Do aplicativo de rotas de trânsito ao relógio que monitora a qualidade do sono, a inteligência artificial (IA) já domina a rotina das pessoas. O volume de dados – e o que fazer com eles – é a grande riqueza do mundo corporativo e foi responsável pelo surgimento de startups que romperam a cifra do bilhão. Na medicina, entretanto, os algoritmos avançam com cautela. Afinal, decisões erradas podem custar vidas, segundo especialistas que participaram do Summit Saúde e Bem-Estar 2023, evento organizado pelo Estadão.
A principal questão a ser resolvida é que algoritmos atuam por aprendizado desses dados, e é preciso considerar a realidade brasileira, muito diversa. Regiões ricas geram mais informações, que podem não ser eficazes para o tratamento de uma pessoa da periferia. “A possibilidade de o algoritmo tomar piores decisões para grupos vulneráveis é a grande questão”, aponta Alexandre Chiavegatto Filho, professor de Inteligência Artificial em Saúde na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Para ele, a quantidade de dados gerada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como os de nascimento, vacinação, internação e óbito, é gigantesca, mas eles não estão integrados. “É curioso – hoje temos tecnologia acessível, mas falta matéria-prima para alimentá-la.” Segundo o professor, a solução é que cada unidade de saúde tenha seu algoritmo específico.
Outro ponto de atenção também envolve o risco de aprendizado de máquina equivocado. “Humanos tomam decisões preconceituosas todos os dias. O algoritmo não tem um conhecimento prévio do mundo, não tem uma ética, não sabe o que é certo e o que é errado. Ele está aprendendo pelas decisões que estão disponíveis”, explica Chiavegatto Filho.
“A computação é o meio, não o fim. Estamos desenvolvendo ferramentas para pessoas e é preciso trazer sempre a ética para o processo”, alerta Sandra Avila, professora do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que vislumbra grandes benefícios nesta área, se houver uma condução correta dos processos.
Nesse sentido, já é possível identificar ações bem-sucedidas e prever melhorias com o auxílio dos computadores, um recurso inevitável. A primeira área que abraçou a IA quebrou o principal tabu – o temor de máquinas substituírem humanos. “Médicos radiologistas se tornaram mais produtivos e melhores; é a segunda especialidade que mais cresce nos Estados Unidos”, conta Chiavegatto Filho. “Hoje se fala muito sobre inteligência artificial em congressos médicos. Antes, ficavam com o pé atrás. Agora, as perguntas são técnicas, empolgadas, querem saber como colocar em prática”, completa.
Olho no olho
Uma solução simples (para os padrões tecnológicos atuais) que é oferecida pela máquina acaba por humanizar o atendimento. Por exemplo, ao gravar a consulta e usar uma ferramenta de transcrição do diálogo, o médico deixa de se ocupar com as anotações no computador e dedica o olhar exclusivamente ao paciente. “Preencher prontuário é coisa do passado, um péssimo uso do tempo. Burocracias desnecessárias serão limadas pela inteligência artificial”, avisa o professor da USP.
Carlos Campos, médico do Departamento de Cardiologia Intervencionista do Instituto do Coração (InCor), foi responsável pela realização das primeiras angioplastias com auxílio de IA na América Latina. Ele toma a decisão de colocar ou não um stent (tubo expansível que impede a obstrução da artéria) a partir da medição de fluxo sanguíneo por meio de algoritmo – e não mais por uma câmera de raio X.
A IA também foi útil ao encurtar a curva de aprendizado para o uso da câmera miniaturizada no procedimento de implante guiado do stent. “A decisão do médico fica mais precisa; ele sabe o local da obstrução, a medida da placa de gordura e o comprimento necessário do stent. A inteligência artificial possibilita colocar muito mais variáveis no modelo de predição e de identificação de fatores de risco”, explica Campos.
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A tecnologia também unificará informações, como histórico de exames e sintomas, para fornecer subsídios e prognósticos do desenvolvimento de uma doença. “Não é coisa do futuro, não é ficção científica, já existe e está melhorando a cada dia. Mas ainda é pouco perto do que vai acontecer nos próximos anos. Vem aí um tsunami de inteligência artificial, que irá melhorar a produtividade de quem a utilizar”, avisa Chiavegatto Filho.
Nova formação
Utilizar IA não significa que todas as pessoas deverão atuar em programação. Mas ter noções desse trabalho será um diferencial. A professora Sandra Avila já percebeu o aumento da procura de estudantes de medicina e de áreas correlatas pelo assunto – ela ministra uma disciplina de aprendizado de máquina. “Entender a lógica do processo (de programação) faz o profissional questionar”, reflete.
Chiavegatto Filho relata que alunos de medicina da USP têm pressionado por um conteúdo de IA na grade regular, vislumbrando oportunidades na carreira. “Estudar sobre programação e IA será fundamental para liderar equipes, principalmente na área da saúde. Muitas pessoas falam sobre IA de forma errada ou ultrapassada, então, é bom fazer a própria investigação. Precisaremos de mais pessoas para guiar essa nova área.”
Carlos Campos concorda com essa busca por conhecimento e lembra que já existe o termo “médico aumentado”, baseado no conceito de “inteligência aumentada”, que consiste no uso dessa tecnologia para aprimorar o trabalho humano. “Esse médico teria uma capacidade maior de dialogar com um matemático no desenvolvimento de algoritmos, uma interação para a tomada de decisões corretas.”
Os prós e contras do uso de IA na saúde
Prós
- Desburocratiza a atividade médica em relação a anotações durante consulta e preenchimento de prontuários.
- Aumenta a precisão de exames de imagem, o que otimiza o diagnóstico.
- O cruzamento de dados do histórico do paciente pode gerar predições sobre riscos de doenças.
Contras
- Possibilidade de soluções equivocadas a partir de dados insuficientes ou desconectados.
- Falta de histórico do algoritmo para discernir preconceitos.
- Risco de vazamento de informações de saúde, que são um tema sensível.