Médicos e dentistas brigam na Justiça pelo direito de operar seu rosto


Aumento de intervenções por odontólogos cria embate judicial entre associações médicas

Por Ítalo Lo Re

Um grupo de 120 dentistas solicitou em uma série de ações na Justiça autorização para realizar determinados procedimentos cirúrgicos no rosto com fins estéticos, como a rinoplastia. Grande parte ainda aguarda uma sentença, mas para ao menos 15 foram concedidas liminares favoráveis. Entidades médicas discordam da decisão, e avaliam que os dentistas não estariam preparados para lidar com possíveis complicações no pós-operatório.

A alta na oferta de intervenções estéticas em consultórios de Odontologia vem intensificando ao longo dos últimos anos o embate entre as profissões. Como o valor cobrado por odontólogos pode ser até 80% inferior, o público tem aumentado. Ao mesmo tempo, denúncias têm sido reportadas com frequência de exercício ilegal da Medicina. Levantamento divulgado no último ano pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS, na sigla em inglês) aponta que, em 2020, o Brasil foi o país em que mais procedimentos cirúrgicos foram realizados na face e na cabeça. Foram 483,8 mil durante o período de um ano. Com 143 mil registros, a cirurgia de pálpebra (blefaroplastia) foi a mais realizada, seguida pela rinoplastia, com 87,9 mil.

O Conselho Federal de Odontologia (CFO) publicou um documento em 2020 para estabelecer limites específicos para a atuação de odontólogos. A decisão passou a ser motivo de insatisfação. Para Thiago Marra, presidente da Associação Brasileira dos Profissionais de Saúde (Abrapros), entidade da qual parte dos 120 profissionais que ingressaram na Justiça é integrante, odontólogos deveriam ter a possibilidade de realizar não só a harmonização, mas outros procedimentos estéticos na superfície da face. Isso porque, argumenta, o CFO não teria competência para legislar sobre a profissão, já que essa seria uma atribuição do Congresso. Marra reforça que a lei que regulamenta a profissão de dentista, criada nos anos 1960, garante aos profissionais da área o direito de realizar procedimentos estéticos na cabeça e no pescoço. “Cirurgiões-dentistas pós-graduados em bucomaxilofacial realizam procedimentos complexos, como fraturas de maxila, mandíbula e outras cirurgias com o uso da anestesia geral”, argumenta.

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Apesar de a resolução ainda continuar em vigor, o presidente do CFO, Juliano do Vale, não se opõe às decisões tomadas na Justiça a favor dos dentistas. Segundo ele, as liminares concedidas “não comprometem a evolução da Odontologia e da especialidade”. “Estão antecipando a ampliação das áreas de atuação, a exemplo de outros países”, afirm. “Há, sem nenhuma dúvida, um interesse latente de algumas entidades médicas em reserva de mercado.”

Após as decisões liminares, o que pode abrir jurisprudência para outros profissionais no País, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) divulgou ter ingressado com representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e na corregedoria do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1). A entidade diz que os procedimentos estéticos no rosto são privativos aos médicos.

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Para representantes de entidades médicas ouvidos pelo Estadão, procedimentos na face podem ser feitos por dentistas apenas quando houver relação com o aparelho dental, como no caso das cirurgias ortognáticas, feitas no maxilar. “O conselho dos dentistas proíbe que façam esses procedimentos. Houve um abuso evidente, uma transgressão absurda tanto na esfera legal, quanto infralegal. Por isso, entramos com uma representação na Justiça”, diz Angelo Vattimo, 1.º secretário do Cremesp.

Com um setor voltado apenas para investigar casos como esse, o Cremesp teve vitória recente na Justiça contra uma dentista que divulgava e ministrava cursos sobre blefaroplastia. A sentença apontou que procedimentos como esse são privativos aos médicos. “Cada profissão tem sua formação. Não basta fazer (procedimentos), é preciso saber indicar caminhos e tratar as complicações. O médico faz isso. Nós não queremos que se abra uma brecha”, aponta Vattimo. Endossam o entendimento jurídico da entidade o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD).

Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), José Octavio Gonçalves de Freitas aponta preocupação com o que seriam “invasões nas especialidades médicas da Cirurgia Plástica e Dermatologia”. “Quando (dentistas) causam lesões, não sabem resolvê-las, deixando para os cirurgiões plásticos equacionarem o quadro operatório”, aponta Freitas. “Isso é exercício ilegal da Medicina.”

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Para Rafael Ratto de Moraes, professor de Odontologia da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), o cenário de embate “pode ser atribuído a questões comerciais, de influência, disputa de espaço e poder”. “Ambos cos onselhos (CFO e CFM) são fortes e consolidados, envolvem milhares de profissionais e interesses”, contextualiza. Ele acredita ainda que o imbróglio seria impulsionado por dois outros motivos principais: leis antigas e áreas de atuação com sobreposição. Como possível solução, o professor reforça que seria importante que as discussões se baseassem em pesquisas acadêmicas e focassem na saúde dos pacientes. “Infelizmente é um problema de difícil resolução, mas vejo uma atuação do CFO e CFM no MEC (responsável por regular os cursos) como primordial.”

Professor Associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Melhem Elias entende que as vedações impostas pela resolução de 2020 do CFO "parecem acertadas, em função do estágio atual da formação dos cirurgiões-dentistas". Porém, ele destaca que devem haver exceções, como no caso da consolidação de fraturas dos ossos nasais. “Nesses casos, uma vez que o objetivo da cirurgia de correção é o de restabelecer a anatomia do nariz prévia ao trauma, e não o de modificá-la com finalidade estética ou funcional, poderá o cirurgião bucomaxilofacial realizá-la, ainda que para alguns a cirurgia seja considerada uma rinoplastia”, diz o professor.

Melhem Elias entende que o CFO tem o poder outorgado por lei para definir o escopo de atuação dos profissionais e das especialidades da Odontologia, e reforça a necessidade de haver maior diálogo entre as entidades. “A harmonização orofacial evoluiu muito nos últimos anos às custas de publicações e cursos realizados por cirurgiões-dentistas. O CFO também se baseou nesse fato para constituí-la uma especialidade odontológica. Talvez uma discussão mais profunda, envolvendo inclusive as lideranças da cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial, tão acostumadas com problemática semelhante, pudesse ter evitado o encaminhamento da discussão para a esfera jurídica”, explica.

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Rafaela Cavalcanti, de 41 anos, teve necrose após ser submetida a uma rinomodelação Foto: Arquivo pessoal

A dona de casa Yohanna Richelly, de 24 anos, conta que fez em novembro um procedimento com uma dentista chamado rinomodelação, que consiste na aplicação ácido hialurônico no nariz. “Meu nariz me incomodava muito, e eu tinha muita vontade de mudar. Só que morria de medo de fazer a rinoplastia em si, por causa de anestesia, de tudo”, explica ela, que mora em Patos, interior da Paraíba.

“No mesmo dia, fui para casa, a recuperação foi bem tranquila”, relembra a dona de casa, que removeu os pontos do nariz com 15 dias. Por ser, em teoria, mais simples que a rinoplastia, a rinomodelação não foi vedada aos dentistas pelo CFO, um dos motivos que a fez se popularizar nos últimos anos. “Faz quatro meses que fiz e hoje estou super satisfeita com o resultado”, conta. Ela pagou R$ 3,5 mil no procedimento, fora medicações, e diz que o preço não estava abaixo de outros procedimentos do tipo ofertados no mercado.

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Já no Recife, a cirurgiã-dentista Rafaela Cavalcanti, de 41 anos, resolveu corrigir um pequeno desvio que tinha no dorso nasal em julho de 2019. “Eu não tinha conhecimento sobre os riscos do procedimento, bem como não tinha a mínima noção que os dentistas não eram profissionais aptos para realizar tal procedimento.”

Ela relata que a rinomodelação foi ofertada por um preço “bem abaixo” do que estava sendo praticado por médicos no mercado. A experiência foi “desastrosa”. “Tive uma necrose após obstrução vascular das artérias nasais e posterior morte tecidual de 60% do meu nariz. Quase perdi a vida e, apesar de não ter morrido, minha vida mudou sobremaneira”, comenta a dentista.

