Memórias ajudam o cérebro a reconhecer novos acontecimentos que merecem ser lembrados


As memórias podem afetar a maneira como o cérebro aprende sobre eventos futuros, mudando nossas percepções do mundo

Por Yasemin Saplakoglu
Atualização:
Memórias de eventos passados ​​significativos sintonizam nossas percepções com eventos relacionados no futuro e nos levam a lembrar mais sobre eles Foto: Kristina Armitage/Quanta Magazin

QUANTA MAGAZINE – As memórias são sombras do passado e também lanternas para o futuro. Nossas lembranças nos guiam pelo mundo, sintonizam nossa atenção e moldam o que aprendemos mais tarde na vida. Estudos em humanos e animais mostraram que as memórias podem alterar nossas percepções de acontecimentos futuros e a atenção que damos a eles. “Sabemos que as experiências passadas mudam as coisas”, disse Loren Frank, neurocientista da Universidade da Califórnia, em São Francisco. “Nem sempre fica claro como isso acontece exatamente”.

Um novo estudo publicado na revista Science Advances agora oferece parte da resposta. Trabalhando com caramujos, pesquisadores examinaram como as memórias deixavam os animais mais propensos a formar novas memórias de longo prazo sobre acontecimentos futuros que, de outra forma, poderiam passar despercebidos. O mecanismo simples que eles descobriram altera a percepção do caramujo sobre esses eventos.

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Os pesquisadores levaram o fenômeno de como o aprendizado passado influencia o aprendizado futuro “para uma única célula”, disse David Glanzman, biólogo celular da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que não participou do estudo. Ele caracterizou a pesquisa como um exemplo interessante “do uso de um organismo simples para tentar entender fenômenos comportamentais bastante complexos”.

Embora os caramujos sejam criaturas bastante simples, a nova visão aproxima os cientistas da compreensão da base neural da memória de longo prazo em animais de ordem superior, como os humanos.

Ainda que muitas vezes não estejamos cientes do desafio, a formação da memória de longo prazo é “um processo incrivelmente energético”, disse Michael Crossley, pesquisador sênior da Universidade de Sussex e principal autor do novo estudo. Essas memórias dependem de forjarmos conexões sinápticas mais duráveis entre os neurônios, e as células cerebrais precisam recrutar muitas moléculas para fazer isso. Portanto, para conservar recursos, o cérebro deve ser capaz de distinguir quando vale a pena o custo de formar uma memória e quando não vale. Isso se aplica ao cérebro humano e também ao cérebro de um “pequeno caramujo com um orçamento energético apertado”, disse ele.

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Em uma videochamada recente, Crossley mostrou um desses caramujos, um molusco Lymnaea do tamanho de um polegar com um cérebro que ele chamou de “lindo”. Enquanto o cérebro humano tem 86 bilhões de neurônios, o do caramujo tem apenas 20 mil – mas cada um de seus neurônios é 10 vezes maior que o nosso e muito mais acessível para estudo. Esses neurônios gigantes e seus circuitos cerebrais bem mapeados fizeram dos caramujos os queridinhos das pesquisas em neurobiologia.

Pesquisadores da Universidade de Sussex traçaram um comportamento aprendido em caracóis Lymnaea a um circuito de apenas quatro neurônios em seu cérebro. Foto: Michael Crossley and Kevin Staras

Esses minúsculos forrageadores também são “aprendizes notáveis” que podem se lembrar de algo após uma única exposição, disse Crossley. No novo estudo, os pesquisadores examinaram profundamente os cérebros dos caramujos para descobrir o que acontecia no nível neurológico quando eles adquiriam memórias.

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Influenciando memórias

Nos experimentos, os pesquisadores deram aos caramujos duas formas de treinamento: forte e fraco. Durante o treinamento forte, eles primeiro pulverizavam os caramujos com água com sabor de banana, que os caramujos tratavam como algo neutro para seu gosto: eles engoliam um pouco, mas depois cuspiam uma parte. Em seguida, a equipe dava açúcar, e os caramujos devoraram avidamente.

