Já temos tecnologia para fazer cirurgia a distância, diz pioneiro de intervenções cardíacas com robô


O cardiologista israelense Rafi Beyar descreveu, em 2006, os primeiros casos de angioplastia realizados por um sistema de navegação remota

Por Leon Ferrari
Foto: Werther Santana/Estadão
Entrevista comRafi Beyarcardiologista e criador do primeiro robô para angioplastia

Nos últimos cinco anos, a taxa de cirurgias robóticas tem disparado. Só no Brasil, o número de robôs cirúrgicos dobrou, e o volume de procedimentos avançou 417%. Para que isso se tornasse possível, foram décadas de estudos. O israelense Rafi Beyar, ex-diretor do Rambam Health Care Campus e ex-reitor da Faculdade de Medicina do Instituto de Tecnologia de Israel (Technion), é um dos cientistas envolvidos nos primórdios desses trabalhos.

Em 2006, ele descreveu, no Journal of the American College of Cardiology, os 18 primeiros casos clínicos de intervenções coronárias percutâneas, mais conhecidas pelo termo angioplastia, usando um sistema de navegação remota – em outras palavras, um robô.

Do total, 15 procedimentos foram plenamente executados pelo robô, os outros três precisaram ser finalizados manualmente. Com esses resultados, Beyar e os colegas conseguiram comprovar a segurança do procedimento e atrair investimentos para aprimorar a tecnologia. Em 2019, veio o aval da Food and Drug Administration (FDA) – órgão americano semelhante à Anvisa – para realizá-lo.

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A angioplastia é um tratamento não cirúrgico para resolver obstruções das artérias coronárias (quando gordura se acumula). No procedimento, um tubo (cateter) é introduzido em um vaso sanguíneo – em geral, na região da virilha –, e é direcionado até à artéria bloqueada. Na ponta do tubo há um balão, que será inflado para abrir espaço para o fluxo sanguíneo retomar a circulação normal. Um stent, que é uma espécie de bobina de malha metálica, é colocado na área para evitar que o estreitamento volte a acontecer.

Beyar, que diz ser um “encanador”, brincando com o fato de que o procedimento se assemelha a desentupir um cano, argumenta que esses três passos da terapia podem ser facilmente feitos por um robô. No protótipo criado por ele, o braço robótico é controlado com ajuda de um joystick (como se fosse um controle de videogame) e uma tela sensível ao toque. Aí, o médico coordena os movimentos, que são obtidos com um par de rolos motorizados.

'Podemos usar IA em quase tudo', diz cardiologista Rafi Beyar Foto: WERTHER
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Com base em todo esse conhecimento, o cardiologista fundou a Corindus Vascular Robotics, inicialmente chamada de Navicath, que tem como principal produto o robô CorPath GRX. A empresa foi vendida para a gigante alemã Siemens.

Mais recentemente, Beyar viu seu robô ser utilizado pelo indiano Tejas Patel, diretor do departamento de Cardiologia Intervencionista do Apex Heart Institute, nas cinco primeiras angioplastias em humanos a 32 quilômetros de distância dos pacientes.

No Brasil, Beyar participou de eventos promovidos pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pela Confederação Nacional das Câmaras do Comércio Brasil-Israel (CNBI). Em entrevista exclusiva ao Estadão, ele falou sobre os avanços tecnológicos e as perspectivas dos procedimentos de saúde com robôs. Leia os principais trechos da conversa:

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O que motivou as pesquisas que culminaram no artigo de 2006?

Sou um cardiologista intervencionista, então fico o dia todo no laboratório de cateterismo usando chumbo, que é uma carga muito pesada, para me proteger da radiação. Com isso, há dois perigos. Em primeiro lugar, a proteção é muito ineficiente, então você acaba absorvendo muita radiação. Além disso, há problemas de coluna, porque passo o dia inteiro em pé com essa carga pesada (na coluna).

É um ambiente prejudicial para o operador. Já existia um robô para cirurgia em desenvolvimento, o (sistema cirúrgico) Da Vinci. Então, pensei que deveríamos ter um também para intervenções coronárias. Nós empurramos e puxamos fios e (colocamos) stents, e tudo isso pode ser feito por um robô. E esse também foi o início da introdução do stent no mundo. Fui um dos criadores dos stents.

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Começamos como uma empresa iniciante de inovação e conseguimos obter um financiamento para o robô inicial, um orçamento bem pequeno. Pegamos um joystick de jogos e, com ajuda de algumas empresas de engenharia, projetamos o primeiro robô.

No primeiro estudo clínico, foram 18 pacientes. Desses, 15 passaram por cirurgias bem-sucedidas. Em alguns, vocês precisaram intervir manualmente. O sucesso foi uma surpresa?

Não foi uma surpresa, porque já havíamos testado em modelos animais. Não foi perfeito, porque tivemos um caso de problemas mecânicos: o software do sistema estava travado. O bom é que foi só desconectar (o robô) e continuar com a abordagem normal, que é a manual. Era isso que esperávamos, mas tínhamos que mostrar ao mundo que podia ser feito com segurança. O estudo atraiu investimentos adicionais.

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O robô de vocês também foi importante para promover um mercado na área de robótica para intervenções cardíacas. De 2006 para cá, o que mudou em termos de tecnologia?

Até o ano passado, sei que mais de 100 centros no mundo usavam o robô extensivamente. Ele continuou a se desenvolver, e já existem concorrentes, o que é positivo. Se houvesse apenas um tipo de carro no mundo, isso não seria bom. Há muitos carros, um é mais barato, outro é mais sofisticado... Mas isso é uma coisa que ainda vai demorar (para termos ainda mais opções).

E uma coisa que ainda não existe é usar todos os tipos de navegação e imagens sofisticadas e inteligência artificial para ajudar o médico a controlar o robô. Você pode fazer um procedimento semiautomático, você pode fazer um procedimento totalmente automático, você pode dizer ao robô para se movimentar, e não necessariamente que o médico faça isso com o joystick... Então, há muito potencial de desenvolvimento futuro que tenho certeza que veremos ao longo dos anos.

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Em entrevista passada, o senhor disse que poderíamos ensinar um robô a conduzir uma cirurgia por conta própria. Pode falar mais sobre isso?

