu estilo de vida, tchau, e volta daqui a um mês’. A pessoa fica presa, porque os estilos de vida são pilotos automáticos que adquirimos.

O estilo de vida está sendo muito estudado, porque, até agora, não existe prescrição de remédios para tratar doença crônica, mas o médico e o nutricionista foram treinados a prescrever. Agora, você vê que dentro daquele sucesso todo da indústria farmacêutica, tem todos esses suplementos. É uma pergunta, por exemplo, que eu não fazia há uns 15 anos (para os pacientes): ‘Quantos suplementos você está tomando?’. A resposta varia, mas de dez a 20, às vezes mais. As pessoas estão se automedicando também. O próprio paciente está perdido, acredita que o corpo dele não funciona sem ajuda de suplementos e remédios.

Muitos remédios são muito bem sucedidos para controlar doenças crônicas, como a insulina, no caso de diabetes. A senhora quer dizer que não há tratamento ou que não há como reverter o quadro com remédios?

Para o diabetes tipo 1, com certeza, a insulina foi um remédio maravilhoso, que salvou vidas. A pessoa vai precisar de insulina para não morrer. Mas o diabetes tipo 2, o mais prevalente hoje, que é resultante de fatores de risco, e um deles é a obesidade, não é pela insulina que você vai ajudar a pessoa. Você não trata diabetes tipo 2 com insulina, apenas se o pâncreas entrou em colapso. Por isso que, por exemplo, esses injetáveis são recomendados para o paciente que tem um colapso do pâncreas e precisa estimulá-lo a produzir insulina. O diabetes tipo 2 conseguimos reverter com mudança de estilo de vida. De novo: alimentação, sono, atividade física e melhor controle do estresse. Quando o pâncreas entrar em colapso, claro, vai precisar (de remédio) e, até agora, não existe reversão.

Obesidade é a mesma coisa. Não existe remédio padrão ouro para tratar obesidade. Deveríamos ver a obesidade mais como uma consequência do que a causa do problema. A pessoa engorda por quê? Porque o corpo está se defendendo, não tá bem, aí vai acumulando (gordura). Atacar o peso é como dar um remédio para baixar a febre. Você vai ajudar, vai remediar, mas não vai curar, não sabe por que a pessoa está com febre. Se você não atacar a causa, o problema vai voltar. É isso que está acontecendo com essas doenças crônicas.

A senhora escreve que a crise de saúde atual tem um componente de saúde mental. O que é o comer emocional? E qual o peso dele?

Na nutrição, há dois fatores bem descritos de ganho de peso. Um deles é fazer dieta, porque você engorda, emagrece, engorda, emagrece, engorda (o famoso efeito sanfona). O outro fator é o comer emocional, que é comer em momentos em que você não está com fome. Ele se desenvolve em ratos também e é muito ligado a uma relação conturbada com a comida.

É como se o cérebro fizesse questão de que você não se esqueça de comer. Ele vai usar a comida como refúgio para tudo. Você vai comer em momentos de tristeza, cansaço, tédio, ansiedade. E, dentro do comer emocional, esses alimentos são sempre ricos em energia: carboidrato e gordura. Isso sobrecarrega o corpo, e ele fica cansado de receber tanta energia que nem está pronto para processar.

A senhora reforça muito que nutrição não é matemática, mas sim biologia. Cita que caloria, por exemplo, é um conceito da física, e diz que não indicam nada sobre o peso e que contá-las pode trazer prejuízos à saúde. A nutrição deveria abandonar essa medida?

O profissional foi treinado para passar dieta. Eu mesma fui, e tive que desaprender. É muito difícil, dá muito medo. Aprendemos a calcular calorias e prescrever dieta. Não é questão de fazer a revolução, jogar tudo fora. Pode continuar fazendo avaliação de calorias, é um dado que pode ser interessante, mas jamais fazer o paciente entrar nesse cálculo. A pessoa não precisa saber tanto.

Inclusive, calcular calorias é um traço de comer transtornado. Na anorexia, meninas e meninos geralmente sabem mais do que o nutricionista, e essa noção de caloria não indica qualidade. O que a gente quer? Que o paciente coma melhor, não que ele entre numa calculadora para comer. Comer com mais qualidade é comer mais comida fresca, caseira.

Queremos que o paciente coma melhor, não que ele entre numa calculadora para comer

Sophie Deram, nutricionista

Nós, profissionais, podemos continuar calculando calorias, mas, na hora de falar à pessoa, ela é a especialista sobre ela mesma. Você vai apoiar e não virar o comandante, um general da pessoa. Deveríamos acolher o paciente, escutar e orientar, mas é ele que toma a decisão. Cada ser humano é uma entidade totalmente única.

Isso exige tempo. E, muitas vezes, o paciente vai ser julgado só pelo peso, e não pelo ‘como você está?’, ‘o que está acontecendo?’, ‘será que você engordou recentemente?’. Um número externo à pessoa não deveria ser o número que vai julgar se ela está ou não doente.

No Canadá, um país adiantado ao trabalhar doenças crônicas, eles falam que no tratamento da obesidade não podemos usar o peso como fator de avaliação, que a saúde é bem maior do que só o número do peso. Eles falam que, na primeira sessão com o paciente com obesidade, seria importante pedir permissão para falar sobre o peso. Aqui, o paciente é meio que pesado como gado: ‘Vamos emagrecer primeiro e depois a gente conversa’.

No livro, a senhora coloca em dúvida a visão de obesidade enquanto doença. Por quê? Alguns especialistas apontam que esse reconhecimento é importante para diminuir a estigmatização e pararmos de culpar a pessoa por seu peso. Alguns dizem, inclusive, que o discurso contra remédio e cirurgia tem raízes gordofóbicas. O que a senhora acha?

Eu concordo que isso pode ajudar no combate à estigmatização da obesidade. Sabemos que a maioria dos profissionais de saúde vai enxergar a pessoa com obesidade como preguiçosa, sem força de vontade, desleixada, que não tem autocuidado. Não sou contra a obesidade ser chamada de doença, mas prefiro chamar de condição. É uma condição, é um estado, não é seu peso que vai determinar se você está doente ou não. Mas é muito prático para a indústria: se a pessoa tá com o IMC 30, vamos bombardear de remédios. Agora tem até incentivo a passar remédios antes da obesidade, porque a pessoa está em sobrepeso.

Não é seu peso que vai determinar se você está doente ou não

Sophie Deram, nutricionista

Por que pessoas engordam ao longo do tempo? Porque elas são incentivadas a emagrecer. A mecânica do peso só vai fazer ela piorar. Ela vai fazer dieta, como o médico ou o nutricionista indicar, vai emagrecer, depois vai engordar tudo de volta. Ela vai engordar ainda mais, porque quando você emagrece rápido, perde músculos e água primeiro, e quando ganha peso rápido, ganha gordura. A pessoa depois de uma dieta não é a mesma. Ela vai engordar mais e ter o comportamento alimentar alterado, com mais comer emocional, mais vontade de comer e, às vezes, compulsão.