Quando os cientistas fizeram testes um dia depois, os caramujos mostraram que tinham aprendido a associar o sabor da banana ao açúcar por causa daquela única experiência. Os caramujos pareciam sentir o sabor como algo mais desejável e ficaram muito mais dispostos a engolir a água.

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Por outro lado, os caramujos não aprenderam essa associação positiva com uma sessão de treinamento fraca, na qual um banho aromatizado com coco era seguido por uma guloseima de açúcar muito mais diluída. Os caramujos continuaram engolindo e depois cuspindo a água.

Até esse ponto, o experimento era essencialmente uma versão dos famosos estudos de condicionamento de Pavlov, nos quais os cães aprendiam a babar quando ouviam o som de um sino. Mas então os cientistas analisaram o que acontecia quando davam aos caramujos um treinamento forte com sabor de banana, seguido horas depois por um treinamento fraco com sabor de coco. De repente, os caramujos também passaram a aprender com o treinamento fraco.

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Quando os pesquisadores mudaram a ordem e fizeram o treinamento fraco primeiro, não houve formação de memória. Os caramujos ainda guardavam lembrança do treinamento forte, mas isso não tinha um efeito de fortalecimento retroativo na experiência anterior. Trocar os sabores usados nos treinos forte e fraco também não surtiu efeito.

Os cientistas concluíram que o treinamento forte empurrava os caramujos para um período “rico em aprendizado”, no qual o limiar para a formação da memória era menor, permitindo que eles aprendessem coisas que de outra forma não aprenderiam (como a associação de treinamento fraco entre um sabor e açúcar diluído). Tal mecanismo parecia ajudar o cérebro a direcionar recursos para o aprendizado em momentos oportunos. A comida talvez deixasse os caramujos mais alertas para potenciais fontes de alimento nas proximidades.

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Um caramujo Lymnaea que associa água com sabor a açúcar abre e fecha rapidamente a boca para engolir (à direita).

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No entanto, o efeito sobre os caramujos era passageiro. O período rico em aprendizado persistia por algo entre 30 minutos e 4 horas após o treinamento forte. Depois disso, os caramujos paravam de formar memórias de longo prazo durante a sessão de treinamento fraco – e não porque eles haviam esquecido o treinamento forte: a memória desse evento persistiu por meses.

Ter uma janela crucial para aprendizado aprimorado faz sentido porque, se o processo não fosse desativado, “poderia ser prejudicial para o animal”, disse Crossley. O animal poderia não apenas investir recursos demais no aprendizado, mas também aprender associações prejudiciais à sua sobrevivência.

Percepções alteradas

Ao fazer sondagens com eletrodos, os pesquisadores descobriram o que acontece dentro do cérebro do caramujo quando ele forma memórias de longo prazo a partir dos treinamentos. Ocorrem dois ajustes paralelos na atividade cerebral. O primeiro codifica a memória em si. O segundo está “puramente envolvido na alteração da percepção do animal sobre outros eventos”, disse Crossley. “Muda a maneira como ele vê o mundo com base em suas experiências passadas”.

Os cientistas também descobriram que poderiam induzir a mesma mudança na percepção dos caramujos bloqueando os efeitos da dopamina, a substância química produzida pelo neurônio que ativava o comportamento de cuspir. Isso desligou o neurônio de cuspir e deixou o neurônio de engolir constantemente ligado. A experiência apresentou o mesmo efeito que o treinamento forte teve nos experimentos anteriores: horas depois, os caramujos formaram uma memória de longo prazo do treinamento fraco.

Os pesquisadores mapearam minuciosa e elegantemente o processo, desde “o comportamento até os fundamentos eletrofisiológicos dessa interação entre memórias novas e antigas”, disse Pedro Jacob, pós-doutorando da Universidade de Oxford, que não participou do estudo. “Ter o conhecimento de como isso acontece mecanicamente é interessante porque o processo provavelmente se repete em outras espécies”.

Mas Frank não está totalmente convencido de que o fato de os caramujos não ingerirem água com sabor após o treinamento fraco significa que eles não guardaram nenhuma memória do evento. Você pode ter uma memória, mas não tomar uma atitude a respeito, disse ele, então fazer essa distinção vai exigir novos experimentos.

