Ainda não está claro para médicos e hospitais como proceder diante da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que pacientes adultos e capazes têm o direito de recusar transfusões sanguíneas por motivos religiosos e optar por tratamentos que não envolvam o uso de sangue.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) afirma que estuda o tema e não tem uma orientação definitiva para os médicos. A Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) também diz que analisa a questão e vai colocá-la em discussão com seus associados.
A Corte analisou dois casos envolvendo Testemunhas de Jeová que tiveram sua vontade negada e, por unanimidade, decidiu pela autonomia dos pacientes. Veja aqui o que disse cada ministro.
“Estamos felizes que, em ambos os casos, o STF tenha defendido unanimemente os direitos dos pacientes de tomar decisões médicas informadas com base em suas crenças”, comemora Kleber Barreto, porta-voz das Testemunhas de Jeová no Brasil, em nota divulgada na noite desta quinta-feira, 26.
Critérios
Os ministros acordaram que a recusa à transfusão precisa preencher requisitos como ser manifestada por pacientes maiores de idade, em condições de discernimento e informados sobre o diagnóstico, tratamento, riscos, benefícios e alternativas.
Como nesse cenário o paciente está consciente e não corre risco iminente, caso o médico não se sinta confortável em dispensar a transfusão sanguínea, ele pode apontar objeção de consciência e nomear um colega que aceite outras práticas. “A objeção de consciência pode ser usada desde que haja outro médico que possa fazer o atendimento ou numa situação eletiva”, comenta Helena Maria Carneiro Leão, secretária do CFM e editora científica da Revista Bioética.
Nos casos de urgência e emergência, porém, há uma zona cinzenta. “Há casos de vítimas de acidente, por exemplo, que chegam inconscientes e não têm como manifestar o seu desejo, então a recomendação segue de usar a bolsa de sangue, caso haja necessidade”, diz a secretária do CFM.
“Caso o paciente, um familiar ou algum documento indique que ele não deseja a transfusão, cabe à equipe médica no momento do atendimento discutir a necessidade de mais sangue, respeitando a autonomia do paciente”, ressalva.
Helena afirma que, até o momento, não há nenhuma decisão judicial culpando os médicos por terem usado sangue em casos nos quais havia risco de morte. Com a decisão do STF, ela entende que isso pode mudar.
Já há sentenças responsabilizando a administração pública. Recentemente, a 5ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) condenou a prefeitura de Taubaté a indenizar a filha de uma paciente Testemunha de Jeová que recebeu transfusão de sangue contra sua vontade no hospital municipal. A reparação foi fixada em R$ 35 mil.
Último parecer
O CFM deverá publicar um novo parecer contemplando a decisão do STF. A expectativa, segundo Helena, é que o entendimento siga a linha do último — e ainda válido —documento sobre o tema, o parecer nº 12, de 2014.
Redigido pelo conselheiro Carlos Vital Tavares Corrêa Lima, o parecer de 2014 retoma alguns valores das Testemunhas de Jeová e defende a publicação de uma resolução condizente com os avanços médicos à época.
“As Testemunhas de Jeová encaram a vida como uma dádiva de Deus e, portanto, acreditam que devem salvaguardar sua saúde. Por essa razão, não hesitam em procurar assistência médica, já que não creem nas ‘curas pela fé’ ou em ‘curas por oração’”, menciona o parecer.
Leia Também:
O único tratamento que recusam, destaca o documento, são as transfusões de sangue, o que as leva a procurar opções de cuidado sem hemotransfusão. Em 2014, cinco hospitais brasileiros possuíam programas médicos e cirúrgicos sem transfusões de sangue.
“Sua recusa, que é bem conhecida, se deve ao seu respeito à santidade da vida expresso por meio da obediência ao mandamento bíblico de ‘abster-se de sangue’, registrado na Bíblia no livro de Atos dos Apóstolos, capítulo 15, versículos 28 e 29″, lembra ainda o documento, que se encerra com a defesa da autonomia: “Na imensa maioria dos casos, baixos níveis de hemoglobina possibilitam a estabilidade clínica sem acarretar dano ao paciente, respeitando-se a sua dignidade, com raiz fincada na autonomia de sua vontade”.
Hospitais
Pela decisão do STF, adultos que recusarem a transfusão sanguínea por motivos religiosos terão direito a tratamento alternativo disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), na mesma cidade de residência ou outra.
Na rede particular, a Anahp, que representa 143 hospitais privados de todo o País, afirma que vai discutir o posicionamento do Supremo com seus associados, “de modo que ela possa ser fielmente cumprida no respeito à liberdade de escolha dos pacientes e aos princípios éticos que devem sempre presidir o exercício da medicina”.
“Ressaltamos que cada hospital associado possui autonomia para decidir como proceder em casos que envolvem questões tão sensíveis, levando em consideração seus princípios, políticas internas e as especificidades de cada situação. É crucial que, em todos os casos, o diálogo entre paciente e equipe médica seja priorizado, respeitando os valores éticos e legais que norteiam a assistência à saúde”, diz em nota.