O que é muito assustador é que o próprio fato de incentivar uma pessoa a perder peso vai colocá-la em risco de entrar nesse gatilho do risco de obesidade e doença crônica. Na saúde pública da Europa, há uma discussão sobre parar de incentivar a emagrecer e, no lugar disso, incentivar a manter o peso, ou seja, não engordar mais. Incentivar a pessoa a emagrecer é uma fábrica de obesidade. Não sou a única a falar, tem uma pesquisadora da Noruega (Kirsi Pietiläinen) que fala que a dieta é, em parte, responsável pela epidemia da obesidade.

Você vai incentivar um paciente com obesidade a fazer dieta e vai colocá-lo numa situação pior. O raciocínio do profissional de saúde é que, quando a dieta não funciona, então vamos fazer cirurgia bariátrica. Só que a cirurgia vai atacar o quê? O estômago, quando, na realidade, a questão é muito mais no cérebro. Não adianta reduzir o estômago se você não mudar o comportamento da pessoa.

Por que pessoas engordam ao longo do tempo? Porque elas são incentivadas a emagrecer

Sophie Deram, nutricionista

Por isso que, para mim, a obesidade é uma condição, na qual você armazena um tecido gordo maior, com risco para doença cardiovascular, diabetes, etc. Mas a questão é: por que você engordou?

Tem estudos que mostram que não é porque você está com IMC 30, 31, 32, que necessariamente tem um problema de saúde. (Ela cita um estudo, publicado na revista científica Science, que mostra que, em uma amostra de adultos dos Estados Unidos com IMC na faixa de obesidade, 10% deles eram considerados metabolicamente saudáveis). Vemos que, ao longo do tempo, se a pessoa fica na obesidade, sim, aí pode começar a ter uma inflamação dos tecidos adiposos e entrar em doença.

Se um paciente chega com obesidade no meu consultório, quero ver os exames primeiro, ver se tem problema de saúde. Se tem, vamos trabalhar a saúde primeiro, não atacar o peso. Mas isso é complicado de explicar, porque parece contraintuitivo.

O que fazer com esse paciente então? É preciso fazer ele se reconectar com o corpo? Como?

Todos os pacientes querem emagrecer. Eu vou falar ‘não vou esquecer que você quer emagrecer, só que vamos mudar o foco’. A vida inteira você tentou emagrecer e, tentando emagrecer, só engordou. E o paciente vai falar ‘pois é, faz 20 anos que estou tentando emagrecer. Comecei querendo emagrecer três quilos, hoje preciso emagrecer 20′. O nosso foco vai ser comer melhor, viver melhor, melhorar o estilo de vida. Muitas vezes, o paciente tem medo, porque ele só engordou a vida inteira. A minha dificuldade é fazer o paciente comer, porque ele não quer comer.

Focamos em comer melhor. Como? Primeiro, tomar consciência de como você está comendo. Muitos pacientes não sabem, porque eles seguiram regras externas de várias dietas. Digo: ‘vamos observar como você funciona, e vamos melhorar como você come’. Geralmente, vem um pouquinho de tristeza do paciente, porque ele fala ‘nossa, eu tento comer perfeito e, a partir das 17h, desanda’. É o famoso comer emocional.

Como melhorar isso? O primeiro passo é ter certeza de que você não está com fome. Se está com fome, é melhor comer. Uma vez que cuidou dessa fome física, precisa perceber o que tem de psicológico na sua fome. É um trabalho de terapia.

A minha dificuldade é fazer o paciente comer, porque ele não quer comer

Sophie Deram, nutricionista

Trabalho geralmente com cinco sessões, e depois eu deixo o paciente decidir se ele quer continuar ou não, mas preciso de pelo menos cinco sessões para abordar toda a questão do comportamento. Os pacientes melhoram.

Fiz um uma pesquisa interna, não científica, com meus pacientes. Perguntei: ‘Você tá comendo melhor?’. ‘Nossa, muito melhor, porque eu não tenho tanto comer emocional’. Pergunto: ‘Você acha que você come menos?’. A maioria fala que sim, de 30% a 50%. Comendo melhor, mais em paz, respeitando o corpo e as vontades, mas identificando o comer emocional para responder sem comer a essas emoções.

O paciente não somente come melhor, mas ele come menos. Quando você tem permissão de comer, não precisa mais fazer ‘despedida’, se entupir de um pacote de doce. É uma reeducação total da relação com a comida. Eu incentivo também atividade física e dormir melhor.

O que é uma alimentação saudável?

Não tem consenso dentro da nutrição. Alguns vão dizer que é comer tudo orgânico, outros vão dizer que não pode glúten, lactose ou alimentos inflamatórios. E tudo isso é defendido por alguns profissionais sem muitas vezes ter ciência por trás. Alimentação saudável deveria ter uma definição bem mais ampla, porque até alimentos como um bolo de chocolate podem ser saudáveis se você come em paz.

Tenho uma definição do comer mais saudável que é comer de tudo sem restrição, sem culpa, com prazer e respeitando a fome e as emoções (‘comer de tudo, mas não tudo’ é o mantra que repete várias vezes no novo livro). No comer saudável, não será um alimento ou outro que vai fazer a diferença, é mais uma atitude geral. E, claro, incentivo mais alimentos frescos, caseiros, menos dietas e mais legumes e frutas. É importante ver o seu comer como um padrão. Não é uma refeição que vai estragar toda a saúde do seu corpo.

Como se proteger de mitos, então?

No final do livro, tem uma lista (do que fazer). Primeiro, reconectar-se: você é o seu melhor especialista. É interessante ter informação, mas tem que ter muita cautela em filtrar. Se escutar uma coisa que te assusta, busque uma segunda opinião. Outra coisa: nenhum corpo funciona igual. Então, o especialista, aquela pessoa que estuda mesmo, vai sempre ter um discurso relativamente ponderado. Jamais vai ser oito ou 80, porque não existe essa certidão.

Os discursos terroristas desses charlatões mudam constantemente. Eles vão atacar o leite, depois o pão... Meu livro foi escrito para as pessoas não ficarem com mais medo, pelo contrário. A ideia é deixá-las mais empoderadas a falar e a questionar se é verdade ou não e de onde vem as informações.

“E se o que aprendemos a chamar de ‘nos cuidar’ for justamente o que está nos adoecendo?”, provoca Sophie Deram em novo livro “Pare de engolir mitos: Como as novas descobertas da nutrição podem nos orientar em meio a modismos, desinformação e pseudociência”, lançado nesta segunda-feira, 6, pela Editora Sextante.

A franco-brasileira é nutricionista, engenheira agrônoma e autora de outros dois outros livros, “O peso das dietas” e “Os 7 pilares da saúde alimentar”. Uma das primeiras a usar o termo terrorismo nutricional e advogar contra as dietas no Brasil, ela questiona na nova obra uma série de mitos que permeiam discussões sobre nutrição, alimentação e saúde.

Coloca em xeque, à luz de evidências científicas – ou da falta delas –, crenças amplamente divulgadas e aceitas, como “não devemos ingerir líquidos durante a refeição”, até modismos mais recentes, mas que já têm uma certa expressão dentro das redes sociais, a exemplo do jejum intermitente.

Em alguns trechos, o livro beira o desabafo de uma profissional cansada de dizer a mesma coisa repetidamente. “É a leitura que eu gostaria de dar aos meus pacientes antes da primeira consulta”, explica logo nas primeiras páginas.