Os mecanismos por trás do aprendizado e da memória são surpreendentemente semelhantes em moluscos e mamíferos como os humanos, disse Glanzman. Até onde os autores sabem, esse mesmo mecanismo ainda não foi demonstrado em humanos, disse Crossley. “Pode ser uma característica semelhante e, portanto, merece mais atenção”, disse ele.

Seria interessante estudar se uma mudança na percepção poderia se tornar mais permanente, disse Glanzman. Ele suspeita que isso seja possível se os caramujos receberem um estímulo aversivo, algo que os deixe enojados em vez de sedentos.

Por enquanto, Crossley e sua equipe estão curiosos sobre o que acontece no cérebro desses caramujos quando eles adotam outros comportamentos, não apenas abrindo ou fechando a boca. “São criaturas muito fascinantes”, disse Crossley. “Você não imagina que sejam capazes de realizar processos complexos como estes”.

Nota do editor: Loren Frank é pesquisador da Iniciativa de Pesquisa sobre Autismo da Simons Foundation (SFARI, na sigla em inglês). A Simons Foundation também financia a Quanta como uma revista de linha editorial independente. As decisões de financiamento não têm influência em nossa cobertura./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

História original republicada com permissão da Quanta Magazine, uma publicação editorialmente independente apoiada pela Simons Foundation. Leia o conteúdo original em Memories Help Brains Recognize New Events Worth Remembering

Memórias de eventos passados ​​significativos sintonizam nossas percepções com eventos relacionados no futuro e nos levam a lembrar mais sobre eles Foto: Kristina Armitage/Quanta Magazin

QUANTA MAGAZINE – As memórias são sombras do passado e também lanternas para o futuro. Nossas lembranças nos guiam pelo mundo, sintonizam nossa atenção e moldam o que aprendemos mais tarde na vida. Estudos em humanos e animais mostraram que as memórias podem alterar nossas percepções de acontecimentos futuros e a atenção que damos a eles. “Sabemos que as experiências passadas mudam as coisas”, disse Loren Frank, neurocientista da Universidade da Califórnia, em São Francisco. “Nem sempre fica claro como isso acontece exatamente”.

Um novo estudo publicado na revista Science Advances agora oferece parte da resposta. Trabalhando com caramujos, pesquisadores examinaram como as memórias deixavam os animais mais propensos a formar novas memórias de longo prazo sobre acontecimentos futuros que, de outra forma, poderiam passar despercebidos. O mecanismo simples que eles descobriram altera a percepção do caramujo sobre esses eventos.

Os pesquisadores levaram o fenômeno de como o aprendizado passado influencia o aprendizado futuro “para uma única célula”, disse David Glanzman, biólogo celular da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que não participou do estudo. Ele caracterizou a pesquisa como um exemplo interessante “do uso de um organismo simples para tentar entender fenômenos comportamentais bastante complexos”.

Embora os caramujos sejam criaturas bastante simples, a nova visão aproxima os cientistas da compreensão da base neural da memória de longo prazo em animais de ordem superior, como os humanos.

Ainda que muitas vezes não estejamos cientes do desafio, a formação da memória de longo prazo é “um processo incrivelmente energético”, disse Michael Crossley, pesquisador sênior da Universidade de Sussex e principal autor do novo estudo. Essas memórias dependem de forjarmos conexões sinápticas mais duráveis entre os neurônios, e as células cerebrais precisam recrutar muitas moléculas para fazer isso. Portanto, para conservar recursos, o cérebro deve ser capaz de distinguir quando vale a pena o custo de formar uma memória e quando não vale. Isso se aplica ao cérebro humano e também ao cérebro de um “pequeno caramujo com um orçamento energético apertado”, disse ele.

