Não foram poucos os obstáculos que a médica Angelita Habr-Gama teve que superar para tornar-se uma das mais reconhecidas especialistas em cirurgia do intestino. Nascida na Ilha de Marajó, no Pará, em uma família humilde de imigrantes libaneses, teve que vencer a resistência do pai ao decidir prestar Medicina - ele preferia que ela seguisse a carreira de professora. Insistiu e, em 1952, foi aprovada para ingressar na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Ao terminar a graduação, enfrentou a desconfiança de alguns dos professores quando decidiu tentar a carreira de cirurgiã. “O chefe que escolhia o pessoal para a residência de cirurgia me falou: ‘são só oito vagas, você vai casar, ter filhos, esquecer a cirurgia e vai ter ocupado a vaga de um rapaz’”, conta Angelita. Ela novamente insistiu e foi aprovada em 1957, tornando-se a primeira mulher a fazer residência em cirurgia no Hospital das Clínicas da USP.
Ao fim da residência em cirurgia geral, ela decidiu especializar-se nas operações do intestino e buscou um estágio no Hospital St. Marks, em Londres, único no mundo focado nessa especialidade. Inicialmente, foi rejeitada pelo fato de o hospital só aceitar homens. “Enviei muitas cartas, mandei também cartas de professores meus aqui dizendo que eu era boa mesmo”. Insistiu mais uma vez e foi a primeira mulher a ser admitida na instituição, em 1962.
Depois disso, acumulou conquistas na carreira: tornou-se professora emérita da FMUSP, membro de várias sociedades médicas, destacada cientista na pesquisa de tratamento do câncer colorretal e detentora de outros marcos e prêmios, nacionais e internacionais. Agora, com mais de 60 anos de profissão, acaba de alcançar outro feito inédito: é a primeira mulher no mundo a receber a medalha Bigelow, reconhecimento criado pela renomada Sociedade de Cirurgia de Boston, dos Estados Unidos, para laurear cirurgiões que tenham destacada contribuição para o progresso científico e ensino da cirurgia.
O reconhecimento foi criado em 1916 e, em seus mais de cem anos de existência, foi concedido a apenas 34 profissionais no mundo. Angelita, premiada no último dia 6 em uma cerimônia em Boston, foi a primeira mulher e primeira profissional da América Latina a receber a medalha.
Ao justificar a escolha da brasileira, a Sociedade de Cirurgia de Boston destacou a pesquisa inovadora de Angelita e colegas sobre o uso de químio e radioterapia para o tratamento de câncer de reto sem a obrigatoriedade de posterior cirurgia.
O protocolo, criado na década de 1990 pela médica, prevê que, em vez de operar todos os pacientes com esse tipo de tumor, se utilize quimioterapia e radioterapia. Após as intervenções, o paciente é examinado para verificar se a lesão permanece. Se sim, ele é operado. Se não, ele segue sendo acompanhado.
O grupo de pesquisa de Angelita descobriu que, em muitos casos, a doença desaparecia e não era necessário realizar uma cirurgia na qual, muitas vezes, era necessário remover o reto e o esfíncter, obrigando o paciente a usar permanentemente uma bolsa de colostomia. A abordagem, portanto, garantia o mesmo resultado aos pacientes que tivessem resposta satisfatória à químio e rádio, mas com grande impacto positivo na qualidade de vida do doente.
Inicialmente, o trabalho não foi bem recebido pela comunidade científica internacional. “Fui em congresso americano apresentar esse trabalho e fui bombardeada. Me disseram que não era ético não operar o paciente. Hoje, é aceito mundialmente que câncer de reto, quando o tumor desaparece, não deve ser operado”, diz.
O protocolo desenvolvido por Angelita ficou conhecido como Watch and Wait (Observar e esperar, em português), que se refere justamente à prática médica de examinar e observar a evolução do paciente após a radioquimioterapia para definir a necessidade ou não da cirurgia. Hoje, o protocolo é praticado por cirurgiões em todo o mundo e reconhecido na comunidade científica internacional como uma abordagem terapêutica que preserva a qualidade de vida do doente.
Para Angelita, o novo reconhecimento internacional, com a medalha Bigelow, é uma conquista não apenas individual, mas para o País e para todas as mulheres. “É muito estimulante para o País porque nós estamos precisando de valorização da cultura, da educação, do ensino. E para as mulheres, também é muito interessante porque estimula as mulheres a se autoestimarem”, diz ela, que ainda atende pacientes e opera todos os dias, de segunda à sábado, no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, onde mantém um consultório junto com o marido, o também cirurgião Joaquim Gama.
Em entrevista exclusiva ao Estadão, ela detalha como foi receber a medalha, relembra as dificuldades que teve na carreira por atuar em uma área majoritariamente masculina, conta como foi ter sobrevivido à covid-19 mesmo após 50 dias intubada e revela o que ainda a move para continuar atuando como médica e pesquisadora.