Para ela, essa série de desinformações nos levam a uma situação trágica. “As pessoas se desconectaram da sabedoria interna delas, e começaram a seguir regras”, fala, em entrevista ao Estadão.

Para nutricionista Sophie Deram, foco no emagrecimento está adoecendo as pessoas. Foto: Prostock-studio/Adobe Stock

“Todo mundo terceirizou a saúde, a fome, o sono. Tem aplicativos para tudo. Não vi ainda, mas com certeza vai ser feito, um aplicativo para te lembrar de ir ao banheiro. São coisas muito básicas que não deveríamos terceirizar. Essa terceirização nos faz perder a confiança no corpo”, diz.

Isso, por sua vez, nos transporta ao olho de um furacão, ou melhor, tempestade, como Sophie prefere chamar: uma crise de saúde composta pelo avanço de doenças crônicas e alta prevalência dos transtornos de saúde mental.

“Vivemos uma verdadeira tragédia, que combina sofrimento humano, sobrecarga médica e risco de colapso do sistema de saúde. Precisamos refletir sobre o que estamos fazendo, pois não está dando certo! Temos que parar de repetir os mesmos erros e buscar um novo olhar para a saúde”, escreve no livro.

'Pare de engolir mitos' defende a reconexão com o corpo e suas necessidades Foto: Editora Sextante/Estadão

Para ela, isso passa por repensar o foco excessivo no peso, apontado como fator de risco para várias doenças. “Incentivar a pessoa a emagrecer é uma fábrica de obesidade”, fala.

No livro, ela abre as portas de seu consultório – ela coordena o projeto de genética e atende no Programa de Tratamento de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas do IPq-FMUSP –, e conta como tem acolhido as vítimas dessa crise. “Uma das primeiras coisas que eu trabalho é sobre o que, como e por que ele come”, diz.

“O paciente precisa virar o protagonista. O médico ou o nutricionista não sabe melhor do que a pessoa (sobre ela mesma). A pessoa dirige seu próprio barco.”

Confira os principais trechos da entrevista:

Por que escrever esse livro? Senti, em alguns momentos, um certo tom de desabafo, no sentido de alguém cansado de falar a mesma coisa. Estou correto?

Tenho a ideia de escrever esse livro há 30 anos, porque senti na pele esses mitos da nutrição e da saúde quando eu morava nos Estados Unidos com meus filhos pequenos. Foi nesse momento que fui estudar Nutrição. Como sou engenheira agrônoma, tinha um bom background de ciência, de saber estudar e analisar pesquisa. O que me chamou atenção é o tanto de mitos que eu encontrei, falados até pelos professores e nas mídias, sem comprovação científica.

No começo, foi muito desagradável, porque eu fiz esses estudos para saber mais, e acabei ficando mais perdida. Eu fui até estudar genética, nutrigenômica, e agora estou estudando microbiota. Mas sempre volto ao básico: comer melhor, não entrar em tanta paranoia, ansiedade. A nutrição é muito mais complexa do que um simples cálculo de caloria.

Comecei esse meu grito há dez anos, quando escrevi meu primeiro livro, ‘O Peso das Dietas’, que era o tema da minha pesquisa. Sou coordenadora do projeto de genética dos transtornos alimentares e obesidade no laboratório de neurociência. Meu projeto é justamente buscar entender o que é o gatilho para mudança de comportamento, e está muito óbvio, hoje, que a dieta não somente não funciona, porque quase todo mundo volta a engordar, mas te faz até engordar mais e muda sua relação com a comida. As pessoas estão tentando emagrecer nessa sociedade gordofóbica, perdendo a saúde, perdendo aquela sabedoria alimentar, perdendo confiança no corpo, e acabam adoecendo.

Mas o problema não é só dieta restritiva, é o discurso nutricional e de saúde, gordofobia, todo o sistema que se chama sistema de saúde, mas que deveríamos chamar de sistema da doença. Nesses 30 últimos anos, a população está adoecendo, e a indústria farmacêutica está cada vez mais forte.

O fracasso da saúde está sendo um motor muito grande para toda a indústria. Por isso, o meu desabafo: as pessoas estão cada vez mais perdidas e adoecem, e o que vai ser oferecido para elas são mais e mais remédios, que, na realidade, vão remediar sem tratar.

A senhora diz que vivemos hoje uma crise de saúde. Como a definiria?

Não tem somente uma resposta. É uma tempestade, na qual a pessoa se desconectou da sabedoria dela, e começou a seguir regras. Uma desconexão do seu corpo não vai te ajudar a ganhar saúde. Se você não escuta seu corpo, dorme em horários que não são adequados e come sem fome, desregula toda uma máquina maravilhosa. O ser humano desistiu de escutar o corpo e de acreditar que ele é confiável. É uma tragédia!

Na Engenharia Agronômica, estudei todos os ciclos de vida, de todos os seres vivos do mundo, e todos têm essa sabedoria interna, silenciosa, que chamamos de inteligência do corpo, que é a homeostase. As próprias células estão na luta para buscar equilíbrio.

O ser humano desistiu de escutar o corpo e acreditar que ele é confiável. É uma tragédia!

Sophie Deram, nutricionista

Isso começa desde a infância, quando os pais fazem a introdução alimentar. É o primeiro momento do peso das dietas, porque vai ser o adulto que vai mandar nesse corpinho, e vemos que, em vez de respeitar a criança e a sabedoria da criança, muitas mães vão seguir aquelas regras rígidas de alimentação e de horário para dormir.

Em segundo lugar, há um exagero em buscar soluções milagrosas e de remédios para anestesiar o corpo.

A senhora também escreve que a maneira como tratamos essa crise mais atrapalha do que ajuda. Por quê? O que estamos fazendo de errado?

Temos a melhor Medicina que já existiu. Temos os remédios fantásticos, desenvolvemos uma vacina contra covid em um ano, uma coisa espetacular! Não estou criticando a Medicina, mas ela treina para prescrever remédio e cirurgia. Hoje, o maior problema são as doenças crônicas, e não mais as infecciosas. Quando você tem uma infecção, toma um antibiótico. A Medicina foi muito boa nisso, mas, agora, o problema maior está dentro da pessoa. Não é um bicho que causa uma infecção. É o próprio corpo que entra em doença crônica, seja diabetes, doença cardiovascular, e não existe prescrição (que resolva isso).

Esse aumento de doença crônica no mundo começou há mais ou menos 30 anos. No Brasil, até 45 anos atrás, o problema era desnutrição, e, de repente, é obesidade, sobrepeso, diabetes. O que aconteceu? Não teve mudança genética, ou seja, é a mesma população, mas o corpo está sofrendo doenças crônicas severas.

Quais são as explicações? O que mudou nos anos 1990? Fomos orientados a evitar gordura, ficar comendo mais alimentos light e diet. Quando você tira a gordura de uma pessoa, ela vai buscar mais carboidrato – hoje, tem um incentivo a comer mais proteína, mas, naturalmente, o ser humano não está buscando excesso de proteína. E também houve um foco maior no peso da pessoa. A própria OMS deu o corte de sobrepeso e obesidade pelo peso dividido a altura (isto é, o índice de massa corporal, ou IMC). A altura ninguém vai mexer, porque é considerada uma coisa que você não decide. O peso virou o alvo do profissional de saúde, e isso foi um grande erro.