Sempre haverá um médico por trás do robô. Nunca será um robô autônomo que vai fazer o procedimento. Vai ter um médico. Agora, (em intervenções coronárias) tudo é feito manualmente, até com robô. O médico olha a imagem, move o fio, move o balão e move o stent com o joystick. Mas todos esses movimentos poderiam ser feitos de uma forma muito mais precisa (se fossem automáticos). Tudo isso que é feito por um médico especialista pode ser feito facilmente com o robô, mas o médico deve estar lá, observar o tempo todo e decidir o que quer tratar.

Tenho certeza de que isso pode ser feito. O robô Da Vinci ainda não é realmente um robô, é um sistema de operação remota. Alguém, a alguma distância, opera os braços do robô. Até para colocar um ponto automaticamente não é tão simples assim, tem que fazer um movimento muito específico, tem que ter certeza de que pegou o tecido do tamanho certo. O que para um cirurgião parece simples, para um robô é muito complexo. Mas sei que muitas empresas estão trabalhando nisso, tentando fazer uma manipulação robótica automática neste momento.

Não há dúvida de que é possível. A capacidade de fazer coisas complexas com machine learning (ou seja, o aprendizado da máquina) é incrível, e estamos apenas no começo. Acredito fortemente que vamos chegar lá, mas vai levar tempo.

Quanto tempo?

Entre 10 e 20 anos. A tecnologia está aqui, a capacidade de fazer isso está aqui, mas há um caminho comercial a ser percorrido. Mas acredito que daqui 10 anos já veremos robôs que usam inteligência artificial para algumas atividades.

E como os pacientes vão se beneficiar disso? Tem a ver com a precisão?

Obviamente, a precisão é um ponto central, porque, com um robô, você pode fazer movimentos muito minuciosos e eliminar tremores, medir exatamente o que está fazendo. Fora a capacidade de chegar a locais que, manualmente, seria muito difícil, já que o robô tem braços menores do que os braços grandes de um médico.

O senhor fala que o custo é uma limitação para o uso mais amplo dos robôs. Há outras limitações a serem superadas?

Os robôs não servem para todos os tipos de cirurgia, mas, à medida que os dispositivos se tornarem mais precisos e sofisticados, as limitações desaparecerão. O custo é a principal limitação hoje. Há 15 anos, quando eu era chefe do hospital, compramos um robô Da Vinci. Todos os departamentos queriam fazer pelo menos dois procedimentos por semana com o robô, mas não tínhamos dinheiro para isso.

Os procedimentos robóticos são caros por causa dos acessórios descartáveis. O robô tem todo um maquinário por trás dele, mas você anexa o braço robótico, que é o snapper. Todas as ferramentas (do braço) devem ser descartadas após dez procedimentos. Há um custo adicional entre U$ 1 e U$ 2 mil dólares para cada procedimento.

O senhor fala bastante sobre o uso de inteligência artificial. Como ela pode de fato ser usada nas cirurgias com robô? Recentemente, a OMS fez um comunicado pedindo cautela no uso de IA na área de saúde. O que o senhor pensa sobre isso?

Com cada progresso, há também um medo em relação onde ele levará. Isso depende de como é usado. Obviamente, quando se desenvolve uma arma de proteção, o medo é que as pessoas utilizem para o motivo errado, e vemos isso o tempo todo. Acho que você tem que ter cuidado ao aplicá-la, mas pode usá-la para muitas coisas.

Você pode usá-la para ensinar o braço robótico a realizar certos procedimentos. Pode pegar mil médicos especialistas e fazê-los aplicar os movimentos e usar IA para aprender com esses especialistas e, então, o braço robótico pode fazer esses procedimentos sozinho, aumentando a precisão.

A inteligência artificial pode ajudar a manipular o robô, mas também a analisar a imagem. Você sempre tem uma imagem do que está acontecendo no campo da cirurgia, e a inteligência artificial pode olhar para isso e identificar que há um ponto de sangramento ali, para você não deixar passar. Já foi demonstrado que a inteligência artificial é muito melhor do que os médicos na identificação de uma anormalidade em um exame de imagem. Vimos isso em (exames de) raio-X, e o mesmo acontecerá também na (cirurgia) robótica.

Se você olhar para a sala de cirurgia, há múltiplos monitores, e são os médicos que sempre têm que olhar para esses parâmetros. Um sistema de IA pode fazer isso muito melhor do que um médico. Podemos usar IA em quase tudo.

Na Índia, tivemos cinco casos de cirurgia a distância feita com o robô de vocês. Em um artigo, o senhor escreveu que devemos ter certa cautela com esses dados. Pode falar mais sobre o assunto?

(Tejas) Patel fez os primeiros cinco casos do que chamamos de cateterismo à distância. Isso foi precedido por um teste do sistema na internet normal. Foi preciso ter certeza de que não haveria o que chamamos de legging time. Isto é, se você dá uma ordem agora, e demora dois minutos para chegar até à máquina, não é bom. Precisa acontecer dentro de 100 milissegundos. Tem que ser muito rápido, tanto na obtenção das imagens quanto na execução dos movimentos robóticos. Parece que conseguimos fazer usando a internet normal. Ele foi o primeiro a provar que você pode fazer uma cateterização robótica remota em tempo real pela internet. Outros médicos nos Estados Unidos trabalharam muito para provar que você também pode fazer isso com 5G, pela internet sem fio, e eles mostraram isso em animais.

Em termos de tecnologia, é possível. A limitação é a regulamentação. Quem é o responsável pelo paciente? Quem está operando o robô à distância? Ou quem está ao lado do paciente? Você precisa ter equipes de ambos os lados e ter conhecimento de ambos os lados.

Se você tiver um especialista aqui, e houver alguém com um derrame a mil quilômetros de distância, que precisa fazer uma operação na próxima hora, esse é o conceito. São poucas as pessoas que sabem como tratar o sistema vascular do cérebro, e precisamos dessa habilidade remota para fazer procedimentos. E ela está aí.

Então, o senhor acha que vamos conseguir um dia, por exemplo, performar de Israel uma cirurgia que acontece no Brasil?