Um grupo de 120 dentistas solicitou em uma série de ações na Justiça autorização para realizar determinados procedimentos cirúrgicos no rosto com fins estéticos, como a rinoplastia. Grande parte ainda aguarda uma sentença, mas para ao menos 15 foram concedidas liminares favoráveis. Entidades médicas discordam da decisão, e avaliam que os dentistas não estariam preparados para lidar com possíveis complicações no pós-operatório.

A alta na oferta de intervenções estéticas em consultórios de Odontologia vem intensificando ao longo dos últimos anos o embate entre as profissões. Como o valor cobrado por odontólogos pode ser até 80% inferior, o público tem aumentado. Ao mesmo tempo, denúncias têm sido reportadas com frequência de exercício ilegal da Medicina. Levantamento divulgado no último ano pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS, na sigla em inglês) aponta que, em 2020, o Brasil foi o país em que mais procedimentos cirúrgicos foram realizados na face e na cabeça. Foram 483,8 mil durante o período de um ano. Com 143 mil registros, a cirurgia de pálpebra (blefaroplastia) foi a mais realizada, seguida pela rinoplastia, com 87,9 mil.

O Conselho Federal de Odontologia (CFO) publicou um documento em 2020 para estabelecer limites específicos para a atuação de odontólogos. A decisão passou a ser motivo de insatisfação. Para Thiago Marra, presidente da Associação Brasileira dos Profissionais de Saúde (Abrapros), entidade da qual parte dos 120 profissionais que ingressaram na Justiça é integrante, odontólogos deveriam ter a possibilidade de realizar não só a harmonização, mas outros procedimentos estéticos na superfície da face. Isso porque, argumenta, o CFO não teria competência para legislar sobre a profissão, já que essa seria uma atribuição do Congresso. Marra reforça que a lei que regulamenta a profissão de dentista, criada nos anos 1960, garante aos profissionais da área o direito de realizar procedimentos estéticos na cabeça e no pescoço. “Cirurgiões-dentistas pós-graduados em bucomaxilofacial realizam procedimentos complexos, como fraturas de maxila, mandíbula e outras cirurgias com o uso da anestesia geral”, argumenta.

Apesar de a resolução ainda continuar em vigor, o presidente do CFO, Juliano do Vale, não se opõe às decisões tomadas na Justiça a favor dos dentistas. Segundo ele, as liminares concedidas “não comprometem a evolução da Odontologia e da especialidade”. “Estão antecipando a ampliação das áreas de atuação, a exemplo de outros países”, afirm. “Há, sem nenhuma dúvida, um interesse latente de algumas entidades médicas em reserva de mercado.”

Após as decisões liminares, o que pode abrir jurisprudência para outros profissionais no País, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) divulgou ter ingressado com representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e na corregedoria do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1). A entidade diz que os procedimentos estéticos no rosto são privativos aos médicos.

Para representantes de entidades médicas ouvidos pelo Estadão, procedimentos na face podem ser feitos por dentistas apenas quando houver relação com o aparelho dental, como no caso das cirurgias ortognáticas, feitas no maxilar. “O conselho dos dentistas proíbe que façam esses procedimentos. Houve um abuso evidente, uma transgressão absurda tanto na esfera legal, quanto infralegal. Por isso, entramos com uma representação na Justiça”, diz Angelo Vattimo, 1.º secretário do Cremesp.

Com um setor voltado apenas para investigar casos como esse, o Cremesp teve vitória recente na Justiça contra uma dentista que divulgava e ministrava cursos sobre blefaroplastia. A sentença apontou que procedimentos como esse são privativos aos médicos. “Cada profissão tem sua formação. Não basta fazer (procedimentos), é preciso saber indicar caminhos e tratar as complicações. O médico faz isso. Nós não queremos que se abra uma brecha”, aponta Vattimo. Endossam o entendimento jurídico da entidade o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD).

Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), José Octavio Gonçalves de Freitas aponta preocupação com o que seriam “invasões nas especialidades médicas da Cirurgia Plástica e Dermatologia”. “Quando (dentistas) causam lesões, não sabem resolvê-las, deixando para os cirurgiões plásticos equacionarem o quadro operatório”, aponta Freitas. “Isso é exercício ilegal da Medicina.”

Para Rafael Ratto de Moraes, professor de Odontologia da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), o cenário de embate “pode ser atribuído a questões comerciais, de influência, disputa de espaço e poder”. “Ambos cos onselhos (CFO e CFM) são fortes e consolidados, envolvem milhares de profissionais e interesses”, contextualiza. Ele acredita ainda que o imbróglio seria impulsionado por dois outros motivos principais: leis antigas e áreas de atuação com sobreposição. Como possível solução, o professor reforça que seria importante que as discussões se baseassem em pesquisas acadêmicas e focassem na saúde dos pacientes. “Infelizmente é um problema de difícil resolução, mas vejo uma atuação do CFO e CFM no MEC (responsável por regular os cursos) como primordial.”

Professor Associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Melhem Elias entende que as vedações impostas pela resolução de 2020 do CFO "parecem acertadas, em função do estágio atual da formação dos cirurgiões-dentistas". Porém, ele destaca que devem haver exceções, como no caso da consolidação de fraturas dos ossos nasais. “Nesses casos, uma vez que o objetivo da cirurgia de correção é o de restabelecer a anatomia do nariz prévia ao trauma, e não o de modificá-la com finalidade estética ou funcional, poderá o cirurgião bucomaxilofacial realizá-la, ainda que para alguns a cirurgia seja considerada uma rinoplastia”, diz o professor.

Melhem Elias entende que o CFO tem o poder outorgado por lei para definir o escopo de atuação dos profissionais e das especialidades da Odontologia, e reforça a necessidade de haver maior diálogo entre as entidades. “A harmonização orofacial evoluiu muito nos últimos anos às custas de publicações e cursos realizados por cirurgiões-dentistas. O CFO também se baseou nesse fato para constituí-la uma especialidade odontológica. Talvez uma discussão mais profunda, envolvendo inclusive as lideranças da cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial, tão acostumadas com problemática semelhante, pudesse ter evitado o encaminhamento da discussão para a esfera jurídica”, explica.

Rafaela Cavalcanti, de 41 anos, teve necrose após ser submetida a uma rinomodelação Foto: Arquivo pessoal

A dona de casa Yohanna Richelly, de 24 anos, conta que fez em novembro um procedimento com uma dentista chamado rinomodelação, que consiste na aplicação ácido hialurônico no nariz. “Meu nariz me incomodava muito, e eu tinha muita vontade de mudar. Só que morria de medo de fazer a rinoplastia em si, por causa de anestesia, de tudo”, explica ela, que mora em Patos, interior da Paraíba.

“No mesmo dia, fui para casa, a recuperação foi bem tranquila”, relembra a dona de casa, que removeu os pontos do nariz com 15 dias. Por ser, em teoria, mais simples que a rinoplastia, a rinomodelação não foi vedada aos dentistas pelo CFO, um dos motivos que a fez se popularizar nos últimos anos. “Faz quatro meses que fiz e hoje estou super satisfeita com o resultado”, conta. Ela pagou R$ 3,5 mil no procedimento, fora medicações, e diz que o preço não estava abaixo de outros procedimentos do tipo ofertados no mercado.

Já no Recife, a cirurgiã-dentista Rafaela Cavalcanti, de 41 anos, resolveu corrigir um pequeno desvio que tinha no dorso nasal em julho de 2019. “Eu não tinha conhecimento sobre os riscos do procedimento, bem como não tinha a mínima noção que os dentistas não eram profissionais aptos para realizar tal procedimento.”

Ela relata que a rinomodelação foi ofertada por um preço “bem abaixo” do que estava sendo praticado por médicos no mercado. A experiência foi “desastrosa”. “Tive uma necrose após obstrução vascular das artérias nasais e posterior morte tecidual de 60% do meu nariz. Quase perdi a vida e, apesar de não ter morrido, minha vida mudou sobremaneira”, comenta a dentista.