Em uma videochamada recente, Crossley mostrou um desses caramujos, um molusco Lymnaea do tamanho de um polegar com um cérebro que ele chamou de “lindo”. Enquanto o cérebro humano tem 86 bilhões de neurônios, o do caramujo tem apenas 20 mil – mas cada um de seus neurônios é 10 vezes maior que o nosso e muito mais acessível para estudo. Esses neurônios gigantes e seus circuitos cerebrais bem mapeados fizeram dos caramujos os queridinhos das pesquisas em neurobiologia.

Pesquisadores da Universidade de Sussex traçaram um comportamento aprendido em caracóis Lymnaea a um circuito de apenas quatro neurônios em seu cérebro. Foto: Michael Crossley and Kevin Staras

Esses minúsculos forrageadores também são “aprendizes notáveis” que podem se lembrar de algo após uma única exposição, disse Crossley. No novo estudo, os pesquisadores examinaram profundamente os cérebros dos caramujos para descobrir o que acontecia no nível neurológico quando eles adquiriam memórias.

Influenciando memórias

Nos experimentos, os pesquisadores deram aos caramujos duas formas de treinamento: forte e fraco. Durante o treinamento forte, eles primeiro pulverizavam os caramujos com água com sabor de banana, que os caramujos tratavam como algo neutro para seu gosto: eles engoliam um pouco, mas depois cuspiam uma parte. Em seguida, a equipe dava açúcar, e os caramujos devoraram avidamente.

Quando os cientistas fizeram testes um dia depois, os caramujos mostraram que tinham aprendido a associar o sabor da banana ao açúcar por causa daquela única experiência. Os caramujos pareciam sentir o sabor como algo mais desejável e ficaram muito mais dispostos a engolir a água.

Por outro lado, os caramujos não aprenderam essa associação positiva com uma sessão de treinamento fraca, na qual um banho aromatizado com coco era seguido por uma guloseima de açúcar muito mais diluída. Os caramujos continuaram engolindo e depois cuspindo a água.

Até esse ponto, o experimento era essencialmente uma versão dos famosos estudos de condicionamento de Pavlov, nos quais os cães aprendiam a babar quando ouviam o som de um sino. Mas então os cientistas analisaram o que acontecia quando davam aos caramujos um treinamento forte com sabor de banana, seguido horas depois por um treinamento fraco com sabor de coco. De repente, os caramujos também passaram a aprender com o treinamento fraco.

Quando os pesquisadores mudaram a ordem e fizeram o treinamento fraco primeiro, não houve formação de memória. Os caramujos ainda guardavam lembrança do treinamento forte, mas isso não tinha um efeito de fortalecimento retroativo na experiência anterior. Trocar os sabores usados nos treinos forte e fraco também não surtiu efeito.

Os cientistas concluíram que o treinamento forte empurrava os caramujos para um período “rico em aprendizado”, no qual o limiar para a formação da memória era menor, permitindo que eles aprendessem coisas que de outra forma não aprenderiam (como a associação de treinamento fraco entre um sabor e açúcar diluído). Tal mecanismo parecia ajudar o cérebro a direcionar recursos para o aprendizado em momentos oportunos. A comida talvez deixasse os caramujos mais alertas para potenciais fontes de alimento nas proximidades.

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Um caramujo Lymnaea que associa água com sabor a açúcar abre e fecha rapidamente a boca para engolir (à direita).

No entanto, o efeito sobre os caramujos era passageiro. O período rico em aprendizado persistia por algo entre 30 minutos e 4 horas após o treinamento forte. Depois disso, os caramujos paravam de formar memórias de longo prazo durante a sessão de treinamento fraco – e não porque eles haviam esquecido o treinamento forte: a memória desse evento persistiu por meses.

Ter uma janela crucial para aprendizado aprimorado faz sentido porque, se o processo não fosse desativado, “poderia ser prejudicial para o animal”, disse Crossley. O animal poderia não apenas investir recursos demais no aprendizado, mas também aprender associações prejudiciais à sua sobrevivência.

Percepções alteradas

Ao fazer sondagens com eletrodos, os pesquisadores descobriram o que acontece dentro do cérebro do caramujo quando ele forma memórias de longo prazo a partir dos treinamentos. Ocorrem dois ajustes paralelos na atividade cerebral. O primeiro codifica a memória em si. O segundo está “puramente envolvido na alteração da percepção do animal sobre outros eventos”, disse Crossley. “Muda a maneira como ele vê o mundo com base em suas experiências passadas”.

