A senhora Volkoff Peschon, nascida em 1937 e residente em Genebra, na Suíça, planeja a rotina conforme a previsão do tempo. Se está muito quente, fica em casa o dia todo com as persianas fechadas e o ar condicionado ligado. Também da Suíça, a senhora Molinari, nascida em 1941, sofre com asma e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), que pioram nas ondas de calor. Com a mobilidade reduzida pelo agravamento das doenças, ela se sente solitária.
Os relatos foram extraídos de um processo movido pela associação KlimaSeniorinnen, popularmente conhecida como “vovós pelo clima”, que teve uma vitória inédita no mais alto tribunal de direitos humanos da Europa. A Corte considerou que a Suíça violou o “direito ao respeito à vida privada e familiar” por não endereçar adequadamente as mudanças climáticas e pelos prejuízos à saúde provocados pelas ondas de calor, induzidas por elas e cada vez mais frequentes.
Esses relatos expõem dois fenômenos. De um lado, temos as mudanças climáticas e suas consequências cada vez mais visíveis. Do outro, há o aumento da longevidade, uma grande vitória da Medicina. Em meio aos extremos climáticos, teremos cada vez mais pessoas idosas, com capacidade de adaptação diminuída pelas alterações hormonais e pelas mudanças na composição corporal (menos músculos e água, e mais gordura) naturais do processo de envelhecimento.
A projeção das Nações Unidas (ONU) é de que a porcentagem da população mundial com 65 anos ou mais aumentará de 10%, em 2022, para 16%, em 2050. No Brasil, a mesma base de dados indica que a taxa será de 21,9% em 2025 e de mais de 33% em 2100. Para se ter uma ideia, em números absolutos, isso significa 61,8 milhões de brasileiros nessa faixa etária em 2100, quase o triplo dos 21,2 milhões registrados em 2022.
É verdade que, no outro extremo de idade, os bebês também são considerados vulneráveis a essas alterações bruscas de temperatura e também a fatalidades repentinas. “Mas você protege com muito mais facilidade uma criança do frio, do calor, da falta de umidade relativa do ar, do que o idoso. Elas têm mais mecanismos, de ordem física e social, para serem protegidas. O idoso você não pega no colo”, fala Wilson Jacob Filho, professor de geriatria da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
Mais vulneráveis, por quê?
“O nosso corpo é uma máquina, que está sujeita ao desgaste. Os anos vão fazendo com que todos os mecanismos de regulação fiquem menos eficientes. Existe um processo de perda funcional que acompanha o nosso corpo a partir da terceira ou quarta década de vida, que chamamos perda da capacidade intrínseca do nosso organismo”, explica Luiz Roberto Ramos, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) e diretor-fundador do Centro de Estudos do Envelhecimento da Unifesp.
O envelhecimento usual tem processos que prejudicam e tornam mais lenta a termorregulação, ou seja, a adaptação tanto ao calor quanto ao frio. Alguns exemplos são:
- O idoso sente menos sede: isso ocorre por causa de uma alteração no hormônio antidiurético (que tem a função de regular a quantidade de água no corpo), segundo Marco Túlio Cintra, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
- O idoso sua menos: um dos mecanismos para se adaptar ao calor é o suor. “A evaporação do suor produz uma liberação de calor. O idoso tem menos glândulas sudoríparas. É muito raro vê-los com transpiração evidente”, diz Jacob.
- O idoso “sente” mais frio: há uma “mudança na constituição do corpo”, conforme o professor da UFMG, em que perdemos músculo e água e ganhamos gordura. “A produção de calor é fundamentalmente decorrente da atividade muscular. Por isso que quando você está com frio, se movimenta bastante, fricciona, ou qualquer outra coisa que leve à contração muscular. O idoso habitual tem menos músculo que o indivíduo mais jovem, portanto, uma produção de calor diminuída”, explica Jacob.