Há quem aponte que o aumento da prevalência de doenças crônicas seja explicado principalmente por uma expectativa de vida maior. O que a senhora pensa?

Faz todo sentido. As pessoas estão vivendo mais e carregam mais doenças. A doença crônica, pela definição, não é rápida, é devagar. Quando você está preso dentro de uma doença crônica, só vai agravar se não fizer uma mudança de estilo de vida. Uma solução seria a mudança de estilo de vida, mas isso você não consegue prescrever. Imagina o médico falar ‘bom, a partir de agora mude seu estilo de vida, tchau, e volta daqui a um mês’. A pessoa fica presa, porque os estilos de vida são pilotos automáticos que adquirimos.

O estilo de vida está sendo muito estudado, porque, até agora, não existe prescrição de remédios para tratar doença crônica, mas o médico e o nutricionista foram treinados a prescrever. Agora, você vê que dentro daquele sucesso todo da indústria farmacêutica, tem todos esses suplementos. É uma pergunta, por exemplo, que eu não fazia há uns 15 anos (para os pacientes): ‘Quantos suplementos você está tomando?’. A resposta varia, mas de dez a 20, às vezes mais. As pessoas estão se automedicando também. O próprio paciente está perdido, acredita que o corpo dele não funciona sem ajuda de suplementos e remédios.

Muitos remédios são muito bem sucedidos para controlar doenças crônicas, como a insulina, no caso de diabetes. A senhora quer dizer que não há tratamento ou que não há como reverter o quadro com remédios?

Para o diabetes tipo 1, com certeza, a insulina foi um remédio maravilhoso, que salvou vidas. A pessoa vai precisar de insulina para não morrer. Mas o diabetes tipo 2, o mais prevalente hoje, que é resultante de fatores de risco, e um deles é a obesidade, não é pela insulina que você vai ajudar a pessoa. Você não trata diabetes tipo 2 com insulina, apenas se o pâncreas entrou em colapso. Por isso que, por exemplo, esses injetáveis são recomendados para o paciente que tem um colapso do pâncreas e precisa estimulá-lo a produzir insulina. O diabetes tipo 2 conseguimos reverter com mudança de estilo de vida. De novo: alimentação, sono, atividade física e melhor controle do estresse. Quando o pâncreas entrar em colapso, claro, vai precisar (de remédio) e, até agora, não existe reversão.

Obesidade é a mesma coisa. Não existe remédio padrão ouro para tratar obesidade. Deveríamos ver a obesidade mais como uma consequência do que a causa do problema. A pessoa engorda por quê? Porque o corpo está se defendendo, não tá bem, aí vai acumulando (gordura). Atacar o peso é como dar um remédio para baixar a febre. Você vai ajudar, vai remediar, mas não vai curar, não sabe por que a pessoa está com febre. Se você não atacar a causa, o problema vai voltar. É isso que está acontecendo com essas doenças crônicas.

A senhora escreve que a crise de saúde atual tem um componente de saúde mental. O que é o comer emocional? E qual o peso dele?

Na nutrição, há dois fatores bem descritos de ganho de peso. Um deles é fazer dieta, porque você engorda, emagrece, engorda, emagrece, engorda (o famoso efeito sanfona). O outro fator é o comer emocional, que é comer em momentos em que você não está com fome. Ele se desenvolve em ratos também e é muito ligado a uma relação conturbada com a comida.

É como se o cérebro fizesse questão de que você não se esqueça de comer. Ele vai usar a comida como refúgio para tudo. Você vai comer em momentos de tristeza, cansaço, tédio, ansiedade. E, dentro do comer emocional, esses alimentos são sempre ricos em energia: carboidrato e gordura. Isso sobrecarrega o corpo, e ele fica cansado de receber tanta energia que nem está pronto para processar.

A senhora reforça muito que nutrição não é matemática, mas sim biologia. Cita que caloria, por exemplo, é um conceito da física, e diz que não indicam nada sobre o peso e que contá-las pode trazer prejuízos à saúde. A nutrição deveria abandonar essa medida?

O profissional foi treinado para passar dieta. Eu mesma fui, e tive que desaprender. É muito difícil, dá muito medo. Aprendemos a calcular calorias e prescrever dieta. Não é questão de fazer a revolução, jogar tudo fora. Pode continuar fazendo avaliação de calorias, é um dado que pode ser interessante, mas jamais fazer o paciente entrar nesse cálculo. A pessoa não precisa saber tanto.

Inclusive, calcular calorias é um traço de comer transtornado. Na anorexia, meninas e meninos geralmente sabem mais do que o nutricionista, e essa noção de caloria não indica qualidade. O que a gente quer? Que o paciente coma melhor, não que ele entre numa calculadora para comer. Comer com mais qualidade é comer mais comida fresca, caseira.

Queremos que o paciente coma melhor, não que ele entre numa calculadora para comer

Sophie Deram, nutricionista

Nós, profissionais, podemos continuar calculando calorias, mas, na hora de falar à pessoa, ela é a especialista sobre ela mesma. Você vai apoiar e não virar o comandante, um general da pessoa. Deveríamos acolher o paciente, escutar e orientar, mas é ele que toma a decisão. Cada ser humano é uma entidade totalmente única.

Isso exige tempo. E, muitas vezes, o paciente vai ser julgado só pelo peso, e não pelo ‘como você está?’, ‘o que está acontecendo?’, ‘será que você engordou recentemente?’. Um número externo à pessoa não deveria ser o número que vai julgar se ela está ou não doente.

No Canadá, um país adiantado ao trabalhar doenças crônicas, eles falam que no tratamento da obesidade não podemos usar o peso como fator de avaliação, que a saúde é bem maior do que só o número do peso. Eles falam que, na primeira sessão com o paciente com obesidade, seria importante pedir permissão para falar sobre o peso. Aqui, o paciente é meio que pesado como gado: ‘Vamos emagrecer primeiro e depois a gente conversa’.

No livro, a senhora coloca em dúvida a visão de obesidade enquanto doença. Por quê? Alguns especialistas apontam que esse reconhecimento é importante para diminuir a estigmatização e pararmos de culpar a pessoa por seu peso. Alguns dizem, inclusive, que o discurso contra remédio e cirurgia tem raízes gordofóbicas. O que a senhora acha?

Eu concordo que isso pode ajudar no combate à estigmatização da obesidade. Sabemos que a maioria dos profissionais de saúde vai enxergar a pessoa com obesidade como preguiçosa, sem força de vontade, desleixada, que não tem autocuidado. Não sou contra a obesidade ser chamada de doença, mas prefiro chamar de condição. É uma condição, é um estado, não é seu peso que vai determinar se você está doente ou não. Mas é muito prático para a indústria: se a pessoa tá com o IMC 30, vamos bombardear de remédios. Agora tem até incentivo a passar remédios antes da obesidade, porque a pessoa está em sobrepeso.

Não é seu peso que vai determinar se você está doente ou não

Sophie Deram, nutricionista

Por que pessoas engordam ao longo do tempo? Porque elas são incentivadas a emagrecer. A mecânica do peso só vai fazer ela piorar. Ela vai fazer dieta, como o médico ou o nutricionista indicar, vai emagrecer, depois vai engordar tudo de volta. Ela vai engordar ainda mais, porque quando você emagrece rápido, perde músculos e água primeiro, e quando ganha peso rápido, ganha gordura. A pessoa depois de uma dieta não é a mesma. Ela vai engordar mais e ter o comportamento alimentar alterado, com mais comer emocional, mais vontade de comer e, às vezes, compulsão.

