Insetos modificados em laboratório ajudam algumas cidades a reduzir casos de dengue em até 90%


Método Wolbachia introduz no mosquito uma bactéria capaz de bloquear a transmissão de arboviroses; Brasil deve ganhar fábrica de mosquitos no ano que vem

Por Leon Ferrari
Atualização:

O número de casos anuais de dengue aumentou dez vezes na região das Américas em duas décadas. No Brasil, ele cresceu doze vezes. O vírus causador do quadro é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, que se prolifera especialmente quando há combinação de calor e água acumulada - algo que se torna cada vez mais frequente por aqui devido às mudanças climáticas. Isso tudo exige medidas cada vez mais urgentes para deter o avanço da doença

Uma estratégia inusitada para combatê-lo, e que vem sendo testada com sucesso em alguns lugares do mundo, é introduzir mais mosquitos no meio ambiente. Parece contraproducente, mas não falamos de qualquer mosquito: trata-se de uma versão alterada em laboratório, na qual é introduzida uma bactéria capaz de bloquear a transmissão do vírus para o ser humano e interferir no ciclo reprodutivo do inseto na natureza.

Essa é a premissa do Método Wolbachia, criado pelo World Mosquito Program (WPM), da Universidade Monash, na Austrália, que agrega empresas sem fins lucrativos e tem como intuito combater doenças transmitidas por mosquitos. Wolbachia, vale destacar, é o nome da bactéria inserida nos insetos.

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Nas cidades onde o projeto tem atuado, pesquisadores alcançaram reduções de até 90% na incidência da dengue. Eles também tiveram resultados positivos em relações a outras doenças causadas pelo mosquito, como zika e chikungunya, conforme divulgado em estudos apresentados na conferência anual da Sociedade Americana de Medicina Tropical e Higiene, em Chicago, nos EUA, no final de outubro, que o Estadão acompanhou virtualmente.

O método se diferencia por ser duradouro, natural (não há alteração genética) e apresentar um custo-benefício promissor. Mas há desafios a serem encarados, como entender por que os mosquitos com a bactéria têm dificuldade para se estabelecer em determinadas localidades e achar maneiras de escalar a produção.

Especialistas apontam que apenas inovações “disruptivas”, como o esse método, combinadas serão capazes de frear o avanço da dengue, que não acontece só no Brasil, mas em todo mundo. Isso inclui novidades para o controle da transmissão pelo vetor, a oferta de uma vacina segura e eficaz, e o desenvolvimento de tratamentos contra a doença.

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“Claramente, as medidas que temos, que são de controle do vetor, inseticida e eliminação de foco da doença, não estão sendo efetivas. O que a gente observa é que, ano a ano, há um aumento no número de casos em todo o mundo e no Brasil. Precisamos de inovação”, avalia o infectologista Julio Croda, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

Método Wolbachia no Brasil

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Por aqui, o método é conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com financiamento do Ministério da Saúde em parceria com governos locais, desde 2014. O WPM está presente em cinco cidades: Rio de Janeiro (RJ), Niterói (RJ), Campo Grande (MS), Belo Horizonte (MG) e Petrolina (PE).

Os bons resultados têm atraído o interesse de novos municípios. “A demanda tem sido crescente no Brasil, já que a dengue tem ido para lugares mais remotos e para a região Sul do País”, conta Luciano Moreira, que coordena o projeto no País e é pesquisador da Fiocruz há mais de 20 anos.

Mosquito Aedes aegypti, conhecido por suas listras brancas, é o transmissor do vírus da dengue Foto: witsawat/Adobe Stock
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Dados públicos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), tabulados pelo Estadão, mostram como, de fato, a região Sul, onde o mosquito tradicionalmente não se desenvolve devido ao frio, contribuiu significativamente para o aumento do número anual de caso desde 2020.

Em 2014, os casos no Sul representaram apenas 3,8% do total nacional, e durante a maior epidemia da história brasileira, em 2015, esse número foi de apenas 4,6%. Em outubro de 2023 - que já é o 2° ano com mais casos desde 2000 -, porém, a região já representava 27% dos casos nacionais.

A doença também está se espalhando para mais cidades brasileiras. Em 2014, cerca de de 4 mil municípios notificaram casos, enquanto no ano passado, quase 5 mil cidades tiveram casos.

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Segundo Moreira, a intenção é levantar uma fábrica de mosquitos até o fim do ano que vem para, assim, para atender a demanda de mais localidades. O projeto é uma joint venture entre o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP), da Fiocruz no Paraná, e o WPM. Sem local definido ainda, a instalação poderá produzir de 50 milhões a 100 milhões de ovos com bactéria por semana. “Vai ser a maior biofábrica de mosquitos com Wolbachia do mundo.”

De forma provisória, mosquitos são produzidos dentro da Fiocruz, no Rio, e em um espaço cedido pela prefeitura de Belo Horizonte.

Como funciona?

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Aedes aegypti é o nome científico do mosquito que serve de vetor não só para a dengue, mas também para a chikungunya e zika, que fazem parte de um grupo das doenças definidas como arboviroses. O pernilongo, conhecido por suas listras brancas, é considerado doméstico e tem hábitos preferencialmente diurnos. Apenas a fêmea pica humanos, e ela só adquire o vírus causador dessas doenças quando se alimenta do sangue de alguém infectado.

O renomado cientista Scott O’Neill, CEO do WPM, começou seus estudos com a Wolbachia há anos, conforme conta Moreira, que fez pós-doutorado no laboratório dele. O interesse começou após um grupo americano descobrir que as chamadas moscas-da-fruta (Drosophila melanogaster) sobreviviam metade do tempo quando carregavam essa bactéria no organismo.

A Wolbachia é uma bactéria intracelular obrigatória (isto é, não sobrevive fora do hospedeiro) e é encontrada em metade das espécies de insetos existentes, mas não no Aedes aegypti. Não há evidências de que ela seja um patógeno (cause doença) em humanos ou em qualquer vertebrado, segundo a epidemiologista Katie Anders, diretora de avaliação de impacto do WPM.