Um grupo de 120 dentistas solicitou em uma série de ações na Justiça autorização para realizar determinados procedimentos cirúrgicos no rosto com fins estéticos, como a rinoplastia. Grande parte ainda aguarda uma sentença, mas para ao menos 15 foram concedidas liminares favoráveis. Entidades médicas discordam da decisão, e avaliam que os dentistas não estariam preparados para lidar com possíveis complicações no pós-operatório.

A alta na oferta de intervenções estéticas em consultórios de Odontologia vem intensificando ao longo dos últimos anos o embate entre as profissões. Como o valor cobrado por odontólogos pode ser até 80% inferior, o público tem aumentado. Ao mesmo tempo, denúncias têm sido reportadas com frequência de exercício ilegal da Medicina. Levantamento divulgado no último ano pela Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS, na sigla em inglês) aponta que, em 2020, o Brasil foi o país em que mais procedimentos cirúrgicos foram realizados na face e na cabeça. Foram 483,8 mil durante o período de um ano. Com 143 mil registros, a cirurgia de pálpebra (blefaroplastia) foi a mais realizada, seguida pela rinoplastia, com 87,9 mil.

O Conselho Federal de Odontologia (CFO) publicou um documento em 2020 para estabelecer limites específicos para a atuação de odontólogos. A decisão passou a ser motivo de insatisfação. Para Thiago Marra, presidente da Associação Brasileira dos Profissionais de Saúde (Abrapros), entidade da qual parte dos 120 profissionais que ingressaram na Justiça é integrante, odontólogos deveriam ter a possibilidade de realizar não só a harmonização, mas outros procedimentos estéticos na superfície da face. Isso porque, argumenta, o CFO não teria competência para legislar sobre a profissão, já que essa seria uma atribuição do Congresso. Marra reforça que a lei que regulamenta a profissão de dentista, criada nos anos 1960, garante aos profissionais da área o direito de realizar procedimentos estéticos na cabeça e no pescoço. “Cirurgiões-dentistas pós-graduados em bucomaxilofacial realizam procedimentos complexos, como fraturas de maxila, mandíbula e outras cirurgias com o uso da anestesia geral”, argumenta.

Apesar de a resolução ainda continuar em vigor, o presidente do CFO, Juliano do Vale, não se opõe às decisões tomadas na Justiça a favor dos dentistas. Segundo ele, as liminares concedidas “não comprometem a evolução da Odontologia e da especialidade”. “Estão antecipando a ampliação das áreas de atuação, a exemplo de outros países”, afirm. “Há, sem nenhuma dúvida, um interesse latente de algumas entidades médicas em reserva de mercado.”

Após as decisões liminares, o que pode abrir jurisprudência para outros profissionais no País, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) divulgou ter ingressado com representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e na corregedoria do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1). A entidade diz que os procedimentos estéticos no rosto são privativos aos médicos.

Para representantes de entidades médicas ouvidos pelo Estadão, procedimentos na face podem ser feitos por dentistas apenas quando houver relação com o aparelho dental, como no caso das cirurgias ortognáticas, feitas no maxilar. “O conselho dos dentistas proíbe que façam esses procedimentos. Houve um abuso evidente, uma transgressão absurda tanto na esfera legal, quanto infralegal. Por isso, entramos com uma representação na Justiça”, diz Angelo Vattimo, 1.º secretário do Cremesp.

Com um setor voltado apenas para investigar casos como esse, o Cremesp teve vitória recente na Justiça contra uma dentista que divulgava e ministrava cursos sobre blefaroplastia. A sentença apontou que procedimentos como esse são privativos aos médicos. “Cada profissão tem sua formação. Não basta fazer (procedimentos), é preciso saber indicar caminhos e tratar as complicações. O médico faz isso. Nós não queremos que se abra uma brecha”, aponta Vattimo. Endossam o entendimento jurídico da entidade o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD).

Presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP), José Octavio Gonçalves de Freitas aponta preocupação com o que seriam “invasões nas especialidades médicas da Cirurgia Plástica e Dermatologia”. “Quando (dentistas) causam lesões, não sabem resolvê-las, deixando para os cirurgiões plásticos equacionarem o quadro operatório”, aponta Freitas. “Isso é exercício ilegal da Medicina.”