Tudo se torna mais complicado se a pessoa tiver problemas cardiovasculares. Isso porque todos sofremos com o calor. “O nosso coração tende a acelerar”, resume Ramos. “Por quê? Vasodilatação. O coração tem que bater mais para fazer o sangue circular, já que os encanamentos alargaram. Se não conseguir manter a circulação totalmente normal, há prejuízo em órgãos que vão ser mal irrigados.”
“Suspeita-se que, como a pessoa teria menos água circulante, maior a tendência de aquele sangue ali ficar mais escuro, mais grosso, começar a ter microtrombos, AVC e infarto. Há vários estudos que investigam o motivo dessa associação cardiovascular com calor excessivo, e estudos epidemiológicos mostrando aumento de doenças cardiovasculares naqueles períodos específicos”, complementa Cintra.
Ondas de calor ou extremo frio estão associadas a um aumento significativo das internações hospitalares e da mortalidade. Um estudo publicado em 2015, pela revista científica The Lancet, que analisou o risco de mortalidade atribuído à temperatura ambiente alta e baixa em 384 cidades pelo mundo, mostrou que, em São Paulo, quando bate 30°C no termômetro, a alta nas mortes é de 50%.
Além do calor
No entanto, Cintra destaca que, por ora, o período com mais infartos e AVCs é no frio, por causa da maior circulação de vírus respiratórios. “Isso é por inflamação. Toda vez que a gente inflama, essa inflamação não é localizada num lugar só. A inflamação é no corpo inteiro.”
“Toda grande onda de virose, seja influenza, covid, VSR (vírus sincicial respiratório) ou outros, geralmente, é seguida por ondas de infarto e AVC, porque a pessoa inflamou, e o endotélio - os vasos do corpo - inflamaram junto.”
Cintra destaca que uma das discussões, com as mudanças climáticas, é como fica a sazonalidade dessas doenças, isso é, sobre o momento em que elas tendem a ocorrer mais. Do ponto de vista de saúde pública, isso é muito importante para planejar ações e agir no momento certo.
Ao mesmo tempo, segundo especialistas, outras doenças infecciosas, essas que não se dão bem com o frio, tendem a aumentar. Estamos falando das arboviroses (transmitidas por artrópodes, como mosquitos). O principal exemplo é a dengue.
Desde o ano passado, a sazonalidade dela está bagunçada, com a transmissão seguindo mesmo fora do período esperado. Neste ano, o País vive uma epidemia sem precedentes, e já ultrapassou a marca de 6 milhões de casos prováveis.
Pessoas mais velhas, novamente, figuram no grupo de risco para formas graves e óbitos pela doença. Dados preliminares do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, tabulados pelo Estadão, apontam que pessoas com 65 anos ou mais respondem por 56,5% dos óbitos deste ano. Os dados foram atualizados pela última vez em 24 de junho pela pasta.
Isso tem a ver também com outro processo intrínseco ao envelhecimento usual:
- Imunosenescência: com menor capacidade de sintetizar os elementos de defesa, como anticorpos, e mobilizar essas células, as defesas da pessoa se tornam mais lentas e inespecíficas. Isso torna o paciente mais suscetível a quadros infecciosos e ao agravamento deles.
Envelhecimento saudável
No final de 2020, as Nações Unidas proclamaram o período entre 2021 e 2030 como a Década do Envelhecimento Saudável, que a OMS define como “o processo de desenvolver e manter a capacidade funcional que permite o bem-estar na idade avançada”.
Em meio a mudanças climáticas, os especialistas pontuam quatro componentes para atingir esse objetivo:
- Vacinas: é preciso estar atento à vacinação que ajuda a evitar o agravamento de quadros infecciosos. No caso do idoso, devido à imunossenescência, a janela entre reforços vacinais é mais curta.
- Hidratação adequada: embora sintam menos sede, idosos precisam manter a hidratação adequadamente, principalmente durante ondas de calor.