“Como ela ocorre naturalmente em várias espécies de insetos, inclusive naqueles que picam, aos quais todos já fomos expostos, podemos dizer quase com certeza que a Wolbachia é segura para ser implantada como uma intervenção de saúde pública”, afirmou Katie, durante a conferência anual da Sociedade Americana de Medicina Tropical e Higiene.

Moreira conta que a primeira cepa de Wolbachia testada conseguiu reduzir a vida do Aedes, mas, por causa de alguns problemas, não foi capaz de se estabelecer em uma população do mosquito. Por isso, eles testaram outra cepa, a w Mel, também da mosca-da-fruta. A descoberta foi surpreendente. “Ela bloqueava o vírus”, conta o pesquisador da Fiocruz. Isso mudou os rumos do projeto, que hoje já está presente em 14 países.

Quando a bactéria está em suas células, o mosquito tem uma probabilidade significativamente reduzida de se infectar com algum arbovírus. E, quando isso acontece, o vírus tem capacidade de replicação e disseminação diminuídas, ou seja, se tornam vetores menos competentes.

Moreira afirma que isso ocorre por uma série de motivos. Entre eles, destaca dois: primeiro, a bactéria promove um aumento na resposta imune daquela célula e, por tabela, há uma proteção maior do mosquito contra o vírus. Em segundo lugar, ocorre uma competição por recursos da célula, na qual a Wobachia vence, e não há nutrientes suficientes para que o vírus se multiplique.

Para introduzir a bactéria no Aedes aegypti, os cientistas usam agulhas microscópicas para, primeiro, pegá-la da mosca-da-fruta. Depois, inserem-na em ovos jovens do mosquito. Ao racharem, estabelece-se uma colônia de Aedes aegypti com Wolbachia. “Ela é herdada através de gerações sucessivas. Você não precisa continuar fazendo microinjeções”, ensina Katie.

Com o tempo, a Wolbachia consegue se firmar dentro da população de mosquitos e passa a fazer parte dos genes da espécie, por causa de algo chamado incompatibilidade citoplasmática. Ela “manipula” os resultados reprodutivos do mosquito de forma que, quando um macho infectado por Wolbachia acasala com uma fêmea de tipo selvagem, os ovos são inviáveis e não eclodirão. Agora, se as fêmeas com a bactéria acasalam com qualquer macho, todos os ovos carregarão Wolbachia e eclodirão.

“Devido a esse processo de transmissão materna e à incompatibilidade citoplasmática, a Wolbachia continua a penetrar na população até que grande maioria dos Aedes aegypti sejam portadores dela”, explica Katie. Segundo ela, lançamentos – seja de ovos ou insetos adultos – de fêmeas e machos, durante um período de 16 a 26 semanas, são suficientes para que a bactéria se estabeleça na população de mosquitos.

Resultados surpreendentes

Desde que o método começou a ser testado – em cidades endêmicas para a doença ou não –, a WPM tem registrado resultados surpreendentes. “Evidências de mundo real que estão sendo coletadas mostram uma redução consistente na incidência de dengue em múltiplas geografias”, afirmou Katie Anders.

Em cidades do Vale de Aburra, na Colômbia, a queda na incidência de dengue variou entre 94% e 97%, segundo o WPM – considerando apenas dados de notificação dos casos, sem testá-los sorologicamente. Em Niterói, no Rio de Janeiro, foi de 70%. Mesmo na capital fluminense, onde a bactéria enfrenta dificuldades para se estabelecer na população de mosquitos, os pesquisadores observaram uma redução de 38%, conforme estudo publicado na renomada revista científica The Lancet.

Mas o estudo que faz brilhar os olhos de cientistas foi publicado na revista científica The New England Journal of Medicine. Os pesquisadores do WPM conseguiram mostrar que, após a introdução dos mosquitos modificados, a incidência de casos de dengue sintomática caiu 77% em Yogyakarta, na Indonésia. Também houve queda de 86% nas hospitalizações.

A pesquisa é considerada padrão-ouro, já que se trata de um teste randomizado (dividiram a cidade em sítios e apenas alguns receberam o mosquitos com a bactéria) e porque os pacientes foram submetidos a teste sorológicos da doença – algo que nunca havia sido feito para averiguar a eficácia de uma intervenção de controle do Aedes aegypti.

Com esses resultados, em dezembro de 2020, o Vector Control Advisory Group, da Organização Mundial da Saúde (OMS), recomendou que a agência internacional iniciasse o processo de desenvolvimento de uma diretriz para uso da intervenção entre os países membros. Neste ano, a Organização Pan-Americana da Saúde (PAHO) também informou que está produzindo um manual sobre o assunto.

Mais estudos estão em andamento, inclusive outro do tipo randomizado em Belo Horizonte. Ele será um pouco diferente em comparação ao da Indonésia, conta Moreira. Na cidade mineira, os pesquisadores acompanham crianças com coleta de amostras de sangue. “Elas têm menos chances de já terem apresentado arboviroses”, explica ele. A pesquisa começou em 2021 e deve ir até 2025.

No congresso, Katie adiantou que foi retomado um estudo clínico em Yogyakarta para saber se a cidade oferece uma oportunidade para analisar o potencial real de eliminação local da dengue após a liberação dos mosquitos. “Desde 2021, temos visto uma supressão sustentada dos casos de dengue (na cidade). Quando analisamos as notificações dos últimos 30 anos, vemos que o número de casos desde 2021 tem sido os mais baixos.”

Em parceria com a Universidade de Kajimata, eles têm observado novamente pacientes febris, com testes PCR e sorológicos. “Nos nove meses entre janeiro e setembro deste ano, houve um total de 2,4 mil pacientes febris inscritos, dos quais sete foram confirmados virologicamente como dengue, e eram casos esporádicos, que ocorreram em diferentes partes da cidade e não estavam agrupados no tempo”, comemorou.

O estudo em Niterói também foi retomado, conta Moreira. “Estamos refazendo essas análises com um tempo histórico mais longo. Estamos nos preparando para publicar, mas encontramos níveis bem mais altos de bloqueio. Não posso falar de quanto, mas é semelhante ao que foi visto na Colômbia”, adianta.