Eu acho que é possível. Conversamos sobre isso com o Einstein (hospital) e vamos tentar fazer. Você tem que ter uma boa conexão com a internet, com um vídeo muito bom. Tecnologicamente, não é um problema. O problema é logístico, financeiro e ético, já que é preciso entender quem será o responsável por isso.

Nos últimos cinco anos, a taxa de cirurgias robóticas tem disparado. Só no Brasil, o número de robôs cirúrgicos dobrou, e o volume de procedimentos avançou 417%. Para que isso se tornasse possível, foram décadas de estudos. O israelense Rafi Beyar, ex-diretor do Rambam Health Care Campus e ex-reitor da Faculdade de Medicina do Instituto de Tecnologia de Israel (Technion), é um dos cientistas envolvidos nos primórdios desses trabalhos.

Em 2006, ele descreveu, no Journal of the American College of Cardiology, os 18 primeiros casos clínicos de intervenções coronárias percutâneas, mais conhecidas pelo termo angioplastia, usando um sistema de navegação remota – em outras palavras, um robô.

Do total, 15 procedimentos foram plenamente executados pelo robô, os outros três precisaram ser finalizados manualmente. Com esses resultados, Beyar e os colegas conseguiram comprovar a segurança do procedimento e atrair investimentos para aprimorar a tecnologia. Em 2019, veio o aval da Food and Drug Administration (FDA) – órgão americano semelhante à Anvisa – para realizá-lo.

A angioplastia é um tratamento não cirúrgico para resolver obstruções das artérias coronárias (quando gordura se acumula). No procedimento, um tubo (cateter) é introduzido em um vaso sanguíneo – em geral, na região da virilha –, e é direcionado até à artéria bloqueada. Na ponta do tubo há um balão, que será inflado para abrir espaço para o fluxo sanguíneo retomar a circulação normal. Um stent, que é uma espécie de bobina de malha metálica, é colocado na área para evitar que o estreitamento volte a acontecer.

Beyar, que diz ser um “encanador”, brincando com o fato de que o procedimento se assemelha a desentupir um cano, argumenta que esses três passos da terapia podem ser facilmente feitos por um robô. No protótipo criado por ele, o braço robótico é controlado com ajuda de um joystick (como se fosse um controle de videogame) e uma tela sensível ao toque. Aí, o médico coordena os movimentos, que são obtidos com um par de rolos motorizados.

'Podemos usar IA em quase tudo', diz cardiologista Rafi Beyar Foto: WERTHER

Com base em todo esse conhecimento, o cardiologista fundou a Corindus Vascular Robotics, inicialmente chamada de Navicath, que tem como principal produto o robô CorPath GRX. A empresa foi vendida para a gigante alemã Siemens.

Mais recentemente, Beyar viu seu robô ser utilizado pelo indiano Tejas Patel, diretor do departamento de Cardiologia Intervencionista do Apex Heart Institute, nas cinco primeiras angioplastias em humanos a 32 quilômetros de distância dos pacientes.

No Brasil, Beyar participou de eventos promovidos pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pela Confederação Nacional das Câmaras do Comércio Brasil-Israel (CNBI). Em entrevista exclusiva ao Estadão, ele falou sobre os avanços tecnológicos e as perspectivas dos procedimentos de saúde com robôs. Leia os principais trechos da conversa:

O que motivou as pesquisas que culminaram no artigo de 2006?

Sou um cardiologista intervencionista, então fico o dia todo no laboratório de cateterismo usando chumbo, que é uma carga muito pesada, para me proteger da radiação. Com isso, há dois perigos. Em primeiro lugar, a proteção é muito ineficiente, então você acaba absorvendo muita radiação. Além disso, há problemas de coluna, porque passo o dia inteiro em pé com essa carga pesada (na coluna).

É um ambiente prejudicial para o operador. Já existia um robô para cirurgia em desenvolvimento, o (sistema cirúrgico) Da Vinci. Então, pensei que deveríamos ter um também para intervenções coronárias. Nós empurramos e puxamos fios e (colocamos) stents, e tudo isso pode ser feito por um robô. E esse também foi o início da introdução do stent no mundo. Fui um dos criadores dos stents.

Começamos como uma empresa iniciante de inovação e conseguimos obter um financiamento para o robô inicial, um orçamento bem pequeno. Pegamos um joystick de jogos e, com ajuda de algumas empresas de engenharia, projetamos o primeiro robô.

No primeiro estudo clínico, foram 18 pacientes. Desses, 15 passaram por cirurgias bem-sucedidas. Em alguns, vocês precisaram intervir manualmente. O sucesso foi uma surpresa?

Não foi uma surpresa, porque já havíamos testado em modelos animais. Não foi perfeito, porque tivemos um caso de problemas mecânicos: o software do sistema estava travado. O bom é que foi só desconectar (o robô) e continuar com a abordagem normal, que é a manual. Era isso que esperávamos, mas tínhamos que mostrar ao mundo que podia ser feito com segurança. O estudo atraiu investimentos adicionais.

O robô de vocês também foi importante para promover um mercado na área de robótica para intervenções cardíacas. De 2006 para cá, o que mudou em termos de tecnologia?

Até o ano passado, sei que mais de 100 centros no mundo usavam o robô extensivamente. Ele continuou a se desenvolver, e já existem concorrentes, o que é positivo. Se houvesse apenas um tipo de carro no mundo, isso não seria bom. Há muitos carros, um é mais barato, outro é mais sofisticado... Mas isso é uma coisa que ainda vai demorar (para termos ainda mais opções).

E uma coisa que ainda não existe é usar todos os tipos de navegação e imagens sofisticadas e inteligência artificial para ajudar o médico a controlar o robô. Você pode fazer um procedimento semiautomático, você pode fazer um procedimento totalmente automático, você pode dizer ao robô para se movimentar, e não necessariamente que o médico faça isso com o joystick... Então, há muito potencial de desenvolvimento futuro que tenho certeza que veremos ao longo dos anos.

Em entrevista passada, o senhor disse que poderíamos ensinar um robô a conduzir uma cirurgia por conta própria. Pode falar mais sobre isso?