Para Rafael Ratto de Moraes, professor de Odontologia da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), o cenário de embate “pode ser atribuído a questões comerciais, de influência, disputa de espaço e poder”. “Ambos cos onselhos (CFO e CFM) são fortes e consolidados, envolvem milhares de profissionais e interesses”, contextualiza. Ele acredita ainda que o imbróglio seria impulsionado por dois outros motivos principais: leis antigas e áreas de atuação com sobreposição. Como possível solução, o professor reforça que seria importante que as discussões se baseassem em pesquisas acadêmicas e focassem na saúde dos pacientes. “Infelizmente é um problema de difícil resolução, mas vejo uma atuação do CFO e CFM no MEC (responsável por regular os cursos) como primordial.”

Professor Associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), Fernando Melhem Elias entende que as vedações impostas pela resolução de 2020 do CFO "parecem acertadas, em função do estágio atual da formação dos cirurgiões-dentistas". Porém, ele destaca que devem haver exceções, como no caso da consolidação de fraturas dos ossos nasais. “Nesses casos, uma vez que o objetivo da cirurgia de correção é o de restabelecer a anatomia do nariz prévia ao trauma, e não o de modificá-la com finalidade estética ou funcional, poderá o cirurgião bucomaxilofacial realizá-la, ainda que para alguns a cirurgia seja considerada uma rinoplastia”, diz o professor.

Melhem Elias entende que o CFO tem o poder outorgado por lei para definir o escopo de atuação dos profissionais e das especialidades da Odontologia, e reforça a necessidade de haver maior diálogo entre as entidades. “A harmonização orofacial evoluiu muito nos últimos anos às custas de publicações e cursos realizados por cirurgiões-dentistas. O CFO também se baseou nesse fato para constituí-la uma especialidade odontológica. Talvez uma discussão mais profunda, envolvendo inclusive as lideranças da cirurgia e traumatologia bucomaxilofacial, tão acostumadas com problemática semelhante, pudesse ter evitado o encaminhamento da discussão para a esfera jurídica”, explica.

Rafaela Cavalcanti, de 41 anos, teve necrose após ser submetida a uma rinomodelação Foto: Arquivo pessoal

A dona de casa Yohanna Richelly, de 24 anos, conta que fez em novembro um procedimento com uma dentista chamado rinomodelação, que consiste na aplicação ácido hialurônico no nariz. “Meu nariz me incomodava muito, e eu tinha muita vontade de mudar. Só que morria de medo de fazer a rinoplastia em si, por causa de anestesia, de tudo”, explica ela, que mora em Patos, interior da Paraíba.

“No mesmo dia, fui para casa, a recuperação foi bem tranquila”, relembra a dona de casa, que removeu os pontos do nariz com 15 dias. Por ser, em teoria, mais simples que a rinoplastia, a rinomodelação não foi vedada aos dentistas pelo CFO, um dos motivos que a fez se popularizar nos últimos anos. “Faz quatro meses que fiz e hoje estou super satisfeita com o resultado”, conta. Ela pagou R$ 3,5 mil no procedimento, fora medicações, e diz que o preço não estava abaixo de outros procedimentos do tipo ofertados no mercado.

Já no Recife, a cirurgiã-dentista Rafaela Cavalcanti, de 41 anos, resolveu corrigir um pequeno desvio que tinha no dorso nasal em julho de 2019. “Eu não tinha conhecimento sobre os riscos do procedimento, bem como não tinha a mínima noção que os dentistas não eram profissionais aptos para realizar tal procedimento.”

Ela relata que a rinomodelação foi ofertada por um preço “bem abaixo” do que estava sendo praticado por médicos no mercado. A experiência foi “desastrosa”. “Tive uma necrose após obstrução vascular das artérias nasais e posterior morte tecidual de 60% do meu nariz. Quase perdi a vida e, apesar de não ter morrido, minha vida mudou sobremaneira”, comenta a dentista.

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