Mesmo depois de ganhar tantos prêmios, há um significado especial em ser a primeira mulher a receber essa medalha?
Eu sempre trabalhei por gosto e prazer. O sucesso foi uma consequência do gosto e da dedicação ao trabalho. Então, as medalhas vêm, mas não mudam a minha maneira de ser. Continuo a mesma pessoa. Mas é claro que é agradável receber um prêmio como esse porque é um reconhecimento de todo o esforço que a gente fez. E é uma maneira de, através de mim, haver uma homenagem ao próprio País, que apresenta pessoas destacadas. Eu fiquei muito satisfeita, muito feliz. É muito estimulante para o País porque nós estamos precisando de valorização da cultura, da educação, do ensino. E para as mulheres, também é muito interessante porque estimula as mulheres a se autoestimarem porque as mulheres muitas vezes não se autoestimam.
Como foi quando soube que seria premiada?
Essa medalha leva o nome de um grande cirurgião, Henry Bigelow. A medalha foi criada pelo filho dele em homenagem a ele, que foi um dos grandes nomes da cirurgia em Massachusetts, em uma das escolas ligadas a Universidade Harvard. É uma das mais antigas, tradicionais e conceituadas sociedades médicas dos Estados Unidos. Então essa medalha prestigia esse médico que realmente tratava os doentes com humanismo. Então além da excelência, inovação, é um requisito importante para receber a medalha o grau de humanismo que a doença é tratada.
A sra. criou um protocolo para evitar cirurgias desnecessárias em casos de câncer de reto. Acredita que isso tenha sido a principal razão para a escolha do seu nome para receber a medalha?
A medalha tem esse lado de reconhecer o aspecto humanista do cirurgião. O tratamento de câncer de reto sempre teve como tratamento a radioterapia e quimioterapia e, depois, a cirurgia. Em 1991, começamos a ver que alguns doentes que operávamos não tinham tumor na peça cirúrgica. Aí pensei: será que esses doentes realmente precisariam ser operados? Teve uma paciente que eu operei e ela ficou com uma colostomia. O tumor era bem baixo e tivemos que fazer uma amputação do reto. Ela reclamou e eu disse: mas a senhora está curada do câncer. E ela respondeu: mas se não tinha mais tumor, por que a senhora me operou? E eu pensei que ela estava certa e comecei a me questionar também. Foi aí que comecei a estudar isso. Ver o resultado, examinar, antes de operar. Fui em congresso americano apresentar esse trabalho e fui bombardeada. Me disseram que não era ético não operar o paciente. Hoje, é aceito mundialmente que câncer de reto, quando o tumor desaparece, não deve ser operado.
A sua área de atuação tem ganhado mais destaque por causa do aumento de casos de câncer de intestino, principalmente entre pessoas mais jovens. Como vê esse cenário?
Fatores como alimentação e estilo de vida moderno estão relacionados com o aumento desse tipo de câncer. É importante ampliarmos o conhecimento da população sobre o câncer de intestino porque costumo dizer que ele é um câncer muito camarada, porque a gente conhece a lesão antes dela tornar-se câncer. Por meio da colonoscopia, dá para retirar um pólipo antes que ele vire o câncer.
A sra. quebrou muitas barreiras ao não aceitar o papel que era esperado para uma mulher. De onde vinha sua motivação mesmo quando recebia um ‘não’?
Na época em que eu estudei, a visão geral era de que as mulheres estavam nascendo para fazer atividade doméstica ou serem professoras de crianças. As mulheres eram criadas para isso. Na minha família, as minhas irmãs mais velhas eram professoras. Eu sempre gostei muito de ensinar, mas eu achava que eu podia ter outras perspectivas, que a vida não era só magistério. Quando decidi prestar Medicina, meu pai foi contra, achou que eu devia fazer o magistério. Mas eu não concordei com isso. Quando passei na faculdade de medicina, eu era uma das únicas. Dos 80 alunos que entravam todos os anos, eram apenas 10 ou 11 mulheres.
E para a seguir a área de cirurgia era ainda mais difícil na época. Como foi sua decisão de seguir nessa especialidade?
O que realmente me ajudou foi ter entrado em uma sala de cirurgia durante o internato, que é o período no sexto ano da faculdade que a gente passa em diversos setores de um hospital. Inicialmente, achei que ia seguir na cardiologia, mas, quando passei na cirurgia, o médico me disse: ‘pega esse porta-agulha, você vai dar os pontos nessa barriga’. Eu nunca tinha pego um porta-agulha na vida, mas eu facilmente consegui costurar a barriga e ele disse: ‘olha, você leva jeito’. E essa frase fez eu mudar de ideia e decidir que eu tentaria cirurgia. Só que o chefe que escolhia o pessoal para a residência de cirurgia falou: ‘são só oito vagas, você vai casar, ter filhos, esquecer a cirurgia e vai ter ocupado a vaga de um rapaz’.