Os cientistas também descobriram que poderiam induzir a mesma mudança na percepção dos caramujos bloqueando os efeitos da dopamina, a substância química produzida pelo neurônio que ativava o comportamento de cuspir. Isso desligou o neurônio de cuspir e deixou o neurônio de engolir constantemente ligado. A experiência apresentou o mesmo efeito que o treinamento forte teve nos experimentos anteriores: horas depois, os caramujos formaram uma memória de longo prazo do treinamento fraco.

Os pesquisadores mapearam minuciosa e elegantemente o processo, desde “o comportamento até os fundamentos eletrofisiológicos dessa interação entre memórias novas e antigas”, disse Pedro Jacob, pós-doutorando da Universidade de Oxford, que não participou do estudo. “Ter o conhecimento de como isso acontece mecanicamente é interessante porque o processo provavelmente se repete em outras espécies”.

Mas Frank não está totalmente convencido de que o fato de os caramujos não ingerirem água com sabor após o treinamento fraco significa que eles não guardaram nenhuma memória do evento. Você pode ter uma memória, mas não tomar uma atitude a respeito, disse ele, então fazer essa distinção vai exigir novos experimentos.

Os mecanismos por trás do aprendizado e da memória são surpreendentemente semelhantes em moluscos e mamíferos como os humanos, disse Glanzman. Até onde os autores sabem, esse mesmo mecanismo ainda não foi demonstrado em humanos, disse Crossley. “Pode ser uma característica semelhante e, portanto, merece mais atenção”, disse ele.

Seria interessante estudar se uma mudança na percepção poderia se tornar mais permanente, disse Glanzman. Ele suspeita que isso seja possível se os caramujos receberem um estímulo aversivo, algo que os deixe enojados em vez de sedentos.

Por enquanto, Crossley e sua equipe estão curiosos sobre o que acontece no cérebro desses caramujos quando eles adotam outros comportamentos, não apenas abrindo ou fechando a boca. “São criaturas muito fascinantes”, disse Crossley. “Você não imagina que sejam capazes de realizar processos complexos como estes”.

Nota do editor: Loren Frank é pesquisador da Iniciativa de Pesquisa sobre Autismo da Simons Foundation (SFARI, na sigla em inglês). A Simons Foundation também financia a Quanta como uma revista de linha editorial independente. As decisões de financiamento não têm influência em nossa cobertura./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

História original republicada com permissão da Quanta Magazine, uma publicação editorialmente independente apoiada pela Simons Foundation. Leia o conteúdo original em Memories Help Brains Recognize New Events Worth Remembering

Memórias de eventos passados ​​significativos sintonizam nossas percepções com eventos relacionados no futuro e nos levam a lembrar mais sobre eles Foto: Kristina Armitage/Quanta Magazin

QUANTA MAGAZINE – As memórias são sombras do passado e também lanternas para o futuro. Nossas lembranças nos guiam pelo mundo, sintonizam nossa atenção e moldam o que aprendemos mais tarde na vida. Estudos em humanos e animais mostraram que as memórias podem alterar nossas percepções de acontecimentos futuros e a atenção que damos a eles. “Sabemos que as experiências passadas mudam as coisas”, disse Loren Frank, neurocientista da Universidade da Califórnia, em São Francisco. “Nem sempre fica claro como isso acontece exatamente”.

Um novo estudo publicado na revista Science Advances agora oferece parte da resposta. Trabalhando com caramujos, pesquisadores examinaram como as memórias deixavam os animais mais propensos a formar novas memórias de longo prazo sobre acontecimentos futuros que, de outra forma, poderiam passar despercebidos. O mecanismo simples que eles descobriram altera a percepção do caramujo sobre esses eventos.