Vantagens do método

“Os dados são excelentes”, analisa o infectologista Julio Croda. “Não sei porque não há mais ênfase à questão da Wolbachia, porque os dados mostram uma eficácia muito grande”, afirma Celso Granato, professor livre-docente aposentado de infectologia do Departamento de Medicina da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Os especialistas ouvidos pela reportagem e os participantes do projeto apontam que o método tem três grandes vantagens. A primeira delas é a sustentabilidade. Após liberações durantes algumas semanas, não é preciso fazer novas solturas. “Temos áreas na Austrália em que o programa foi feito há 11 anos e os mosquitos com Wolbachia continuam ali presentes. Temos áreas aqui no Brasil em que finalizamos (a soltura) há oito anos e os mosquitos continuam ali”, fala Moreira.

Vale lembrar que o método é considerado natural, pois não é feita uma alteração genética – nem no mosquito nem na bactéria. E isso impacta diretamente na terceira vantagem: o custo-benefício, algo muito importante em saúde pública.

“É uma coisa barata, que poderíamos estar disseminando”, avalia Granato. “Outra medida (de controle do vetor) são os mosquitos transgênicos, mas é muito caro. Tem que ter uma população de mosquitos geneticamente modificados muito grande. O cálculo que ele fazem é que você tem que ter 5 mosquitos geneticamente modificados para cada mosquito selvagem para ele poder ser eficaz na competição, só que ele vive menos, é mais frágil.”

Segundo Moreira, um grupo de pesquisadores de Brasília averiguou o custo-benefício em sete cidades brasileiras e deve publicar os resultados em breve. Ele adianta que encontraram um retorno de R$ 50 a R$ 550 para cada R$ 1 investido no método. Na Colômbia, estudos estimam que cada dólar de custeio da implantação da Wolbachia deve retornar US$ 5,61 ao longo de dez anos.

Desafios e próximos passos

“A questão agora é como transformar toda essa evidência científica que já existe em relação ao método em uma real intervenção de saúde pública e reduzir a carga da doença”, resume Croda.

Escalar a produção, de fato, é um dos principais gargalos do projeto, concorda Moreira. Para isso, além da biofábrica, segundo ele, estuda-se o uso da automação em diversas etapas do processo, da produção às solturas.

Apesar de os resultados serem surpreendentes, em algumas localidades o mosquito com bactéria tem dificuldade de se estabelecer. Um exemplo é o Rio de Janeiro, onde as solturas foram feitas em favelas, como o Complexo do Alemão e a Maré, segundo Moreira.

O estudo, tocado por estudiosos da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e publicado no Lancet, diz que, em média, 32% dos mosquitos recolhidos nas zonas de libertação entre um e 29 meses após a soltura inicial testaram positivo para a cepa w Mel, o que mostraria uma introgressão incompleta da bactéria na localidade. Mesmo assim, houve uma redução de 38% na incidência de dengue.

“Por que uma introgressão imperfeita? Isso continua uma questão em aberto, mas existem algumas hipóteses”, disse Henrik Salje, professor do departamento de genética de Cambridge, durante o congresso.

“É uma população altamente diversificada social e geograficamente. Você tem grandes mudanças na elevação, moradias altamente compactas em algumas partes, e outras menos compactas. Com isso, dá para imaginar que pode haver muitos e muitos pequenos bolsões de populações locais de mosquitos selvagens que são independentes uns dos outros e de difícil acesso”, cita.

Outra questão pode ser a temperatura, aponta. Alguns estudos demonstraram que a cepa w Mel pode ser afetada negativamente pelo estresse térmico, o que pode dificultar a introgressão no calor.

Como próximos passos, Croda acha que é preciso ir além dos testes laboratoriais para mostrar a redução de transmissão de chikungunya e do zika com dados consistentes como os da dengue.

Após a intervenção em Niterói, os dados mostram uma redução na transmissão de chikungunya na casa dos 60%, e de 37% em relação ao zika. Moreira explica que, em laboratório, a bactéria mostrou ser capaz de reduzir a transmissão desses outros dois vírus em níveis bastante semelhantes aos da dengue. Os dados de mundo real, diz, tem limitações devido à alternância de anos com mais e menos casos das doenças – por isso, inclusive, o estudo em Niterói foi retomado. “Faltaram casos suficientes para mostrar uma redução (em zika).”

O número de casos anuais de dengue aumentou dez vezes na região das Américas em duas décadas. No Brasil, ele cresceu doze vezes. O vírus causador do quadro é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, que se prolifera especialmente quando há combinação de calor e água acumulada - algo que se torna cada vez mais frequente por aqui devido às mudanças climáticas. Isso tudo exige medidas cada vez mais urgentes para deter o avanço da doença

Uma estratégia inusitada para combatê-lo, e que vem sendo testada com sucesso em alguns lugares do mundo, é introduzir mais mosquitos no meio ambiente. Parece contraproducente, mas não falamos de qualquer mosquito: trata-se de uma versão alterada em laboratório, na qual é introduzida uma bactéria capaz de bloquear a transmissão do vírus para o ser humano e interferir no ciclo reprodutivo do inseto na natureza.

Essa é a premissa do Método Wolbachia, criado pelo World Mosquito Program (WPM), da Universidade Monash, na Austrália, que agrega empresas sem fins lucrativos e tem como intuito combater doenças transmitidas por mosquitos. Wolbachia, vale destacar, é o nome da bactéria inserida nos insetos.

Nas cidades onde o projeto tem atuado, pesquisadores alcançaram reduções de até 90% na incidência da dengue. Eles também tiveram resultados positivos em relações a outras doenças causadas pelo mosquito, como zika e chikungunya, conforme divulgado em estudos apresentados na conferência anual da Sociedade Americana de Medicina Tropical e Higiene, em Chicago, nos EUA, no final de outubro, que o Estadão acompanhou virtualmente.

O método se diferencia por ser duradouro, natural (não há alteração genética) e apresentar um custo-benefício promissor. Mas há desafios a serem encarados, como entender por que os mosquitos com a bactéria têm dificuldade para se estabelecer em determinadas localidades e achar maneiras de escalar a produção.