E o que a sra. respondeu?
Eu não aceitei. Disse que eu entrei na faculdade de medicina em oitavo lugar, fui a primeira colocada nos rodízios de internato e que eu tinha o direito de optar pela cirurgia também. O diretor da faculdade ligou para o chefe da seleção e disse que eu podia me inscrever no concurso de residência em cirurgia. Eu fiz o concurso em 1957 e passei em primeiro lugar.
E depois a sra. enfrentou outra dificuldade para conseguir ser aceita na especialização em cirurgia do intestino fora do País, certo?
Depois que eu terminei a residência em cirurgia geral, em 1960, fui a um congresso de coloproctologia em São Paulo para o qual tinham vindo os maiores especialistas do mundo nessa área. Vi as aulas e fiquei apaixonada. Como o Hospital St. Marks, em Londres, era um hospital especializado em doenças do intestino e reto, pensei que era melhor eu ir para lá. Pedi uma bolsa do British Council e consegui uma da Capes. Eram modestas, mas suficientes. E aí qual foi a minha grande decepção? O Hospital St. Marks me disse que eu não poderia ir para lá porque não era um hospital para mulheres, era só para homens. Mas eu decidi insistir, enviei muitas cartas, mandei também cartas de professores meus aqui dizendo que eu era boa mesmo, argumentava que eu era diferente, que eles iam gostar de mim e, depois de muito tempo, eles me aceitaram e fui a primeira mulher no St. Marks, em 1962. Tem uma placa lá minha.
As mulheres estão ganhando cada vez mais espaço na Medicina e na cirurgia, embora esta ainda seja majoritariamente masculina. O seu nome é citado muitas vezes por alunas. Como se sente ao ser mencionada como inspiração?
Para mim é uma satisfação enorme. É uma realização. Saber que eu venci e que isso foi um estímulo para que outras vencessem. Acho que o dever do mais velho é estimular o jovem porque o jovem está lá para aprender, claro que ele erra, mas ele está lá exatamente para isso, para ser ensinado e estimulado. Eu me dou muito bem com a equipe de jovens que trabalham conosco. Eu respeito muito os alunos, nunca chamo a atenção deles. Posso chamar a atenção dos cirurgiões assistentes, mas não dos alunos, porque estão lá para aprender.
Em 2020, a sra. ficou em estado muito grave por causa da covid-19. Como foi esse período? Tinha noção da gravidade?
Logo no começo de 2020, estava em um congresso científico em Jerusalém. Quando voltei, em fevereiro, comecei a sentir febre e dor no corpo e fui para o (Hospital) Oswaldo Cruz. Quando cheguei, o desenvolvimento da doença foi muito rápido, logo fui para a UTI com falta de ar. Minha última lembrança é que eu ia ter que fazer uma traqueostomia. O colega que ia fazer a traqueo em mim me mostrou o raio-x dos meus pulmões e eu vi que eu praticamente não tinha pulmão funcionando. Eu pensei: ‘é muito provável que eu vá morrer’, mas não fiquei nervosa, pensei que sou uma pessoa longeva, que conquistei muitas coisas, coisas que eu nem imaginava quando era pequena, tenho uma família maravilhosa, então eu tive uma vida feliz, uma vida de luta, mas uma luta gostosa. Então eu pensei que podia morrer, mas que seria bom viver mais um pouquinho. E eu tinha confiança absoluta na equipe do hospital porque eu trabalho lá desde os anos 60.
E como foi, depois dos 50 dias de intubação, quando a sra. acordou e viu que estava viva?
Quando acordei, eu vi o Gama (marido), vi meus amigos. A saída do hospital foi maravilhosa, todos batendo palmas, foi uma alegria. E hoje eu curto ainda mais cada dia, cada dia que tenho saúde, que estou consciente. Valorizo mais esses momentos, momentos com a família, com os amigos, poder estar trabalhando.
A sra. tem uma carreira de sucesso e alcançou muitos reconhecimentos internacionais. Há algum sonho que ainda queira realizar na carreira?
Meu grande foco sempre foi o tratamento do câncer de reto. Estamos desenvolvendo protocolos de tratamento, em colaboração com outros médicos da América Latina, mudando doses de quimioterapia, usando novas drogas, para tentarmos aumentar o número de pacientes que tenham resposta completa à químio e radioterapia. Hoje, essa resposta já chega a 60%. Eu gostaria que, num futuro próximo, antes de eu morrer, a gente chegasse a um tratamento com radioquimioterapia que tivéssemos 100% dos pacientes com resposta completa, ou seja, com desaparecimento do tumor sem necessidade de cirurgia.