Os pesquisadores levaram o fenômeno de como o aprendizado passado influencia o aprendizado futuro “para uma única célula”, disse David Glanzman, biólogo celular da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, que não participou do estudo. Ele caracterizou a pesquisa como um exemplo interessante “do uso de um organismo simples para tentar entender fenômenos comportamentais bastante complexos”.

Embora os caramujos sejam criaturas bastante simples, a nova visão aproxima os cientistas da compreensão da base neural da memória de longo prazo em animais de ordem superior, como os humanos.

Ainda que muitas vezes não estejamos cientes do desafio, a formação da memória de longo prazo é “um processo incrivelmente energético”, disse Michael Crossley, pesquisador sênior da Universidade de Sussex e principal autor do novo estudo. Essas memórias dependem de forjarmos conexões sinápticas mais duráveis entre os neurônios, e as células cerebrais precisam recrutar muitas moléculas para fazer isso. Portanto, para conservar recursos, o cérebro deve ser capaz de distinguir quando vale a pena o custo de formar uma memória e quando não vale. Isso se aplica ao cérebro humano e também ao cérebro de um “pequeno caramujo com um orçamento energético apertado”, disse ele.

Em uma videochamada recente, Crossley mostrou um desses caramujos, um molusco Lymnaea do tamanho de um polegar com um cérebro que ele chamou de “lindo”. Enquanto o cérebro humano tem 86 bilhões de neurônios, o do caramujo tem apenas 20 mil – mas cada um de seus neurônios é 10 vezes maior que o nosso e muito mais acessível para estudo. Esses neurônios gigantes e seus circuitos cerebrais bem mapeados fizeram dos caramujos os queridinhos das pesquisas em neurobiologia.

Pesquisadores da Universidade de Sussex traçaram um comportamento aprendido em caracóis Lymnaea a um circuito de apenas quatro neurônios em seu cérebro. Foto: Michael Crossley and Kevin Staras

Esses minúsculos forrageadores também são “aprendizes notáveis” que podem se lembrar de algo após uma única exposição, disse Crossley. No novo estudo, os pesquisadores examinaram profundamente os cérebros dos caramujos para descobrir o que acontecia no nível neurológico quando eles adquiriam memórias.

Influenciando memórias

Nos experimentos, os pesquisadores deram aos caramujos duas formas de treinamento: forte e fraco. Durante o treinamento forte, eles primeiro pulverizavam os caramujos com água com sabor de banana, que os caramujos tratavam como algo neutro para seu gosto: eles engoliam um pouco, mas depois cuspiam uma parte. Em seguida, a equipe dava açúcar, e os caramujos devoraram avidamente.

Quando os cientistas fizeram testes um dia depois, os caramujos mostraram que tinham aprendido a associar o sabor da banana ao açúcar por causa daquela única experiência. Os caramujos pareciam sentir o sabor como algo mais desejável e ficaram muito mais dispostos a engolir a água.

Por outro lado, os caramujos não aprenderam essa associação positiva com uma sessão de treinamento fraca, na qual um banho aromatizado com coco era seguido por uma guloseima de açúcar muito mais diluída. Os caramujos continuaram engolindo e depois cuspindo a água.

Até esse ponto, o experimento era essencialmente uma versão dos famosos estudos de condicionamento de Pavlov, nos quais os cães aprendiam a babar quando ouviam o som de um sino. Mas então os cientistas analisaram o que acontecia quando davam aos caramujos um treinamento forte com sabor de banana, seguido horas depois por um treinamento fraco com sabor de coco. De repente, os caramujos também passaram a aprender com o treinamento fraco.

Quando os pesquisadores mudaram a ordem e fizeram o treinamento fraco primeiro, não houve formação de memória. Os caramujos ainda guardavam lembrança do treinamento forte, mas isso não tinha um efeito de fortalecimento retroativo na experiência anterior. Trocar os sabores usados nos treinos forte e fraco também não surtiu efeito.

Os cientistas concluíram que o treinamento forte empurrava os caramujos para um período “rico em aprendizado”, no qual o limiar para a formação da memória era menor, permitindo que eles aprendessem coisas que de outra forma não aprenderiam (como a associação de treinamento fraco entre um sabor e açúcar diluído). Tal mecanismo parecia ajudar o cérebro a direcionar recursos para o aprendizado em momentos oportunos. A comida talvez deixasse os caramujos mais alertas para potenciais fontes de alimento nas proximidades.