Sempre haverá um médico por trás do robô. Nunca será um robô autônomo que vai fazer o procedimento. Vai ter um médico. Agora, (em intervenções coronárias) tudo é feito manualmente, até com robô. O médico olha a imagem, move o fio, move o balão e move o stent com o joystick. Mas todos esses movimentos poderiam ser feitos de uma forma muito mais precisa (se fossem automáticos). Tudo isso que é feito por um médico especialista pode ser feito facilmente com o robô, mas o médico deve estar lá, observar o tempo todo e decidir o que quer tratar.

Tenho certeza de que isso pode ser feito. O robô Da Vinci ainda não é realmente um robô, é um sistema de operação remota. Alguém, a alguma distância, opera os braços do robô. Até para colocar um ponto automaticamente não é tão simples assim, tem que fazer um movimento muito específico, tem que ter certeza de que pegou o tecido do tamanho certo. O que para um cirurgião parece simples, para um robô é muito complexo. Mas sei que muitas empresas estão trabalhando nisso, tentando fazer uma manipulação robótica automática neste momento.

Não há dúvida de que é possível. A capacidade de fazer coisas complexas com machine learning (ou seja, o aprendizado da máquina) é incrível, e estamos apenas no começo. Acredito fortemente que vamos chegar lá, mas vai levar tempo.

Quanto tempo?

Entre 10 e 20 anos. A tecnologia está aqui, a capacidade de fazer isso está aqui, mas há um caminho comercial a ser percorrido. Mas acredito que daqui 10 anos já veremos robôs que usam inteligência artificial para algumas atividades.

E como os pacientes vão se beneficiar disso? Tem a ver com a precisão?

Obviamente, a precisão é um ponto central, porque, com um robô, você pode fazer movimentos muito minuciosos e eliminar tremores, medir exatamente o que está fazendo. Fora a capacidade de chegar a locais que, manualmente, seria muito difícil, já que o robô tem braços menores do que os braços grandes de um médico.

O senhor fala que o custo é uma limitação para o uso mais amplo dos robôs. Há outras limitações a serem superadas?

Os robôs não servem para todos os tipos de cirurgia, mas, à medida que os dispositivos se tornarem mais precisos e sofisticados, as limitações desaparecerão. O custo é a principal limitação hoje. Há 15 anos, quando eu era chefe do hospital, compramos um robô Da Vinci. Todos os departamentos queriam fazer pelo menos dois procedimentos por semana com o robô, mas não tínhamos dinheiro para isso.

Os procedimentos robóticos são caros por causa dos acessórios descartáveis. O robô tem todo um maquinário por trás dele, mas você anexa o braço robótico, que é o snapper. Todas as ferramentas (do braço) devem ser descartadas após dez procedimentos. Há um custo adicional entre U$ 1 e U$ 2 mil dólares para cada procedimento.

O senhor fala bastante sobre o uso de inteligência artificial. Como ela pode de fato ser usada nas cirurgias com robô? Recentemente, a OMS fez um comunicado pedindo cautela no uso de IA na área de saúde. O que o senhor pensa sobre isso?

Com cada progresso, há também um medo em relação onde ele levará. Isso depende de como é usado. Obviamente, quando se desenvolve uma arma de proteção, o medo é que as pessoas utilizem para o motivo errado, e vemos isso o tempo todo. Acho que você tem que ter cuidado ao aplicá-la, mas pode usá-la para muitas coisas.

Você pode usá-la para ensinar o braço robótico a realizar certos procedimentos. Pode pegar mil médicos especialistas e fazê-los aplicar os movimentos e usar IA para aprender com esses especialistas e, então, o braço robótico pode fazer esses procedimentos sozinho, aumentando a precisão.

A inteligência artificial pode ajudar a manipular o robô, mas também a analisar a imagem. Você sempre tem uma imagem do que está acontecendo no campo da cirurgia, e a inteligência artificial pode olhar para isso e identificar que há um ponto de sangramento ali, para você não deixar passar. Já foi demonstrado que a inteligência artificial é muito melhor do que os médicos na identificação de uma anormalidade em um exame de imagem. Vimos isso em (exames de) raio-X, e o mesmo acontecerá também na (cirurgia) robótica.

Se você olhar para a sala de cirurgia, há múltiplos monitores, e são os médicos que sempre têm que olhar para esses parâmetros. Um sistema de IA pode fazer isso muito melhor do que um médico. Podemos usar IA em quase tudo.

Na Índia, tivemos cinco casos de cirurgia a distância feita com o robô de vocês. Em um artigo, o senhor escreveu que devemos ter certa cautela com esses dados. Pode falar mais sobre o assunto?

(Tejas) Patel fez os primeiros cinco casos do que chamamos de cateterismo à distância. Isso foi precedido por um teste do sistema na internet normal. Foi preciso ter certeza de que não haveria o que chamamos de legging time. Isto é, se você dá uma ordem agora, e demora dois minutos para chegar até à máquina, não é bom. Precisa acontecer dentro de 100 milissegundos. Tem que ser muito rápido, tanto na obtenção das imagens quanto na execução dos movimentos robóticos. Parece que conseguimos fazer usando a internet normal. Ele foi o primeiro a provar que você pode fazer uma cateterização robótica remota em tempo real pela internet. Outros médicos nos Estados Unidos trabalharam muito para provar que você também pode fazer isso com 5G, pela internet sem fio, e eles mostraram isso em animais.

Em termos de tecnologia, é possível. A limitação é a regulamentação. Quem é o responsável pelo paciente? Quem está operando o robô à distância? Ou quem está ao lado do paciente? Você precisa ter equipes de ambos os lados e ter conhecimento de ambos os lados.

Se você tiver um especialista aqui, e houver alguém com um derrame a mil quilômetros de distância, que precisa fazer uma operação na próxima hora, esse é o conceito. São poucas as pessoas que sabem como tratar o sistema vascular do cérebro, e precisamos dessa habilidade remota para fazer procedimentos. E ela está aí.

Então, o senhor acha que vamos conseguir um dia, por exemplo, performar de Israel uma cirurgia que acontece no Brasil?

Eu acho que é possível. Conversamos sobre isso com o Einstein (hospital) e vamos tentar fazer. Você tem que ter uma boa conexão com a internet, com um vídeo muito bom. Tecnologicamente, não é um problema. O problema é logístico, financeiro e ético, já que é preciso entender quem será o responsável por isso.

