O Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE-SP) entraram com uma ação civil pública conjunta na manhã desta segunda-feira, 5, contra a operadora Prevent Senior pedindo o pagamento de indenização de R$ 940 milhões por dano moral e social coletivo à saúde pública por supostas irregularidades cometidas durante a pandemia de covid-19. De acordo com os MPs, a empresa violou a saúde pública ao distribuir de forma indiscriminada remédios sabidamente ineficazes contra o coronavírus e praticou assédio moral e outras ilegalidades trabalhistas contra seus profissionais.
Entre as irregularidades apontadas na investigação estão pesquisa com seres humanos sem autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e violações à autonomia médica, à saúde pública e aos direitos dos pacientes e consumidores do plano de saúde. Procurada pelo Estadão, a empresa disse que “não pode se manifestar porque sequer conhece a ação” e que “atende as melhores práticas em todos os seguimentos que atua, o que ficará reconhecido ao fim do processo”.
A ação tem como alvo, além da Prevent, cinco empresas ligadas a ela e os quatro sócios da operadora. No aspecto dos danos à saúde pública, os promotores e procuradores buscam a compensação pela prática de prescrição e distribuição indiscriminada do chamado kit covid durante os primeiros anos da pandemia, que reuniam medicamentos ineficazes contra a covid-19, como hidroxicloroquina e ivermectina.
O MPE-SP já havia firmado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Prevent Senior em outubro de 2021, no qual a empresa se comprometia a não distribuir mais os medicamentos, mas a ação civil refere-se às práticas da empresa anteriores a esse acordo. De acordo com os representantes dos MPs, o valor da indenização pedida corresponde a 10% do faturamento líquido da empresa em 2020 e 2021.
Na investigação, os MPs também dizem ter comprovado irregularidades, por parte da Prevent Senior, em um estudo clínico que tinha como objetivo testar a eficácia da hidroxicloroquina contra a covid-19.
“Os resultados divulgados acerca de eficácia da cloroquina não correspondiam a uma pesquisa científica, limitando-se a dados internos. A Prevent nao obteve autorização da Conep. [...] Eles usaram os dados para defender a hidroxicloroquina em um momento que todo o mundo já não usava. Difusamente, essa situação atingiu muita gente no Brasil”, disse o promotor Arthur Pinto Filho, da Promotoria de Saúde Pública do MPE-SP, em coletiva de imprensa na tarde desta terça-feira, 6.
A fraude e a suspensão do estudo pela Conep foram reveladas pelo Estadão em abril de 2020. Na época, a operadora havia divulgado para a imprensa resultados de um estudo feito por ela que supostamente mostrava que o uso de hidroxicloroquina combinada com azitromicina reduzia o número de internações e mortes por covid. Três dias depois, a Conep suspendeu o estudo porque ele foi feito sem autorização da comissão - nenhuma pesquisa com seres humanos pode começar sem o aval do órgão - e apontou outras irregularidades na pesquisa.
Na ação, os membros dos MPs dizem que “a pesquisa científica realizada pela Prevent Senior e seus pesquisadores ocorreu de maneira reprovável, com violação de normas éticas, ocasionando danos físicos e psíquicos aos participantes e à sociedade como um todo” e que, por isso, “impõe-se a necessária reparação”.
Milhares de profissionais trabalharam infectados com covid, dizem MPs
Na esfera trabalhista, os procuradores do MPT dizem ter obtido provas de assédio moral por parte da operadora para que profissionais da saúde trabalhassem mesmo infectados pela covid-19. “Identificamos ao menos 2.848 profissionais que trabalharam infectados no período de 2020 e 2021 nos dois dias subsequentes ao resultado positivo do teste de covid”, disse o procurador Murillo César Muniz, do MPT.
Para chegar a esses números, os procuradores cruzaram bancos de dados de testes positivos com os sistemas de ponto e frequência da Prevent. O MPT encontrou ainda 3.147 profissionais que trabalharam infectados nos sete dias seguintes à confirmação de contaminação e outros 3.679 que atuaram contaminados nos 14 dias seguintes à confirmação.
Na ação civil, os procuradores dizem que “o dano moral a ser fixado deve considerar a prática de assédio moral organizacional, o descumprimento das medidas de proteção à saúde e segurança do trabalho relativas à covid-19, a violação da autonomia médica, com a imposição da prescrição de medicamentos sem eficácia comprovada, e a realização de estudo com seres humanos sem a autorização da Conep” e afirmam que ”a lesão é grave, extensa e reiterada, considerando os trabalhadores, os pacientes, contactantes, que passam de milhões, além do prejuízo à saúde pública e contenção da transmissibilidade do vírus, transformando, ainda, seres humanos em cobaias.”
A investigação analisou cerca de 37 mil documentos, entre provas colhidas nas CPIs Federal e Municipal, inquéritos civis dos três MPs, processos administrativos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), sindicâncias do Cremesp, oitiva em audiências presenciais de quase 60 testemunhas, pesquisa e análise de ações trabalhistas individuais, laudos da Perícia de Medicina do Trabalho do MPT, realização de diligências na empresa, dados da Secretaria de Saúde, dos réus e da Receita Federal.
De acordo com a assessoria do MPT, estão entre as provas “comunicados expedidos pela ré” que mostram “o assédio moral sofrido pelos profissionais de saúde, que eram obrigados a prescrever o kit covid diante de qualquer relato de sintoma gripal, desrespeitando a conduta médica do profissional”.
Ainda segundo os procuradores, “a obrigação tornou-se protocolo interno e tinha de ser seguido compulsoriamente, sob pena de ‘castigos’ aos médicos. Essas penas eram variadas e consistiam em perda ou realocação de plantões e até em demissões, nos casos extremos”.
“Era um assédio moral organizacional. A partir do conjunto de provas, formulamos 34 pedidos trabalhistas para coibir o assédio moral e melhorar o ambiente de trabalho”, disse a procuradora Lorena Porto, do MPT.
Entre os pedidos feitos à Justiça na ação civil pública estão a proibição de atos de assédio moral, como a exposição dos trabalhadores a situações abusivas, humilhantes e constrangedoras; a obrigação de não interferir na autonomia médica e a emissão de Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) quando cabível, sob pena de pagamento de multa no valor de R$ 100 mil por cada obrigação descumprida. A lista completa dos 34 pedidos pode ser acessada no site do MPT.
Agora, a Justiça do Trabalho irá julgar as demandas feitas pelos procuradores e promotores da ação. Caso elas sejam julgadas procedentes, a operadora será condenada a pagar a indenização e seguir as normas propostas pelos MPs. Segundo Pinto Filho, o valor da indenização irá para ações e projetos de saúde pública.