Especialistas apontam que apenas inovações “disruptivas”, como o esse método, combinadas serão capazes de frear o avanço da dengue, que não acontece só no Brasil, mas em todo mundo. Isso inclui novidades para o controle da transmissão pelo vetor, a oferta de uma vacina segura e eficaz, e o desenvolvimento de tratamentos contra a doença.

“Claramente, as medidas que temos, que são de controle do vetor, inseticida e eliminação de foco da doença, não estão sendo efetivas. O que a gente observa é que, ano a ano, há um aumento no número de casos em todo o mundo e no Brasil. Precisamos de inovação”, avalia o infectologista Julio Croda, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

Método Wolbachia no Brasil

Por aqui, o método é conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com financiamento do Ministério da Saúde em parceria com governos locais, desde 2014. O WPM está presente em cinco cidades: Rio de Janeiro (RJ), Niterói (RJ), Campo Grande (MS), Belo Horizonte (MG) e Petrolina (PE).

Os bons resultados têm atraído o interesse de novos municípios. “A demanda tem sido crescente no Brasil, já que a dengue tem ido para lugares mais remotos e para a região Sul do País”, conta Luciano Moreira, que coordena o projeto no País e é pesquisador da Fiocruz há mais de 20 anos.

Mosquito Aedes aegypti, conhecido por suas listras brancas, é o transmissor do vírus da dengue Foto: witsawat/Adobe Stock

Dados públicos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), tabulados pelo Estadão, mostram como, de fato, a região Sul, onde o mosquito tradicionalmente não se desenvolve devido ao frio, contribuiu significativamente para o aumento do número anual de caso desde 2020.

Em 2014, os casos no Sul representaram apenas 3,8% do total nacional, e durante a maior epidemia da história brasileira, em 2015, esse número foi de apenas 4,6%. Em outubro de 2023 - que já é o 2° ano com mais casos desde 2000 -, porém, a região já representava 27% dos casos nacionais.

A doença também está se espalhando para mais cidades brasileiras. Em 2014, cerca de de 4 mil municípios notificaram casos, enquanto no ano passado, quase 5 mil cidades tiveram casos.

Segundo Moreira, a intenção é levantar uma fábrica de mosquitos até o fim do ano que vem para, assim, para atender a demanda de mais localidades. O projeto é uma joint venture entre o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP), da Fiocruz no Paraná, e o WPM. Sem local definido ainda, a instalação poderá produzir de 50 milhões a 100 milhões de ovos com bactéria por semana. “Vai ser a maior biofábrica de mosquitos com Wolbachia do mundo.”

De forma provisória, mosquitos são produzidos dentro da Fiocruz, no Rio, e em um espaço cedido pela prefeitura de Belo Horizonte.

Como funciona?

Aedes aegypti é o nome científico do mosquito que serve de vetor não só para a dengue, mas também para a chikungunya e zika, que fazem parte de um grupo das doenças definidas como arboviroses. O pernilongo, conhecido por suas listras brancas, é considerado doméstico e tem hábitos preferencialmente diurnos. Apenas a fêmea pica humanos, e ela só adquire o vírus causador dessas doenças quando se alimenta do sangue de alguém infectado.

O renomado cientista Scott O’Neill, CEO do WPM, começou seus estudos com a Wolbachia há anos, conforme conta Moreira, que fez pós-doutorado no laboratório dele. O interesse começou após um grupo americano descobrir que as chamadas moscas-da-fruta (Drosophila melanogaster) sobreviviam metade do tempo quando carregavam essa bactéria no organismo.

A Wolbachia é uma bactéria intracelular obrigatória (isto é, não sobrevive fora do hospedeiro) e é encontrada em metade das espécies de insetos existentes, mas não no Aedes aegypti. Não há evidências de que ela seja um patógeno (cause doença) em humanos ou em qualquer vertebrado, segundo a epidemiologista Katie Anders, diretora de avaliação de impacto do WPM.

“Como ela ocorre naturalmente em várias espécies de insetos, inclusive naqueles que picam, aos quais todos já fomos expostos, podemos dizer quase com certeza que a Wolbachia é segura para ser implantada como uma intervenção de saúde pública”, afirmou Katie, durante a conferência anual da Sociedade Americana de Medicina Tropical e Higiene.

Moreira conta que a primeira cepa de Wolbachia testada conseguiu reduzir a vida do Aedes, mas, por causa de alguns problemas, não foi capaz de se estabelecer em uma população do mosquito. Por isso, eles testaram outra cepa, a w Mel, também da mosca-da-fruta. A descoberta foi surpreendente. “Ela bloqueava o vírus”, conta o pesquisador da Fiocruz. Isso mudou os rumos do projeto, que hoje já está presente em 14 países.

Quando a bactéria está em suas células, o mosquito tem uma probabilidade significativamente reduzida de se infectar com algum arbovírus. E, quando isso acontece, o vírus tem capacidade de replicação e disseminação diminuídas, ou seja, se tornam vetores menos competentes.

Moreira afirma que isso ocorre por uma série de motivos. Entre eles, destaca dois: primeiro, a bactéria promove um aumento na resposta imune daquela célula e, por tabela, há uma proteção maior do mosquito contra o vírus. Em segundo lugar, ocorre uma competição por recursos da célula, na qual a Wobachia vence, e não há nutrientes suficientes para que o vírus se multiplique.

Para introduzir a bactéria no Aedes aegypti, os cientistas usam agulhas microscópicas para, primeiro, pegá-la da mosca-da-fruta. Depois, inserem-na em ovos jovens do mosquito. Ao racharem, estabelece-se uma colônia de Aedes aegypti com Wolbachia. “Ela é herdada através de gerações sucessivas. Você não precisa continuar fazendo microinjeções”, ensina Katie.

Com o tempo, a Wolbachia consegue se firmar dentro da população de mosquitos e passa a fazer parte dos genes da espécie, por causa de algo chamado incompatibilidade citoplasmática. Ela “manipula” os resultados reprodutivos do mosquito de forma que, quando um macho infectado por Wolbachia acasala com uma fêmea de tipo selvagem, os ovos são inviáveis e não eclodirão. Agora, se as fêmeas com a bactéria acasalam com qualquer macho, todos os ovos carregarão Wolbachia e eclodirão.