Nos últimos cinco anos, a taxa de cirurgias robóticas tem disparado. Só no Brasil, o número de robôs cirúrgicos dobrou, e o volume de procedimentos avançou 417%. Para que isso se tornasse possível, foram décadas de estudos. O israelense Rafi Beyar, ex-diretor do Rambam Health Care Campus e ex-reitor da Faculdade de Medicina do Instituto de Tecnologia de Israel (Technion), é um dos cientistas envolvidos nos primórdios desses trabalhos.

Em 2006, ele descreveu, no Journal of the American College of Cardiology, os 18 primeiros casos clínicos de intervenções coronárias percutâneas, mais conhecidas pelo termo angioplastia, usando um sistema de navegação remota – em outras palavras, um robô.

Do total, 15 procedimentos foram plenamente executados pelo robô, os outros três precisaram ser finalizados manualmente. Com esses resultados, Beyar e os colegas conseguiram comprovar a segurança do procedimento e atrair investimentos para aprimorar a tecnologia. Em 2019, veio o aval da Food and Drug Administration (FDA) – órgão americano semelhante à Anvisa – para realizá-lo.

A angioplastia é um tratamento não cirúrgico para resolver obstruções das artérias coronárias (quando gordura se acumula). No procedimento, um tubo (cateter) é introduzido em um vaso sanguíneo – em geral, na região da virilha –, e é direcionado até à artéria bloqueada. Na ponta do tubo há um balão, que será inflado para abrir espaço para o fluxo sanguíneo retomar a circulação normal. Um stent, que é uma espécie de bobina de malha metálica, é colocado na área para evitar que o estreitamento volte a acontecer.

Beyar, que diz ser um “encanador”, brincando com o fato de que o procedimento se assemelha a desentupir um cano, argumenta que esses três passos da terapia podem ser facilmente feitos por um robô. No protótipo criado por ele, o braço robótico é controlado com ajuda de um joystick (como se fosse um controle de videogame) e uma tela sensível ao toque. Aí, o médico coordena os movimentos, que são obtidos com um par de rolos motorizados.

'Podemos usar IA em quase tudo', diz cardiologista Rafi Beyar Foto: WERTHER

Com base em todo esse conhecimento, o cardiologista fundou a Corindus Vascular Robotics, inicialmente chamada de Navicath, que tem como principal produto o robô CorPath GRX. A empresa foi vendida para a gigante alemã Siemens.

Mais recentemente, Beyar viu seu robô ser utilizado pelo indiano Tejas Patel, diretor do departamento de Cardiologia Intervencionista do Apex Heart Institute, nas cinco primeiras angioplastias em humanos a 32 quilômetros de distância dos pacientes.

No Brasil, Beyar participou de eventos promovidos pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pela Confederação Nacional das Câmaras do Comércio Brasil-Israel (CNBI). Em entrevista exclusiva ao Estadão, ele falou sobre os avanços tecnológicos e as perspectivas dos procedimentos de saúde com robôs. Leia os principais trechos da conversa:

O que motivou as pesquisas que culminaram no artigo de 2006?

Sou um cardiologista intervencionista, então fico o dia todo no laboratório de cateterismo usando chumbo, que é uma carga muito pesada, para me proteger da radiação. Com isso, há dois perigos. Em primeiro lugar, a proteção é muito ineficiente, então você acaba absorvendo muita radiação. Além disso, há problemas de coluna, porque passo o dia inteiro em pé com essa carga pesada (na coluna).

É um ambiente prejudicial para o operador. Já existia um robô para cirurgia em desenvolvimento, o (sistema cirúrgico) Da Vinci. Então, pensei que deveríamos ter um também para intervenções coronárias. Nós empurramos e puxamos fios e (colocamos) stents, e tudo isso pode ser feito por um robô. E esse também foi o início da introdução do stent no mundo. Fui um dos criadores dos stents.

Começamos como uma empresa iniciante de inovação e conseguimos obter um financiamento para o robô inicial, um orçamento bem pequeno. Pegamos um joystick de jogos e, com ajuda de algumas empresas de engenharia, projetamos o primeiro robô.

No primeiro estudo clínico, foram 18 pacientes. Desses, 15 passaram por cirurgias bem-sucedidas. Em alguns, vocês precisaram intervir manualmente. O sucesso foi uma surpresa?

Não foi uma surpresa, porque já havíamos testado em modelos animais. Não foi perfeito, porque tivemos um caso de problemas mecânicos: o software do sistema estava travado. O bom é que foi só desconectar (o robô) e continuar com a abordagem normal, que é a manual. Era isso que esperávamos, mas tínhamos que mostrar ao mundo que podia ser feito com segurança. O estudo atraiu investimentos adicionais.

O robô de vocês também foi importante para promover um mercado na área de robótica para intervenções cardíacas. De 2006 para cá, o que mudou em termos de tecnologia?

Até o ano passado, sei que mais de 100 centros no mundo usavam o robô extensivamente. Ele continuou a se desenvolver, e já existem concorrentes, o que é positivo. Se houvesse apenas um tipo de carro no mundo, isso não seria bom. Há muitos carros, um é mais barato, outro é mais sofisticado... Mas isso é uma coisa que ainda vai demorar (para termos ainda mais opções).

E uma coisa que ainda não existe é usar todos os tipos de navegação e imagens sofisticadas e inteligência artificial para ajudar o médico a controlar o robô. Você pode fazer um procedimento semiautomático, você pode fazer um procedimento totalmente automático, você pode dizer ao robô para se movimentar, e não necessariamente que o médico faça isso com o joystick... Então, há muito potencial de desenvolvimento futuro que tenho certeza que veremos ao longo dos anos.

Em entrevista passada, o senhor disse que poderíamos ensinar um robô a conduzir uma cirurgia por conta própria. Pode falar mais sobre isso?