Seu navegador não suporta esse video.

Um caramujo Lymnaea que associa água com sabor a açúcar abre e fecha rapidamente a boca para engolir (à direita).

No entanto, o efeito sobre os caramujos era passageiro. O período rico em aprendizado persistia por algo entre 30 minutos e 4 horas após o treinamento forte. Depois disso, os caramujos paravam de formar memórias de longo prazo durante a sessão de treinamento fraco – e não porque eles haviam esquecido o treinamento forte: a memória desse evento persistiu por meses.

Ter uma janela crucial para aprendizado aprimorado faz sentido porque, se o processo não fosse desativado, “poderia ser prejudicial para o animal”, disse Crossley. O animal poderia não apenas investir recursos demais no aprendizado, mas também aprender associações prejudiciais à sua sobrevivência.

Percepções alteradas

Ao fazer sondagens com eletrodos, os pesquisadores descobriram o que acontece dentro do cérebro do caramujo quando ele forma memórias de longo prazo a partir dos treinamentos. Ocorrem dois ajustes paralelos na atividade cerebral. O primeiro codifica a memória em si. O segundo está “puramente envolvido na alteração da percepção do animal sobre outros eventos”, disse Crossley. “Muda a maneira como ele vê o mundo com base em suas experiências passadas”.

Os cientistas também descobriram que poderiam induzir a mesma mudança na percepção dos caramujos bloqueando os efeitos da dopamina, a substância química produzida pelo neurônio que ativava o comportamento de cuspir. Isso desligou o neurônio de cuspir e deixou o neurônio de engolir constantemente ligado. A experiência apresentou o mesmo efeito que o treinamento forte teve nos experimentos anteriores: horas depois, os caramujos formaram uma memória de longo prazo do treinamento fraco.

Os pesquisadores mapearam minuciosa e elegantemente o processo, desde “o comportamento até os fundamentos eletrofisiológicos dessa interação entre memórias novas e antigas”, disse Pedro Jacob, pós-doutorando da Universidade de Oxford, que não participou do estudo. “Ter o conhecimento de como isso acontece mecanicamente é interessante porque o processo provavelmente se repete em outras espécies”.

Mas Frank não está totalmente convencido de que o fato de os caramujos não ingerirem água com sabor após o treinamento fraco significa que eles não guardaram nenhuma memória do evento. Você pode ter uma memória, mas não tomar uma atitude a respeito, disse ele, então fazer essa distinção vai exigir novos experimentos.

Os mecanismos por trás do aprendizado e da memória são surpreendentemente semelhantes em moluscos e mamíferos como os humanos, disse Glanzman. Até onde os autores sabem, esse mesmo mecanismo ainda não foi demonstrado em humanos, disse Crossley. “Pode ser uma característica semelhante e, portanto, merece mais atenção”, disse ele.

Seria interessante estudar se uma mudança na percepção poderia se tornar mais permanente, disse Glanzman. Ele suspeita que isso seja possível se os caramujos receberem um estímulo aversivo, algo que os deixe enojados em vez de sedentos.

Por enquanto, Crossley e sua equipe estão curiosos sobre o que acontece no cérebro desses caramujos quando eles adotam outros comportamentos, não apenas abrindo ou fechando a boca. “São criaturas muito fascinantes”, disse Crossley. “Você não imagina que sejam capazes de realizar processos complexos como estes”.

Nota do editor: Loren Frank é pesquisador da Iniciativa de Pesquisa sobre Autismo da Simons Foundation (SFARI, na sigla em inglês). A Simons Foundation também financia a Quanta como uma revista de linha editorial independente. As decisões de financiamento não têm influência em nossa cobertura./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

História original republicada com permissão da Quanta Magazine, uma publicação editorialmente independente apoiada pela Simons Foundation. Leia o conteúdo original em Memories Help Brains Recognize New Events Worth Remembering

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