“Devido a esse processo de transmissão materna e à incompatibilidade citoplasmática, a Wolbachia continua a penetrar na população até que grande maioria dos Aedes aegypti sejam portadores dela”, explica Katie. Segundo ela, lançamentos – seja de ovos ou insetos adultos – de fêmeas e machos, durante um período de 16 a 26 semanas, são suficientes para que a bactéria se estabeleça na população de mosquitos.

Resultados surpreendentes

Desde que o método começou a ser testado – em cidades endêmicas para a doença ou não –, a WPM tem registrado resultados surpreendentes. “Evidências de mundo real que estão sendo coletadas mostram uma redução consistente na incidência de dengue em múltiplas geografias”, afirmou Katie Anders.

Em cidades do Vale de Aburra, na Colômbia, a queda na incidência de dengue variou entre 94% e 97%, segundo o WPM – considerando apenas dados de notificação dos casos, sem testá-los sorologicamente. Em Niterói, no Rio de Janeiro, foi de 70%. Mesmo na capital fluminense, onde a bactéria enfrenta dificuldades para se estabelecer na população de mosquitos, os pesquisadores observaram uma redução de 38%, conforme estudo publicado na renomada revista científica The Lancet.

Mas o estudo que faz brilhar os olhos de cientistas foi publicado na revista científica The New England Journal of Medicine. Os pesquisadores do WPM conseguiram mostrar que, após a introdução dos mosquitos modificados, a incidência de casos de dengue sintomática caiu 77% em Yogyakarta, na Indonésia. Também houve queda de 86% nas hospitalizações.

A pesquisa é considerada padrão-ouro, já que se trata de um teste randomizado (dividiram a cidade em sítios e apenas alguns receberam o mosquitos com a bactéria) e porque os pacientes foram submetidos a teste sorológicos da doença – algo que nunca havia sido feito para averiguar a eficácia de uma intervenção de controle do Aedes aegypti.

Com esses resultados, em dezembro de 2020, o Vector Control Advisory Group, da Organização Mundial da Saúde (OMS), recomendou que a agência internacional iniciasse o processo de desenvolvimento de uma diretriz para uso da intervenção entre os países membros. Neste ano, a Organização Pan-Americana da Saúde (PAHO) também informou que está produzindo um manual sobre o assunto.

Mais estudos estão em andamento, inclusive outro do tipo randomizado em Belo Horizonte. Ele será um pouco diferente em comparação ao da Indonésia, conta Moreira. Na cidade mineira, os pesquisadores acompanham crianças com coleta de amostras de sangue. “Elas têm menos chances de já terem apresentado arboviroses”, explica ele. A pesquisa começou em 2021 e deve ir até 2025.

No congresso, Katie adiantou que foi retomado um estudo clínico em Yogyakarta para saber se a cidade oferece uma oportunidade para analisar o potencial real de eliminação local da dengue após a liberação dos mosquitos. “Desde 2021, temos visto uma supressão sustentada dos casos de dengue (na cidade). Quando analisamos as notificações dos últimos 30 anos, vemos que o número de casos desde 2021 tem sido os mais baixos.”

Em parceria com a Universidade de Kajimata, eles têm observado novamente pacientes febris, com testes PCR e sorológicos. “Nos nove meses entre janeiro e setembro deste ano, houve um total de 2,4 mil pacientes febris inscritos, dos quais sete foram confirmados virologicamente como dengue, e eram casos esporádicos, que ocorreram em diferentes partes da cidade e não estavam agrupados no tempo”, comemorou.

O estudo em Niterói também foi retomado, conta Moreira. “Estamos refazendo essas análises com um tempo histórico mais longo. Estamos nos preparando para publicar, mas encontramos níveis bem mais altos de bloqueio. Não posso falar de quanto, mas é semelhante ao que foi visto na Colômbia”, adianta.

Vantagens do método

“Os dados são excelentes”, analisa o infectologista Julio Croda. “Não sei porque não há mais ênfase à questão da Wolbachia, porque os dados mostram uma eficácia muito grande”, afirma Celso Granato, professor livre-docente aposentado de infectologia do Departamento de Medicina da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Os especialistas ouvidos pela reportagem e os participantes do projeto apontam que o método tem três grandes vantagens. A primeira delas é a sustentabilidade. Após liberações durantes algumas semanas, não é preciso fazer novas solturas. “Temos áreas na Austrália em que o programa foi feito há 11 anos e os mosquitos com Wolbachia continuam ali presentes. Temos áreas aqui no Brasil em que finalizamos (a soltura) há oito anos e os mosquitos continuam ali”, fala Moreira.

Vale lembrar que o método é considerado natural, pois não é feita uma alteração genética – nem no mosquito nem na bactéria. E isso impacta diretamente na terceira vantagem: o custo-benefício, algo muito importante em saúde pública.

“É uma coisa barata, que poderíamos estar disseminando”, avalia Granato. “Outra medida (de controle do vetor) são os mosquitos transgênicos, mas é muito caro. Tem que ter uma população de mosquitos geneticamente modificados muito grande. O cálculo que ele fazem é que você tem que ter 5 mosquitos geneticamente modificados para cada mosquito selvagem para ele poder ser eficaz na competição, só que ele vive menos, é mais frágil.”

Segundo Moreira, um grupo de pesquisadores de Brasília averiguou o custo-benefício em sete cidades brasileiras e deve publicar os resultados em breve. Ele adianta que encontraram um retorno de R$ 50 a R$ 550 para cada R$ 1 investido no método. Na Colômbia, estudos estimam que cada dólar de custeio da implantação da Wolbachia deve retornar US$ 5,61 ao longo de dez anos.

Desafios e próximos passos

“A questão agora é como transformar toda essa evidência científica que já existe em relação ao método em uma real intervenção de saúde pública e reduzir a carga da doença”, resume Croda.

Escalar a produção, de fato, é um dos principais gargalos do projeto, concorda Moreira. Para isso, além da biofábrica, segundo ele, estuda-se o uso da automação em diversas etapas do processo, da produção às solturas.