Sempre haverá um médico por trás do robô. Nunca será um robô autônomo que vai fazer o procedimento. Vai ter um médico. Agora, (em intervenções coronárias) tudo é feito manualmente, até com robô. O médico olha a imagem, move o fio, move o balão e move o stent com o joystick. Mas todos esses movimentos poderiam ser feitos de uma forma muito mais precisa (se fossem automáticos). Tudo isso que é feito por um médico especialista pode ser feito facilmente com o robô, mas o médico deve estar lá, observar o tempo todo e decidir o que quer tratar.

Tenho certeza de que isso pode ser feito. O robô Da Vinci ainda não é realmente um robô, é um sistema de operação remota. Alguém, a alguma distância, opera os braços do robô. Até para colocar um ponto automaticamente não é tão simples assim, tem que fazer um movimento muito específico, tem que ter certeza de que pegou o tecido do tamanho certo. O que para um cirurgião parece simples, para um robô é muito complexo. Mas sei que muitas empresas estão trabalhando nisso, tentando fazer uma manipulação robótica automática neste momento.

Não há dúvida de que é possível. A capacidade de fazer coisas complexas com machine learning (ou seja, o aprendizado da máquina) é incrível, e estamos apenas no começo. Acredito fortemente que vamos chegar lá, mas vai levar tempo.

Quanto tempo?

Entre 10 e 20 anos. A tecnologia está aqui, a capacidade de fazer isso está aqui, mas há um caminho comercial a ser percorrido. Mas acredito que daqui 10 anos já veremos robôs que usam inteligência artificial para algumas atividades.

E como os pacientes vão se beneficiar disso? Tem a ver com a precisão?

Obviamente, a precisão é um ponto central, porque, com um robô, você pode fazer movimentos muito minuciosos e eliminar tremores, medir exatamente o que está fazendo. Fora a capacidade de chegar a locais que, manualmente, seria muito difícil, já que o robô tem braços menores do que os braços grandes de um médico.

O senhor fala que o custo é uma limitação para o uso mais amplo dos robôs. Há outras limitações a serem superadas?

Os robôs não servem para todos os tipos de cirurgia, mas, à medida que os dispositivos se tornarem mais precisos e sofisticados, as limitações desaparecerão. O custo é a principal limitação hoje. Há 15 anos, quando eu era chefe do hospital, compramos um robô Da Vinci. Todos os departamentos queriam fazer pelo menos dois procedimentos por semana com o robô, mas não tínhamos dinheiro para isso.

Os procedimentos robóticos são caros por causa dos acessórios descartáveis. O robô tem todo um maquinário por trás dele, mas você anexa o braço robótico, que é o snapper. Todas as ferramentas (do braço) devem ser descartadas após dez procedimentos. Há um custo adicional entre U$ 1 e U$ 2 mil dólares para cada procedimento.

O senhor fala bastante sobre o uso de inteligência artificial. Como ela pode de fato ser usada nas cirurgias com robô? Recentemente, a OMS fez um comunicado pedindo cautela no uso de IA na área de saúde. O que o senhor pensa sobre isso?

Com cada progresso, há também um medo em relação onde ele levará. Isso depende de como é usado. Obviamente, quando se desenvolve uma arma de proteção, o medo é que as pessoas utilizem para o motivo errado, e vemos isso o tempo todo. Acho que você tem que ter cuidado ao aplicá-la, mas pode usá-la para muitas coisas.

Você pode usá-la para ensinar o braço robótico a realizar certos procedimentos. Pode pegar mil médicos especialistas e fazê-los aplicar os movimentos e usar IA para aprender com esses especialistas e, então, o braço robótico pode fazer esses procedimentos sozinho, aumentando a precisão.

A inteligência artificial pode ajudar a manipular o robô, mas também a analisar a imagem. Você sempre tem uma imagem do que está acontecendo no campo da cirurgia, e a inteligência artificial pode olhar para isso e identificar que há um ponto de sangramento ali, para você não deixar passar. Já foi demonstrado que a inteligência artificial é muito melhor do que os médicos na identificação de uma anormalidade em um exame de imagem. Vimos isso em (exames de) raio-X, e o mesmo acontecerá também na (cirurgia) robótica.

Se você olhar para a sala de cirurgia, há múltiplos monitores, e são os médicos que sempre têm que olhar para esses parâmetros. Um sistema de IA pode fazer isso muito melhor do que um médico. Podemos usar IA em quase tudo.

Na Índia, tivemos cinco casos de cirurgia a distância feita com o robô de vocês. Em um artigo, o senhor escreveu que devemos ter certa cautela com esses dados. Pode falar mais sobre o assunto?

(Tejas) Patel fez os primeiros cinco casos do que chamamos de cateterismo à distância. Isso foi precedido por um teste do sistema na internet normal. Foi preciso ter certeza de que não haveria o que chamamos de legging time. Isto é, se você dá uma ordem agora, e demora dois minutos para chegar até à máquina, não é bom. Precisa acontecer dentro de 100 milissegundos. Tem que ser muito rápido, tanto na obtenção das imagens quanto na execução dos movimentos robóticos. Parece que conseguimos fazer usando a internet normal. Ele foi o primeiro a provar que você pode fazer uma cateterização robótica remota em tempo real pela internet. Outros médicos nos Estados Unidos trabalharam muito para provar que você também pode fazer isso com 5G, pela internet sem fio, e eles mostraram isso em animais.

Em termos de tecnologia, é possível. A limitação é a regulamentação. Quem é o responsável pelo paciente? Quem está operando o robô à distância? Ou quem está ao lado do paciente? Você precisa ter equipes de ambos os lados e ter conhecimento de ambos os lados.

Se você tiver um especialista aqui, e houver alguém com um derrame a mil quilômetros de distância, que precisa fazer uma operação na próxima hora, esse é o conceito. São poucas as pessoas que sabem como tratar o sistema vascular do cérebro, e precisamos dessa habilidade remota para fazer procedimentos. E ela está aí.

Então, o senhor acha que vamos conseguir um dia, por exemplo, performar de Israel uma cirurgia que acontece no Brasil?

Eu acho que é possível. Conversamos sobre isso com o Einstein (hospital) e vamos tentar fazer. Você tem que ter uma boa conexão com a internet, com um vídeo muito bom. Tecnologicamente, não é um problema. O problema é logístico, financeiro e ético, já que é preciso entender quem será o responsável por isso.