O que é muito assustador é que o próprio fato de incentivar uma pessoa a perder peso vai colocá-la em risco de entrar nesse gatilho do risco de obesidade e doença crônica. Na saúde pública da Europa, há uma discussão sobre parar de incentivar a emagrecer e, no lugar disso, incentivar a manter o peso, ou seja, não engordar mais. Incentivar a pessoa a emagrecer é uma fábrica de obesidade. Não sou a única a falar, tem uma pesquisadora da Noruega (Kirsi Pietiläinen) que fala que a dieta é, em parte, responsável pela epidemia da obesidade.

Você vai incentivar um paciente com obesidade a fazer dieta e vai colocá-lo numa situação pior. O raciocínio do profissional de saúde é que, quando a dieta não funciona, então vamos fazer cirurgia bariátrica. Só que a cirurgia vai atacar o quê? O estômago, quando, na realidade, a questão é muito mais no cérebro. Não adianta reduzir o estômago se você não mudar o comportamento da pessoa.

Por que pessoas engordam ao longo do tempo? Porque elas são incentivadas a emagrecer

Sophie Deram, nutricionista

Por isso que, para mim, a obesidade é uma condição, na qual você armazena um tecido gordo maior, com risco para doença cardiovascular, diabetes, etc. Mas a questão é: por que você engordou?

Tem estudos que mostram que não é porque você está com IMC 30, 31, 32, que necessariamente tem um problema de saúde. (Ela cita um estudo, publicado na revista científica Science, que mostra que, em uma amostra de adultos dos Estados Unidos com IMC na faixa de obesidade, 10% deles eram considerados metabolicamente saudáveis). Vemos que, ao longo do tempo, se a pessoa fica na obesidade, sim, aí pode começar a ter uma inflamação dos tecidos adiposos e entrar em doença.

Se um paciente chega com obesidade no meu consultório, quero ver os exames primeiro, ver se tem problema de saúde. Se tem, vamos trabalhar a saúde primeiro, não atacar o peso. Mas isso é complicado de explicar, porque parece contraintuitivo.

O que fazer com esse paciente então? É preciso fazer ele se reconectar com o corpo? Como?

Todos os pacientes querem emagrecer. Eu vou falar ‘não vou esquecer que você quer emagrecer, só que vamos mudar o foco’. A vida inteira você tentou emagrecer e, tentando emagrecer, só engordou. E o paciente vai falar ‘pois é, faz 20 anos que estou tentando emagrecer. Comecei querendo emagrecer três quilos, hoje preciso emagrecer 20′. O nosso foco vai ser comer melhor, viver melhor, melhorar o estilo de vida. Muitas vezes, o paciente tem medo, porque ele só engordou a vida inteira. A minha dificuldade é fazer o paciente comer, porque ele não quer comer.

Focamos em comer melhor. Como? Primeiro, tomar consciência de como você está comendo. Muitos pacientes não sabem, porque eles seguiram regras externas de várias dietas. Digo: ‘vamos observar como você funciona, e vamos melhorar como você come’. Geralmente, vem um pouquinho de tristeza do paciente, porque ele fala ‘nossa, eu tento comer perfeito e, a partir das 17h, desanda’. É o famoso comer emocional.

Como melhorar isso? O primeiro passo é ter certeza de que você não está com fome. Se está com fome, é melhor comer. Uma vez que cuidou dessa fome física, precisa perceber o que tem de psicológico na sua fome. É um trabalho de terapia.

A minha dificuldade é fazer o paciente comer, porque ele não quer comer

Sophie Deram, nutricionista

Trabalho geralmente com cinco sessões, e depois eu deixo o paciente decidir se ele quer continuar ou não, mas preciso de pelo menos cinco sessões para abordar toda a questão do comportamento. Os pacientes melhoram.

Fiz um uma pesquisa interna, não científica, com meus pacientes. Perguntei: ‘Você tá comendo melhor?’. ‘Nossa, muito melhor, porque eu não tenho tanto comer emocional’. Pergunto: ‘Você acha que você come menos?’. A maioria fala que sim, de 30% a 50%. Comendo melhor, mais em paz, respeitando o corpo e as vontades, mas identificando o comer emocional para responder sem comer a essas emoções.

O paciente não somente come melhor, mas ele come menos. Quando você tem permissão de comer, não precisa mais fazer ‘despedida’, se entupir de um pacote de doce. É uma reeducação total da relação com a comida. Eu incentivo também atividade física e dormir melhor.

O que é uma alimentação saudável?

Não tem consenso dentro da nutrição. Alguns vão dizer que é comer tudo orgânico, outros vão dizer que não pode glúten, lactose ou alimentos inflamatórios. E tudo isso é defendido por alguns profissionais sem muitas vezes ter ciência por trás. Alimentação saudável deveria ter uma definição bem mais ampla, porque até alimentos como um bolo de chocolate podem ser saudáveis se você come em paz.

Tenho uma definição do comer mais saudável que é comer de tudo sem restrição, sem culpa, com prazer e respeitando a fome e as emoções (‘comer de tudo, mas não tudo’ é o mantra que repete várias vezes no novo livro). No comer saudável, não será um alimento ou outro que vai fazer a diferença, é mais uma atitude geral. E, claro, incentivo mais alimentos frescos, caseiros, menos dietas e mais legumes e frutas. É importante ver o seu comer como um padrão. Não é uma refeição que vai estragar toda a saúde do seu corpo.

Como se proteger de mitos, então?

No final do livro, tem uma lista (do que fazer). Primeiro, reconectar-se: você é o seu melhor especialista. É interessante ter informação, mas tem que ter muita cautela em filtrar. Se escutar uma coisa que te assusta, busque uma segunda opinião. Outra coisa: nenhum corpo funciona igual. Então, o especialista, aquela pessoa que estuda mesmo, vai sempre ter um discurso relativamente ponderado. Jamais vai ser oito ou 80, porque não existe essa certidão.

Os discursos terroristas desses charlatões mudam constantemente. Eles vão atacar o leite, depois o pão... Meu livro foi escrito para as pessoas não ficarem com mais medo, pelo contrário. A ideia é deixá-las mais empoderadas a falar e a questionar se é verdade ou não e de onde vem as informações.

“E se o que aprendemos a chamar de ‘nos cuidar’ for justamente o que está nos adoecendo?”, provoca Sophie Deram em novo livro “Pare de engolir mitos: Como as novas descobertas da nutrição podem nos orientar em meio a modismos, desinformação e pseudociência”, lançado nesta segunda-feira, 6, pela Editora Sextante.

A franco-brasileira é nutricionista, engenheira agrônoma e autora de outros dois outros livros, “O peso das dietas” e “Os 7 pilares da saúde alimentar”. Uma das primeiras a usar o termo terrorismo nutricional e advogar contra as dietas no Brasil, ela questiona na nova obra uma série de mitos que permeiam discussões sobre nutrição, alimentação e saúde.