Apesar de os resultados serem surpreendentes, em algumas localidades o mosquito com bactéria tem dificuldade de se estabelecer. Um exemplo é o Rio de Janeiro, onde as solturas foram feitas em favelas, como o Complexo do Alemão e a Maré, segundo Moreira.

O estudo, tocado por estudiosos da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e publicado no Lancet, diz que, em média, 32% dos mosquitos recolhidos nas zonas de libertação entre um e 29 meses após a soltura inicial testaram positivo para a cepa w Mel, o que mostraria uma introgressão incompleta da bactéria na localidade. Mesmo assim, houve uma redução de 38% na incidência de dengue.

“Por que uma introgressão imperfeita? Isso continua uma questão em aberto, mas existem algumas hipóteses”, disse Henrik Salje, professor do departamento de genética de Cambridge, durante o congresso.

“É uma população altamente diversificada social e geograficamente. Você tem grandes mudanças na elevação, moradias altamente compactas em algumas partes, e outras menos compactas. Com isso, dá para imaginar que pode haver muitos e muitos pequenos bolsões de populações locais de mosquitos selvagens que são independentes uns dos outros e de difícil acesso”, cita.

Outra questão pode ser a temperatura, aponta. Alguns estudos demonstraram que a cepa w Mel pode ser afetada negativamente pelo estresse térmico, o que pode dificultar a introgressão no calor.

Como próximos passos, Croda acha que é preciso ir além dos testes laboratoriais para mostrar a redução de transmissão de chikungunya e do zika com dados consistentes como os da dengue.

Após a intervenção em Niterói, os dados mostram uma redução na transmissão de chikungunya na casa dos 60%, e de 37% em relação ao zika. Moreira explica que, em laboratório, a bactéria mostrou ser capaz de reduzir a transmissão desses outros dois vírus em níveis bastante semelhantes aos da dengue. Os dados de mundo real, diz, tem limitações devido à alternância de anos com mais e menos casos das doenças – por isso, inclusive, o estudo em Niterói foi retomado. “Faltaram casos suficientes para mostrar uma redução (em zika).”

O número de casos anuais de dengue aumentou dez vezes na região das Américas em duas décadas. No Brasil, ele cresceu doze vezes. O vírus causador do quadro é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, que se prolifera especialmente quando há combinação de calor e água acumulada - algo que se torna cada vez mais frequente por aqui devido às mudanças climáticas. Isso tudo exige medidas cada vez mais urgentes para deter o avanço da doença

Uma estratégia inusitada para combatê-lo, e que vem sendo testada com sucesso em alguns lugares do mundo, é introduzir mais mosquitos no meio ambiente. Parece contraproducente, mas não falamos de qualquer mosquito: trata-se de uma versão alterada em laboratório, na qual é introduzida uma bactéria capaz de bloquear a transmissão do vírus para o ser humano e interferir no ciclo reprodutivo do inseto na natureza.

Essa é a premissa do Método Wolbachia, criado pelo World Mosquito Program (WPM), da Universidade Monash, na Austrália, que agrega empresas sem fins lucrativos e tem como intuito combater doenças transmitidas por mosquitos. Wolbachia, vale destacar, é o nome da bactéria inserida nos insetos.

Nas cidades onde o projeto tem atuado, pesquisadores alcançaram reduções de até 90% na incidência da dengue. Eles também tiveram resultados positivos em relações a outras doenças causadas pelo mosquito, como zika e chikungunya, conforme divulgado em estudos apresentados na conferência anual da Sociedade Americana de Medicina Tropical e Higiene, em Chicago, nos EUA, no final de outubro, que o Estadão acompanhou virtualmente.

O método se diferencia por ser duradouro, natural (não há alteração genética) e apresentar um custo-benefício promissor. Mas há desafios a serem encarados, como entender por que os mosquitos com a bactéria têm dificuldade para se estabelecer em determinadas localidades e achar maneiras de escalar a produção.

Especialistas apontam que apenas inovações “disruptivas”, como o esse método, combinadas serão capazes de frear o avanço da dengue, que não acontece só no Brasil, mas em todo mundo. Isso inclui novidades para o controle da transmissão pelo vetor, a oferta de uma vacina segura e eficaz, e o desenvolvimento de tratamentos contra a doença.

“Claramente, as medidas que temos, que são de controle do vetor, inseticida e eliminação de foco da doença, não estão sendo efetivas. O que a gente observa é que, ano a ano, há um aumento no número de casos em todo o mundo e no Brasil. Precisamos de inovação”, avalia o infectologista Julio Croda, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.

Método Wolbachia no Brasil

Por aqui, o método é conduzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com financiamento do Ministério da Saúde em parceria com governos locais, desde 2014. O WPM está presente em cinco cidades: Rio de Janeiro (RJ), Niterói (RJ), Campo Grande (MS), Belo Horizonte (MG) e Petrolina (PE).

Os bons resultados têm atraído o interesse de novos municípios. “A demanda tem sido crescente no Brasil, já que a dengue tem ido para lugares mais remotos e para a região Sul do País”, conta Luciano Moreira, que coordena o projeto no País e é pesquisador da Fiocruz há mais de 20 anos.

Mosquito Aedes aegypti, conhecido por suas listras brancas, é o transmissor do vírus da dengue Foto: witsawat/Adobe Stock

Dados públicos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), tabulados pelo Estadão, mostram como, de fato, a região Sul, onde o mosquito tradicionalmente não se desenvolve devido ao frio, contribuiu significativamente para o aumento do número anual de caso desde 2020.

Em 2014, os casos no Sul representaram apenas 3,8% do total nacional, e durante a maior epidemia da história brasileira, em 2015, esse número foi de apenas 4,6%. Em outubro de 2023 - que já é o 2° ano com mais casos desde 2000 -, porém, a região já representava 27% dos casos nacionais.

A doença também está se espalhando para mais cidades brasileiras. Em 2014, cerca de de 4 mil municípios notificaram casos, enquanto no ano passado, quase 5 mil cidades tiveram casos.