Nos últimos cinco anos, a taxa de cirurgias robóticas tem disparado. Só no Brasil, o número de robôs cirúrgicos dobrou, e o volume de procedimentos avançou 417%. Para que isso se tornasse possível, foram décadas de estudos. O israelense Rafi Beyar, ex-diretor do Rambam Health Care Campus e ex-reitor da Faculdade de Medicina do Instituto de Tecnologia de Israel (Technion), é um dos cientistas envolvidos nos primórdios desses trabalhos.

Em 2006, ele descreveu, no Journal of the American College of Cardiology, os 18 primeiros casos clínicos de intervenções coronárias percutâneas, mais conhecidas pelo termo angioplastia, usando um sistema de navegação remota – em outras palavras, um robô.

Do total, 15 procedimentos foram plenamente executados pelo robô, os outros três precisaram ser finalizados manualmente. Com esses resultados, Beyar e os colegas conseguiram comprovar a segurança do procedimento e atrair investimentos para aprimorar a tecnologia. Em 2019, veio o aval da Food and Drug Administration (FDA) – órgão americano semelhante à Anvisa – para realizá-lo.

A angioplastia é um tratamento não cirúrgico para resolver obstruções das artérias coronárias (quando gordura se acumula). No procedimento, um tubo (cateter) é introduzido em um vaso sanguíneo – em geral, na região da virilha –, e é direcionado até à artéria bloqueada. Na ponta do tubo há um balão, que será inflado para abrir espaço para o fluxo sanguíneo retomar a circulação normal. Um stent, que é uma espécie de bobina de malha metálica, é colocado na área para evitar que o estreitamento volte a acontecer.

Beyar, que diz ser um “encanador”, brincando com o fato de que o procedimento se assemelha a desentupir um cano, argumenta que esses três passos da terapia podem ser facilmente feitos por um robô. No protótipo criado por ele, o braço robótico é controlado com ajuda de um joystick (como se fosse um controle de videogame) e uma tela sensível ao toque. Aí, o médico coordena os movimentos, que são obtidos com um par de rolos motorizados.

'Podemos usar IA em quase tudo', diz cardiologista Rafi Beyar Foto: WERTHER

Com base em todo esse conhecimento, o cardiologista fundou a Corindus Vascular Robotics, inicialmente chamada de Navicath, que tem como principal produto o robô CorPath GRX. A empresa foi vendida para a gigante alemã Siemens.

Mais recentemente, Beyar viu seu robô ser utilizado pelo indiano Tejas Patel, diretor do departamento de Cardiologia Intervencionista do Apex Heart Institute, nas cinco primeiras angioplastias em humanos a 32 quilômetros de distância dos pacientes.

No Brasil, Beyar participou de eventos promovidos pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pela Confederação Nacional das Câmaras do Comércio Brasil-Israel (CNBI). Em entrevista exclusiva ao Estadão, ele falou sobre os avanços tecnológicos e as perspectivas dos procedimentos de saúde com robôs. Leia os principais trechos da conversa:

O que motivou as pesquisas que culminaram no artigo de 2006?

Sou um cardiologista intervencionista, então fico o dia todo no laboratório de cateterismo usando chumbo, que é uma carga muito pesada, para me proteger da radiação. Com isso, há dois perigos. Em primeiro lugar, a proteção é muito ineficiente, então você acaba absorvendo muita radiação. Além disso, há problemas de coluna, porque passo o dia inteiro em pé com essa carga pesada (na coluna).

É um ambiente prejudicial para o operador. Já existia um robô para cirurgia em desenvolvimento, o (sistema cirúrgico) Da Vinci. Então, pensei que deveríamos ter um também para intervenções coronárias. Nós empurramos e puxamos fios e (colocamos) stents, e tudo isso pode ser feito por um robô. E esse também foi o início da introdução do stent no mundo. Fui um dos criadores dos stents.

Começamos como uma empresa iniciante de inovação e conseguimos obter um financiamento para o robô inicial, um orçamento bem pequeno. Pegamos um joystick de jogos e, com ajuda de algumas empresas de engenharia, projetamos o primeiro robô.

No primeiro estudo clínico, foram 18 pacientes. Desses, 15 passaram por cirurgias bem-sucedidas. Em alguns, vocês precisaram intervir manualmente. O sucesso foi uma surpresa?

Não foi uma surpresa, porque já havíamos testado em modelos animais. Não foi perfeito, porque tivemos um caso de problemas mecânicos: o software do sistema estava travado. O bom é que foi só desconectar (o robô) e continuar com a abordagem normal, que é a manual. Era isso que esperávamos, mas tínhamos que mostrar ao mundo que podia ser feito com segurança. O estudo atraiu investimentos adicionais.

O robô de vocês também foi importante para promover um mercado na área de robótica para intervenções cardíacas. De 2006 para cá, o que mudou em termos de tecnologia?

Até o ano passado, sei que mais de 100 centros no mundo usavam o robô extensivamente. Ele continuou a se desenvolver, e já existem concorrentes, o que é positivo. Se houvesse apenas um tipo de carro no mundo, isso não seria bom. Há muitos carros, um é mais barato, outro é mais sofisticado... Mas isso é uma coisa que ainda vai demorar (para termos ainda mais opções).

E uma coisa que ainda não existe é usar todos os tipos de navegação e imagens sofisticadas e inteligência artificial para ajudar o médico a controlar o robô. Você pode fazer um procedimento semiautomático, você pode fazer um procedimento totalmente automático, você pode dizer ao robô para se movimentar, e não necessariamente que o médico faça isso com o joystick... Então, há muito potencial de desenvolvimento futuro que tenho certeza que veremos ao longo dos anos.

Em entrevista passada, o senhor disse que poderíamos ensinar um robô a conduzir uma cirurgia por conta própria. Pode falar mais sobre isso?

Sempre haverá um médico por trás do robô. Nunca será um robô autônomo que vai fazer o procedimento. Vai ter um médico. Agora, (em intervenções coronárias) tudo é feito manualmente, até com robô. O médico olha a imagem, move o fio, move o balão e move o stent com o joystick. Mas todos esses movimentos poderiam ser feitos de uma forma muito mais precisa (se fossem automáticos). Tudo isso que é feito por um médico especialista pode ser feito facilmente com o robô, mas o médico deve estar lá, observar o tempo todo e decidir o que quer tratar.