Coloca em xeque, à luz de evidências científicas – ou da falta delas –, crenças amplamente divulgadas e aceitas, como “não devemos ingerir líquidos durante a refeição”, até modismos mais recentes, mas que já têm uma certa expressão dentro das redes sociais, a exemplo do jejum intermitente.

Em alguns trechos, o livro beira o desabafo de uma profissional cansada de dizer a mesma coisa repetidamente. “É a leitura que eu gostaria de dar aos meus pacientes antes da primeira consulta”, explica logo nas primeiras páginas.

Para ela, essa série de desinformações nos levam a uma situação trágica. “As pessoas se desconectaram da sabedoria interna delas, e começaram a seguir regras”, fala, em entrevista ao Estadão.

Para nutricionista Sophie Deram, foco no emagrecimento está adoecendo as pessoas. Foto: Prostock-studio/Adobe Stock

“Todo mundo terceirizou a saúde, a fome, o sono. Tem aplicativos para tudo. Não vi ainda, mas com certeza vai ser feito, um aplicativo para te lembrar de ir ao banheiro. São coisas muito básicas que não deveríamos terceirizar. Essa terceirização nos faz perder a confiança no corpo”, diz.

Isso, por sua vez, nos transporta ao olho de um furacão, ou melhor, tempestade, como Sophie prefere chamar: uma crise de saúde composta pelo avanço de doenças crônicas e alta prevalência dos transtornos de saúde mental.

“Vivemos uma verdadeira tragédia, que combina sofrimento humano, sobrecarga médica e risco de colapso do sistema de saúde. Precisamos refletir sobre o que estamos fazendo, pois não está dando certo! Temos que parar de repetir os mesmos erros e buscar um novo olhar para a saúde”, escreve no livro.

'Pare de engolir mitos' defende a reconexão com o corpo e suas necessidades Foto: Editora Sextante/Estadão

Para ela, isso passa por repensar o foco excessivo no peso, apontado como fator de risco para várias doenças. “Incentivar a pessoa a emagrecer é uma fábrica de obesidade”, fala.

No livro, ela abre as portas de seu consultório – ela coordena o projeto de genética e atende no Programa de Tratamento de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Hospital das Clínicas do IPq-FMUSP –, e conta como tem acolhido as vítimas dessa crise. “Uma das primeiras coisas que eu trabalho é sobre o que, como e por que ele come”, diz.

“O paciente precisa virar o protagonista. O médico ou o nutricionista não sabe melhor do que a pessoa (sobre ela mesma). A pessoa dirige seu próprio barco.”

Confira os principais trechos da entrevista:

Por que escrever esse livro? Senti, em alguns momentos, um certo tom de desabafo, no sentido de alguém cansado de falar a mesma coisa. Estou correto?

Tenho a ideia de escrever esse livro há 30 anos, porque senti na pele esses mitos da nutrição e da saúde quando eu morava nos Estados Unidos com meus filhos pequenos. Foi nesse momento que fui estudar Nutrição. Como sou engenheira agrônoma, tinha um bom background de ciência, de saber estudar e analisar pesquisa. O que me chamou atenção é o tanto de mitos que eu encontrei, falados até pelos professores e nas mídias, sem comprovação científica.

No começo, foi muito desagradável, porque eu fiz esses estudos para saber mais, e acabei ficando mais perdida. Eu fui até estudar genética, nutrigenômica, e agora estou estudando microbiota. Mas sempre volto ao básico: comer melhor, não entrar em tanta paranoia, ansiedade. A nutrição é muito mais complexa do que um simples cálculo de caloria.

Comecei esse meu grito há dez anos, quando escrevi meu primeiro livro, ‘O Peso das Dietas’, que era o tema da minha pesquisa. Sou coordenadora do projeto de genética dos transtornos alimentares e obesidade no laboratório de neurociência. Meu projeto é justamente buscar entender o que é o gatilho para mudança de comportamento, e está muito óbvio, hoje, que a dieta não somente não funciona, porque quase todo mundo volta a engordar, mas te faz até engordar mais e muda sua relação com a comida. As pessoas estão tentando emagrecer nessa sociedade gordofóbica, perdendo a saúde, perdendo aquela sabedoria alimentar, perdendo confiança no corpo, e acabam adoecendo.

Mas o problema não é só dieta restritiva, é o discurso nutricional e de saúde, gordofobia, todo o sistema que se chama sistema de saúde, mas que deveríamos chamar de sistema da doença. Nesses 30 últimos anos, a população está adoecendo, e a indústria farmacêutica está cada vez mais forte.

O fracasso da saúde está sendo um motor muito grande para toda a indústria. Por isso, o meu desabafo: as pessoas estão cada vez mais perdidas e adoecem, e o que vai ser oferecido para elas são mais e mais remédios, que, na realidade, vão remediar sem tratar.

A senhora diz que vivemos hoje uma crise de saúde. Como a definiria?

Não tem somente uma resposta. É uma tempestade, na qual a pessoa se desconectou da sabedoria dela, e começou a seguir regras. Uma desconexão do seu corpo não vai te ajudar a ganhar saúde. Se você não escuta seu corpo, dorme em horários que não são adequados e come sem fome, desregula toda uma máquina maravilhosa. O ser humano desistiu de escutar o corpo e de acreditar que ele é confiável. É uma tragédia!

Na Engenharia Agronômica, estudei todos os ciclos de vida, de todos os seres vivos do mundo, e todos têm essa sabedoria interna, silenciosa, que chamamos de inteligência do corpo, que é a homeostase. As próprias células estão na luta para buscar equilíbrio.

O ser humano desistiu de escutar o corpo e acreditar que ele é confiável. É uma tragédia!

Sophie Deram, nutricionista

Isso começa desde a infância, quando os pais fazem a introdução alimentar. É o primeiro momento do peso das dietas, porque vai ser o adulto que vai mandar nesse corpinho, e vemos que, em vez de respeitar a criança e a sabedoria da criança, muitas mães vão seguir aquelas regras rígidas de alimentação e de horário para dormir.

Em segundo lugar, há um exagero em buscar soluções milagrosas e de remédios para anestesiar o corpo.

A senhora também escreve que a maneira como tratamos essa crise mais atrapalha do que ajuda. Por quê? O que estamos fazendo de errado?

Temos a melhor Medicina que já existiu. Temos os remédios fantásticos, desenvolvemos uma vacina contra covid em um ano, uma coisa espetacular! Não estou criticando a Medicina, mas ela treina para prescrever remédio e cirurgia. Hoje, o maior problema são as doenças crônicas, e não mais as infecciosas. Quando você tem uma infecção, toma um antibiótico. A Medicina foi muito boa nisso, mas, agora, o problema maior está dentro da pessoa. Não é um bicho que causa uma infecção. É o próprio corpo que entra em doença crônica, seja diabetes, doença cardiovascular, e não existe prescrição (que resolva isso).

Esse aumento de doença crônica no mundo começou há mais ou menos 30 anos. No Brasil, até 45 anos atrás, o problema era desnutrição, e, de repente, é obesidade, sobrepeso, diabetes. O que aconteceu? Não teve mudança genética, ou seja, é a mesma população, mas o corpo está sofrendo doenças crônicas severas.