Segundo Moreira, a intenção é levantar uma fábrica de mosquitos até o fim do ano que vem para, assim, para atender a demanda de mais localidades. O projeto é uma joint venture entre o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP), da Fiocruz no Paraná, e o WPM. Sem local definido ainda, a instalação poderá produzir de 50 milhões a 100 milhões de ovos com bactéria por semana. “Vai ser a maior biofábrica de mosquitos com Wolbachia do mundo.”

De forma provisória, mosquitos são produzidos dentro da Fiocruz, no Rio, e em um espaço cedido pela prefeitura de Belo Horizonte.

Como funciona?

Aedes aegypti é o nome científico do mosquito que serve de vetor não só para a dengue, mas também para a chikungunya e zika, que fazem parte de um grupo das doenças definidas como arboviroses. O pernilongo, conhecido por suas listras brancas, é considerado doméstico e tem hábitos preferencialmente diurnos. Apenas a fêmea pica humanos, e ela só adquire o vírus causador dessas doenças quando se alimenta do sangue de alguém infectado.

O renomado cientista Scott O’Neill, CEO do WPM, começou seus estudos com a Wolbachia há anos, conforme conta Moreira, que fez pós-doutorado no laboratório dele. O interesse começou após um grupo americano descobrir que as chamadas moscas-da-fruta (Drosophila melanogaster) sobreviviam metade do tempo quando carregavam essa bactéria no organismo.

A Wolbachia é uma bactéria intracelular obrigatória (isto é, não sobrevive fora do hospedeiro) e é encontrada em metade das espécies de insetos existentes, mas não no Aedes aegypti. Não há evidências de que ela seja um patógeno (cause doença) em humanos ou em qualquer vertebrado, segundo a epidemiologista Katie Anders, diretora de avaliação de impacto do WPM.

“Como ela ocorre naturalmente em várias espécies de insetos, inclusive naqueles que picam, aos quais todos já fomos expostos, podemos dizer quase com certeza que a Wolbachia é segura para ser implantada como uma intervenção de saúde pública”, afirmou Katie, durante a conferência anual da Sociedade Americana de Medicina Tropical e Higiene.

Moreira conta que a primeira cepa de Wolbachia testada conseguiu reduzir a vida do Aedes, mas, por causa de alguns problemas, não foi capaz de se estabelecer em uma população do mosquito. Por isso, eles testaram outra cepa, a w Mel, também da mosca-da-fruta. A descoberta foi surpreendente. “Ela bloqueava o vírus”, conta o pesquisador da Fiocruz. Isso mudou os rumos do projeto, que hoje já está presente em 14 países.

Quando a bactéria está em suas células, o mosquito tem uma probabilidade significativamente reduzida de se infectar com algum arbovírus. E, quando isso acontece, o vírus tem capacidade de replicação e disseminação diminuídas, ou seja, se tornam vetores menos competentes.

Moreira afirma que isso ocorre por uma série de motivos. Entre eles, destaca dois: primeiro, a bactéria promove um aumento na resposta imune daquela célula e, por tabela, há uma proteção maior do mosquito contra o vírus. Em segundo lugar, ocorre uma competição por recursos da célula, na qual a Wobachia vence, e não há nutrientes suficientes para que o vírus se multiplique.

Para introduzir a bactéria no Aedes aegypti, os cientistas usam agulhas microscópicas para, primeiro, pegá-la da mosca-da-fruta. Depois, inserem-na em ovos jovens do mosquito. Ao racharem, estabelece-se uma colônia de Aedes aegypti com Wolbachia. “Ela é herdada através de gerações sucessivas. Você não precisa continuar fazendo microinjeções”, ensina Katie.

Com o tempo, a Wolbachia consegue se firmar dentro da população de mosquitos e passa a fazer parte dos genes da espécie, por causa de algo chamado incompatibilidade citoplasmática. Ela “manipula” os resultados reprodutivos do mosquito de forma que, quando um macho infectado por Wolbachia acasala com uma fêmea de tipo selvagem, os ovos são inviáveis e não eclodirão. Agora, se as fêmeas com a bactéria acasalam com qualquer macho, todos os ovos carregarão Wolbachia e eclodirão.

“Devido a esse processo de transmissão materna e à incompatibilidade citoplasmática, a Wolbachia continua a penetrar na população até que grande maioria dos Aedes aegypti sejam portadores dela”, explica Katie. Segundo ela, lançamentos – seja de ovos ou insetos adultos – de fêmeas e machos, durante um período de 16 a 26 semanas, são suficientes para que a bactéria se estabeleça na população de mosquitos.

Resultados surpreendentes

Desde que o método começou a ser testado – em cidades endêmicas para a doença ou não –, a WPM tem registrado resultados surpreendentes. “Evidências de mundo real que estão sendo coletadas mostram uma redução consistente na incidência de dengue em múltiplas geografias”, afirmou Katie Anders.

Em cidades do Vale de Aburra, na Colômbia, a queda na incidência de dengue variou entre 94% e 97%, segundo o WPM – considerando apenas dados de notificação dos casos, sem testá-los sorologicamente. Em Niterói, no Rio de Janeiro, foi de 70%. Mesmo na capital fluminense, onde a bactéria enfrenta dificuldades para se estabelecer na população de mosquitos, os pesquisadores observaram uma redução de 38%, conforme estudo publicado na renomada revista científica The Lancet.

Mas o estudo que faz brilhar os olhos de cientistas foi publicado na revista científica The New England Journal of Medicine. Os pesquisadores do WPM conseguiram mostrar que, após a introdução dos mosquitos modificados, a incidência de casos de dengue sintomática caiu 77% em Yogyakarta, na Indonésia. Também houve queda de 86% nas hospitalizações.

A pesquisa é considerada padrão-ouro, já que se trata de um teste randomizado (dividiram a cidade em sítios e apenas alguns receberam o mosquitos com a bactéria) e porque os pacientes foram submetidos a teste sorológicos da doença – algo que nunca havia sido feito para averiguar a eficácia de uma intervenção de controle do Aedes aegypti.