Tenho certeza de que isso pode ser feito. O robô Da Vinci ainda não é realmente um robô, é um sistema de operação remota. Alguém, a alguma distância, opera os braços do robô. Até para colocar um ponto automaticamente não é tão simples assim, tem que fazer um movimento muito específico, tem que ter certeza de que pegou o tecido do tamanho certo. O que para um cirurgião parece simples, para um robô é muito complexo. Mas sei que muitas empresas estão trabalhando nisso, tentando fazer uma manipulação robótica automática neste momento.

Não há dúvida de que é possível. A capacidade de fazer coisas complexas com machine learning (ou seja, o aprendizado da máquina) é incrível, e estamos apenas no começo. Acredito fortemente que vamos chegar lá, mas vai levar tempo.

Quanto tempo?

Entre 10 e 20 anos. A tecnologia está aqui, a capacidade de fazer isso está aqui, mas há um caminho comercial a ser percorrido. Mas acredito que daqui 10 anos já veremos robôs que usam inteligência artificial para algumas atividades.

E como os pacientes vão se beneficiar disso? Tem a ver com a precisão?

Obviamente, a precisão é um ponto central, porque, com um robô, você pode fazer movimentos muito minuciosos e eliminar tremores, medir exatamente o que está fazendo. Fora a capacidade de chegar a locais que, manualmente, seria muito difícil, já que o robô tem braços menores do que os braços grandes de um médico.

O senhor fala que o custo é uma limitação para o uso mais amplo dos robôs. Há outras limitações a serem superadas?

Os robôs não servem para todos os tipos de cirurgia, mas, à medida que os dispositivos se tornarem mais precisos e sofisticados, as limitações desaparecerão. O custo é a principal limitação hoje. Há 15 anos, quando eu era chefe do hospital, compramos um robô Da Vinci. Todos os departamentos queriam fazer pelo menos dois procedimentos por semana com o robô, mas não tínhamos dinheiro para isso.

Os procedimentos robóticos são caros por causa dos acessórios descartáveis. O robô tem todo um maquinário por trás dele, mas você anexa o braço robótico, que é o snapper. Todas as ferramentas (do braço) devem ser descartadas após dez procedimentos. Há um custo adicional entre U$ 1 e U$ 2 mil dólares para cada procedimento.

O senhor fala bastante sobre o uso de inteligência artificial. Como ela pode de fato ser usada nas cirurgias com robô? Recentemente, a OMS fez um comunicado pedindo cautela no uso de IA na área de saúde. O que o senhor pensa sobre isso?

Com cada progresso, há também um medo em relação onde ele levará. Isso depende de como é usado. Obviamente, quando se desenvolve uma arma de proteção, o medo é que as pessoas utilizem para o motivo errado, e vemos isso o tempo todo. Acho que você tem que ter cuidado ao aplicá-la, mas pode usá-la para muitas coisas.

Você pode usá-la para ensinar o braço robótico a realizar certos procedimentos. Pode pegar mil médicos especialistas e fazê-los aplicar os movimentos e usar IA para aprender com esses especialistas e, então, o braço robótico pode fazer esses procedimentos sozinho, aumentando a precisão.

A inteligência artificial pode ajudar a manipular o robô, mas também a analisar a imagem. Você sempre tem uma imagem do que está acontecendo no campo da cirurgia, e a inteligência artificial pode olhar para isso e identificar que há um ponto de sangramento ali, para você não deixar passar. Já foi demonstrado que a inteligência artificial é muito melhor do que os médicos na identificação de uma anormalidade em um exame de imagem. Vimos isso em (exames de) raio-X, e o mesmo acontecerá também na (cirurgia) robótica.

Se você olhar para a sala de cirurgia, há múltiplos monitores, e são os médicos que sempre têm que olhar para esses parâmetros. Um sistema de IA pode fazer isso muito melhor do que um médico. Podemos usar IA em quase tudo.

Na Índia, tivemos cinco casos de cirurgia a distância feita com o robô de vocês. Em um artigo, o senhor escreveu que devemos ter certa cautela com esses dados. Pode falar mais sobre o assunto?

(Tejas) Patel fez os primeiros cinco casos do que chamamos de cateterismo à distância. Isso foi precedido por um teste do sistema na internet normal. Foi preciso ter certeza de que não haveria o que chamamos de legging time. Isto é, se você dá uma ordem agora, e demora dois minutos para chegar até à máquina, não é bom. Precisa acontecer dentro de 100 milissegundos. Tem que ser muito rápido, tanto na obtenção das imagens quanto na execução dos movimentos robóticos. Parece que conseguimos fazer usando a internet normal. Ele foi o primeiro a provar que você pode fazer uma cateterização robótica remota em tempo real pela internet. Outros médicos nos Estados Unidos trabalharam muito para provar que você também pode fazer isso com 5G, pela internet sem fio, e eles mostraram isso em animais.

Em termos de tecnologia, é possível. A limitação é a regulamentação. Quem é o responsável pelo paciente? Quem está operando o robô à distância? Ou quem está ao lado do paciente? Você precisa ter equipes de ambos os lados e ter conhecimento de ambos os lados.

Se você tiver um especialista aqui, e houver alguém com um derrame a mil quilômetros de distância, que precisa fazer uma operação na próxima hora, esse é o conceito. São poucas as pessoas que sabem como tratar o sistema vascular do cérebro, e precisamos dessa habilidade remota para fazer procedimentos. E ela está aí.

Então, o senhor acha que vamos conseguir um dia, por exemplo, performar de Israel uma cirurgia que acontece no Brasil?

Eu acho que é possível. Conversamos sobre isso com o Einstein (hospital) e vamos tentar fazer. Você tem que ter uma boa conexão com a internet, com um vídeo muito bom. Tecnologicamente, não é um problema. O problema é logístico, financeiro e ético, já que é preciso entender quem será o responsável por isso.

Entrevista por Leon Ferrari

Repórter de Saúde e Bem-Estar. É formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Menção honrosa do 40º Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.

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