Quais são as explicações? O que mudou nos anos 1990? Fomos orientados a evitar gordura, ficar comendo mais alimentos light e diet. Quando você tira a gordura de uma pessoa, ela vai buscar mais carboidrato – hoje, tem um incentivo a comer mais proteína, mas, naturalmente, o ser humano não está buscando excesso de proteína. E também houve um foco maior no peso da pessoa. A própria OMS deu o corte de sobrepeso e obesidade pelo peso dividido a altura (isto é, o índice de massa corporal, ou IMC). A altura ninguém vai mexer, porque é considerada uma coisa que você não decide. O peso virou o alvo do profissional de saúde, e isso foi um grande erro.

Há quem aponte que o aumento da prevalência de doenças crônicas seja explicado principalmente por uma expectativa de vida maior. O que a senhora pensa?

Faz todo sentido. As pessoas estão vivendo mais e carregam mais doenças. A doença crônica, pela definição, não é rápida, é devagar. Quando você está preso dentro de uma doença crônica, só vai agravar se não fizer uma mudança de estilo de vida. Uma solução seria a mudança de estilo de vida, mas isso você não consegue prescrever. Imagina o médico falar ‘bom, a partir de agora mude seu estilo de vida, tchau, e volta daqui a um mês’. A pessoa fica presa, porque os estilos de vida são pilotos automáticos que adquirimos.

O estilo de vida está sendo muito estudado, porque, até agora, não existe prescrição de remédios para tratar doença crônica, mas o médico e o nutricionista foram treinados a prescrever. Agora, você vê que dentro daquele sucesso todo da indústria farmacêutica, tem todos esses suplementos. É uma pergunta, por exemplo, que eu não fazia há uns 15 anos (para os pacientes): ‘Quantos suplementos você está tomando?’. A resposta varia, mas de dez a 20, às vezes mais. As pessoas estão se automedicando também. O próprio paciente está perdido, acredita que o corpo dele não funciona sem ajuda de suplementos e remédios.

Muitos remédios são muito bem sucedidos para controlar doenças crônicas, como a insulina, no caso de diabetes. A senhora quer dizer que não há tratamento ou que não há como reverter o quadro com remédios?

Para o diabetes tipo 1, com certeza, a insulina foi um remédio maravilhoso, que salvou vidas. A pessoa vai precisar de insulina para não morrer. Mas o diabetes tipo 2, o mais prevalente hoje, que é resultante de fatores de risco, e um deles é a obesidade, não é pela insulina que você vai ajudar a pessoa. Você não trata diabetes tipo 2 com insulina, apenas se o pâncreas entrou em colapso. Por isso que, por exemplo, esses injetáveis são recomendados para o paciente que tem um colapso do pâncreas e precisa estimulá-lo a produzir insulina. O diabetes tipo 2 conseguimos reverter com mudança de estilo de vida. De novo: alimentação, sono, atividade física e melhor controle do estresse. Quando o pâncreas entrar em colapso, claro, vai precisar (de remédio) e, até agora, não existe reversão.

Obesidade é a mesma coisa. Não existe remédio padrão ouro para tratar obesidade. Deveríamos ver a obesidade mais como uma consequência do que a causa do problema. A pessoa engorda por quê? Porque o corpo está se defendendo, não tá bem, aí vai acumulando (gordura). Atacar o peso é como dar um remédio para baixar a febre. Você vai ajudar, vai remediar, mas não vai curar, não sabe por que a pessoa está com febre. Se você não atacar a causa, o problema vai voltar. É isso que está acontecendo com essas doenças crônicas.

A senhora escreve que a crise de saúde atual tem um componente de saúde mental. O que é o comer emocional? E qual o peso dele?

Na nutrição, há dois fatores bem descritos de ganho de peso. Um deles é fazer dieta, porque você engorda, emagrece, engorda, emagrece, engorda (o famoso efeito sanfona). O outro fator é o comer emocional, que é comer em momentos em que você não está com fome. Ele se desenvolve em ratos também e é muito ligado a uma relação conturbada com a comida.

É como se o cérebro fizesse questão de que você não se esqueça de comer. Ele vai usar a comida como refúgio para tudo. Você vai comer em momentos de tristeza, cansaço, tédio, ansiedade. E, dentro do comer emocional, esses alimentos são sempre ricos em energia: carboidrato e gordura. Isso sobrecarrega o corpo, e ele fica cansado de receber tanta energia que nem está pronto para processar.

A senhora reforça muito que nutrição não é matemática, mas sim biologia. Cita que caloria, por exemplo, é um conceito da física, e diz que não indicam nada sobre o peso e que contá-las pode trazer prejuízos à saúde. A nutrição deveria abandonar essa medida?

O profissional foi treinado para passar dieta. Eu mesma fui, e tive que desaprender. É muito difícil, dá muito medo. Aprendemos a calcular calorias e prescrever dieta. Não é questão de fazer a revolução, jogar tudo fora. Pode continuar fazendo avaliação de calorias, é um dado que pode ser interessante, mas jamais fazer o paciente entrar nesse cálculo. A pessoa não precisa saber tanto.

Inclusive, calcular calorias é um traço de comer transtornado. Na anorexia, meninas e meninos geralmente sabem mais do que o nutricionista, e essa noção de caloria não indica qualidade. O que a gente quer? Que o paciente coma melhor, não que ele entre numa calculadora para comer. Comer com mais qualidade é comer mais comida fresca, caseira.

Queremos que o paciente coma melhor, não que ele entre numa calculadora para comer

Sophie Deram, nutricionista

Nós, profissionais, podemos continuar calculando calorias, mas, na hora de falar à pessoa, ela é a especialista sobre ela mesma. Você vai apoiar e não virar o comandante, um general da pessoa. Deveríamos acolher o paciente, escutar e orientar, mas é ele que toma a decisão. Cada ser humano é uma entidade totalmente única.

Isso exige tempo. E, muitas vezes, o paciente vai ser julgado só pelo peso, e não pelo ‘como você está?’, ‘o que está acontecendo?’, ‘será que você engordou recentemente?’. Um número externo à pessoa não deveria ser o número que vai julgar se ela está ou não doente.

No Canadá, um país adiantado ao trabalhar doenças crônicas, eles falam que no tratamento da obesidade não podemos usar o peso como fator de avaliação, que a saúde é bem maior do que só o número do peso. Eles falam que, na primeira sessão com o paciente com obesidade, seria importante pedir permissão para falar sobre o peso. Aqui, o paciente é meio que pesado como gado: ‘Vamos emagrecer primeiro e depois a gente conversa’.

No livro, a senhora coloca em dúvida a visão de obesidade enquanto doença. Por quê? Alguns especialistas apontam que esse reconhecimento é importante para diminuir a estigmatização e pararmos de culpar a pessoa por seu peso. Alguns dizem, inclusive, que o discurso contra remédio e cirurgia tem raízes gordofóbicas. O que a senhora acha?

Eu concordo que isso pode ajudar no combate à estigmatização da obesidade. Sabemos que a maioria dos profissionais de saúde vai enxergar a pessoa com obesidade como preguiçosa, sem força de vontade, desleixada, que não tem autocuidado. Não sou contra a obesidade ser chamada de doença, mas prefiro chamar de condição. É uma condição, é um estado, não é seu peso que vai determinar se você está doente ou não. Mas é muito prático para a indústria: se a pessoa tá com o IMC 30, vamos bombardear de remédios. Agora tem até incentivo a passar remédios antes da obesidade, porque a pessoa está em sobrepeso.