Com esses resultados, em dezembro de 2020, o Vector Control Advisory Group, da Organização Mundial da Saúde (OMS), recomendou que a agência internacional iniciasse o processo de desenvolvimento de uma diretriz para uso da intervenção entre os países membros. Neste ano, a Organização Pan-Americana da Saúde (PAHO) também informou que está produzindo um manual sobre o assunto.

Mais estudos estão em andamento, inclusive outro do tipo randomizado em Belo Horizonte. Ele será um pouco diferente em comparação ao da Indonésia, conta Moreira. Na cidade mineira, os pesquisadores acompanham crianças com coleta de amostras de sangue. “Elas têm menos chances de já terem apresentado arboviroses”, explica ele. A pesquisa começou em 2021 e deve ir até 2025.

No congresso, Katie adiantou que foi retomado um estudo clínico em Yogyakarta para saber se a cidade oferece uma oportunidade para analisar o potencial real de eliminação local da dengue após a liberação dos mosquitos. “Desde 2021, temos visto uma supressão sustentada dos casos de dengue (na cidade). Quando analisamos as notificações dos últimos 30 anos, vemos que o número de casos desde 2021 tem sido os mais baixos.”

Em parceria com a Universidade de Kajimata, eles têm observado novamente pacientes febris, com testes PCR e sorológicos. “Nos nove meses entre janeiro e setembro deste ano, houve um total de 2,4 mil pacientes febris inscritos, dos quais sete foram confirmados virologicamente como dengue, e eram casos esporádicos, que ocorreram em diferentes partes da cidade e não estavam agrupados no tempo”, comemorou.

O estudo em Niterói também foi retomado, conta Moreira. “Estamos refazendo essas análises com um tempo histórico mais longo. Estamos nos preparando para publicar, mas encontramos níveis bem mais altos de bloqueio. Não posso falar de quanto, mas é semelhante ao que foi visto na Colômbia”, adianta.

Vantagens do método

“Os dados são excelentes”, analisa o infectologista Julio Croda. “Não sei porque não há mais ênfase à questão da Wolbachia, porque os dados mostram uma eficácia muito grande”, afirma Celso Granato, professor livre-docente aposentado de infectologia do Departamento de Medicina da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Os especialistas ouvidos pela reportagem e os participantes do projeto apontam que o método tem três grandes vantagens. A primeira delas é a sustentabilidade. Após liberações durantes algumas semanas, não é preciso fazer novas solturas. “Temos áreas na Austrália em que o programa foi feito há 11 anos e os mosquitos com Wolbachia continuam ali presentes. Temos áreas aqui no Brasil em que finalizamos (a soltura) há oito anos e os mosquitos continuam ali”, fala Moreira.

Vale lembrar que o método é considerado natural, pois não é feita uma alteração genética – nem no mosquito nem na bactéria. E isso impacta diretamente na terceira vantagem: o custo-benefício, algo muito importante em saúde pública.

“É uma coisa barata, que poderíamos estar disseminando”, avalia Granato. “Outra medida (de controle do vetor) são os mosquitos transgênicos, mas é muito caro. Tem que ter uma população de mosquitos geneticamente modificados muito grande. O cálculo que ele fazem é que você tem que ter 5 mosquitos geneticamente modificados para cada mosquito selvagem para ele poder ser eficaz na competição, só que ele vive menos, é mais frágil.”

Segundo Moreira, um grupo de pesquisadores de Brasília averiguou o custo-benefício em sete cidades brasileiras e deve publicar os resultados em breve. Ele adianta que encontraram um retorno de R$ 50 a R$ 550 para cada R$ 1 investido no método. Na Colômbia, estudos estimam que cada dólar de custeio da implantação da Wolbachia deve retornar US$ 5,61 ao longo de dez anos.

Desafios e próximos passos

“A questão agora é como transformar toda essa evidência científica que já existe em relação ao método em uma real intervenção de saúde pública e reduzir a carga da doença”, resume Croda.

Escalar a produção, de fato, é um dos principais gargalos do projeto, concorda Moreira. Para isso, além da biofábrica, segundo ele, estuda-se o uso da automação em diversas etapas do processo, da produção às solturas.

Apesar de os resultados serem surpreendentes, em algumas localidades o mosquito com bactéria tem dificuldade de se estabelecer. Um exemplo é o Rio de Janeiro, onde as solturas foram feitas em favelas, como o Complexo do Alemão e a Maré, segundo Moreira.

O estudo, tocado por estudiosos da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e publicado no Lancet, diz que, em média, 32% dos mosquitos recolhidos nas zonas de libertação entre um e 29 meses após a soltura inicial testaram positivo para a cepa w Mel, o que mostraria uma introgressão incompleta da bactéria na localidade. Mesmo assim, houve uma redução de 38% na incidência de dengue.

“Por que uma introgressão imperfeita? Isso continua uma questão em aberto, mas existem algumas hipóteses”, disse Henrik Salje, professor do departamento de genética de Cambridge, durante o congresso.

“É uma população altamente diversificada social e geograficamente. Você tem grandes mudanças na elevação, moradias altamente compactas em algumas partes, e outras menos compactas. Com isso, dá para imaginar que pode haver muitos e muitos pequenos bolsões de populações locais de mosquitos selvagens que são independentes uns dos outros e de difícil acesso”, cita.

Outra questão pode ser a temperatura, aponta. Alguns estudos demonstraram que a cepa w Mel pode ser afetada negativamente pelo estresse térmico, o que pode dificultar a introgressão no calor.

Como próximos passos, Croda acha que é preciso ir além dos testes laboratoriais para mostrar a redução de transmissão de chikungunya e do zika com dados consistentes como os da dengue.

Após a intervenção em Niterói, os dados mostram uma redução na transmissão de chikungunya na casa dos 60%, e de 37% em relação ao zika. Moreira explica que, em laboratório, a bactéria mostrou ser capaz de reduzir a transmissão desses outros dois vírus em níveis bastante semelhantes aos da dengue. Os dados de mundo real, diz, tem limitações devido à alternância de anos com mais e menos casos das doenças – por isso, inclusive, o estudo em Niterói foi retomado. “Faltaram casos suficientes para mostrar uma redução (em zika).”

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