Não é seu peso que vai determinar se você está doente ou não

Sophie Deram, nutricionista

Por que pessoas engordam ao longo do tempo? Porque elas são incentivadas a emagrecer. A mecânica do peso só vai fazer ela piorar. Ela vai fazer dieta, como o médico ou o nutricionista indicar, vai emagrecer, depois vai engordar tudo de volta. Ela vai engordar ainda mais, porque quando você emagrece rápido, perde músculos e água primeiro, e quando ganha peso rápido, ganha gordura. A pessoa depois de uma dieta não é a mesma. Ela vai engordar mais e ter o comportamento alimentar alterado, com mais comer emocional, mais vontade de comer e, às vezes, compulsão.

O que é muito assustador é que o próprio fato de incentivar uma pessoa a perder peso vai colocá-la em risco de entrar nesse gatilho do risco de obesidade e doença crônica. Na saúde pública da Europa, há uma discussão sobre parar de incentivar a emagrecer e, no lugar disso, incentivar a manter o peso, ou seja, não engordar mais. Incentivar a pessoa a emagrecer é uma fábrica de obesidade. Não sou a única a falar, tem uma pesquisadora da Noruega (Kirsi Pietiläinen) que fala que a dieta é, em parte, responsável pela epidemia da obesidade.

Você vai incentivar um paciente com obesidade a fazer dieta e vai colocá-lo numa situação pior. O raciocínio do profissional de saúde é que, quando a dieta não funciona, então vamos fazer cirurgia bariátrica. Só que a cirurgia vai atacar o quê? O estômago, quando, na realidade, a questão é muito mais no cérebro. Não adianta reduzir o estômago se você não mudar o comportamento da pessoa.

Por que pessoas engordam ao longo do tempo? Porque elas são incentivadas a emagrecer

Sophie Deram, nutricionista

Por isso que, para mim, a obesidade é uma condição, na qual você armazena um tecido gordo maior, com risco para doença cardiovascular, diabetes, etc. Mas a questão é: por que você engordou?

Tem estudos que mostram que não é porque você está com IMC 30, 31, 32, que necessariamente tem um problema de saúde. (Ela cita um estudo, publicado na revista científica Science, que mostra que, em uma amostra de adultos dos Estados Unidos com IMC na faixa de obesidade, 10% deles eram considerados metabolicamente saudáveis). Vemos que, ao longo do tempo, se a pessoa fica na obesidade, sim, aí pode começar a ter uma inflamação dos tecidos adiposos e entrar em doença.

Se um paciente chega com obesidade no meu consultório, quero ver os exames primeiro, ver se tem problema de saúde. Se tem, vamos trabalhar a saúde primeiro, não atacar o peso. Mas isso é complicado de explicar, porque parece contraintuitivo.

O que fazer com esse paciente então? É preciso fazer ele se reconectar com o corpo? Como?

Todos os pacientes querem emagrecer. Eu vou falar ‘não vou esquecer que você quer emagrecer, só que vamos mudar o foco’. A vida inteira você tentou emagrecer e, tentando emagrecer, só engordou. E o paciente vai falar ‘pois é, faz 20 anos que estou tentando emagrecer. Comecei querendo emagrecer três quilos, hoje preciso emagrecer 20′. O nosso foco vai ser comer melhor, viver melhor, melhorar o estilo de vida. Muitas vezes, o paciente tem medo, porque ele só engordou a vida inteira. A minha dificuldade é fazer o paciente comer, porque ele não quer comer.

Focamos em comer melhor. Como? Primeiro, tomar consciência de como você está comendo. Muitos pacientes não sabem, porque eles seguiram regras externas de várias dietas. Digo: ‘vamos observar como você funciona, e vamos melhorar como você come’. Geralmente, vem um pouquinho de tristeza do paciente, porque ele fala ‘nossa, eu tento comer perfeito e, a partir das 17h, desanda’. É o famoso comer emocional.

Como melhorar isso? O primeiro passo é ter certeza de que você não está com fome. Se está com fome, é melhor comer. Uma vez que cuidou dessa fome física, precisa perceber o que tem de psicológico na sua fome. É um trabalho de terapia.

A minha dificuldade é fazer o paciente comer, porque ele não quer comer

Sophie Deram, nutricionista

Trabalho geralmente com cinco sessões, e depois eu deixo o paciente decidir se ele quer continuar ou não, mas preciso de pelo menos cinco sessões para abordar toda a questão do comportamento. Os pacientes melhoram.

Fiz um uma pesquisa interna, não científica, com meus pacientes. Perguntei: ‘Você tá comendo melhor?’. ‘Nossa, muito melhor, porque eu não tenho tanto comer emocional’. Pergunto: ‘Você acha que você come menos?’. A maioria fala que sim, de 30% a 50%. Comendo melhor, mais em paz, respeitando o corpo e as vontades, mas identificando o comer emocional para responder sem comer a essas emoções.

O paciente não somente come melhor, mas ele come menos. Quando você tem permissão de comer, não precisa mais fazer ‘despedida’, se entupir de um pacote de doce. É uma reeducação total da relação com a comida. Eu incentivo também atividade física e dormir melhor.

O que é uma alimentação saudável?

Não tem consenso dentro da nutrição. Alguns vão dizer que é comer tudo orgânico, outros vão dizer que não pode glúten, lactose ou alimentos inflamatórios. E tudo isso é defendido por alguns profissionais sem muitas vezes ter ciência por trás. Alimentação saudável deveria ter uma definição bem mais ampla, porque até alimentos como um bolo de chocolate podem ser saudáveis se você come em paz.

Tenho uma definição do comer mais saudável que é comer de tudo sem restrição, sem culpa, com prazer e respeitando a fome e as emoções (‘comer de tudo, mas não tudo’ é o mantra que repete várias vezes no novo livro). No comer saudável, não será um alimento ou outro que vai fazer a diferença, é mais uma atitude geral. E, claro, incentivo mais alimentos frescos, caseiros, menos dietas e mais legumes e frutas. É importante ver o seu comer como um padrão. Não é uma refeição que vai estragar toda a saúde do seu corpo.

Como se proteger de mitos, então?

No final do livro, tem uma lista (do que fazer). Primeiro, reconectar-se: você é o seu melhor especialista. É interessante ter informação, mas tem que ter muita cautela em filtrar. Se escutar uma coisa que te assusta, busque uma segunda opinião. Outra coisa: nenhum corpo funciona igual. Então, o especialista, aquela pessoa que estuda mesmo, vai sempre ter um discurso relativamente ponderado. Jamais vai ser oito ou 80, porque não existe essa certidão.

Os discursos terroristas desses charlatões mudam constantemente. Eles vão atacar o leite, depois o pão... Meu livro foi escrito para as pessoas não ficarem com mais medo, pelo contrário. A ideia é deixá-las mais empoderadas a falar e a questionar se é verdade ou não e de onde vem as informações.

Entrevista por Leon Ferrari

Repórter de Saúde e Bem-Estar. É formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Menção honrosa do 40º Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.

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