- Alimentação saudável: as principais orientações são evitar os produtos ultraprocessados, reduzir o sal e se inspirar/seguir a dieta mediterrânea, considerada uma das mais saudáveis do mundo (e que pode ser adaptada com base em ingredientes nacionais).
- Exercício físico: ajuda, por exemplo, a minimizar perdas musculares que prejudicam a termorregulação.
Solidão
Parece quase natural sugerir que, em meio ao calor extremo, idosos reduzam atividades fora de casa. A recomendação médica é, de fato, evitar o ambiente externo. “Sou de Belo Horizonte, no ano passado, durante oito ou sete dias consecutivos, marcamos 37º C. Uma coisa absurda, para nosso verão, 31°C a 32°C já é muito quente. Não tinha condição das pessoas saírem à tarde. O que eu recomendei foi concentrar atividade de lazer, física, o dia a dia, antes das 10h e depois das 16h30, 17h, para evitar problemas de saúde”, conta Cintra.
Isso, no entanto, pode criar outro problema: o isolamento social. Essa foi uma reclamação frequente das aplicantes do processo da associação KlimaSeniorinnen, as “vovós pelo clima”. A senhora Volkoff Peschon se via obrigada a se abster de todas atividades recreativas. A senhora Budry, nascida em 1942, residente de Genebra, na Suíça, não podia mais nadar ou sair de casa durante o verão. Segundo o processo, tudo isso resultava em solidão, tristeza e ansiedade.
O isolamento é, na verdade, um fator de risco. “Nas ondas de calor que acometeram principalmente o Hemisfério Norte, o que as divisões de seguridade social descobriram é que idosos que moram sozinhos são mais vulneráveis às alterações climáticas porque eles não tem o agente protetor, capaz de abrir uma janela, recomendar tirar uma blusa, desligar a calefação, melhorar a hidratação. A insuficiência passa a ser social”, fala Jacob.
“Vamos ter que tomar o cuidado de adaptar o meio ambiente para ser amigável aos idosos em contexto de aquecimento global, ao invés de mantê-los presos dentro de casa”, destaca Cintra.
Efeitos desiguais
Nem todos os idosos, porém, serão afetados da mesma maneira pelas mudanças climáticas. Os especialistas, inclusive, questionam o quanto a idade cronológica realmente revela. “O processo de envelhecimento é heterogêneo. Vamos ter pessoas que envelhecem bem e outras que envelhecem mal”, diz Cintra.
“Embora você não caracterize o indivíduo como frágil, ele certamente é mais vulnerável a determinadas situações do que era no passado. É muito mais vulnerável a doenças infecciosas, neoplasias (câncer), comprometimento arterial e arteriosclerose, por exemplo, porque são todas doenças tempo-dependentes”, afirma Jacob.
Por outro lado, muitas das condições vivenciadas na terceira idade estão intimamente ligadas ao estilo de vida. A maneira como envelhecemos ditará quão resilientes seremos às consequências das mudanças climáticas, avaliam os especialistas.
O problema é que, conforme Cintra, em países de baixa e média renda — isso inclui o Brasil —, a população tende a envelhecer pior. “Em um contexto brasileiro de muita desigualdade social, educação de baixa qualidade, mobilidade urbana horrenda nas grandes cidades, no qual um trabalhador padrão, jornada de oito horas, às vezes gasta duas horas e meia para ir ao trabalho e duas horas e meia para voltar, ou seja, o período total de trabalho ocupa umas treze, quatorze horas, não sobra tempo para atividade física, não sobra tempo para lazer, não sobra tempo para cuidar da saúde.”
Isso tudo, apontam, torna cada vez mais importantes as políticas de incentivo ao envelhecimento saudável, mas não anula, é claro, a necessidade de ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, que não podem ser apenas confinar idosos a suas casas.
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Ondas de calor
As mudanças climáticas são alterações a longo prazo nas temperaturas e nos padrões climáticos, segundo a ONU. Desde 1800, com a queima de combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás, a atividade humana se tornou o “principal motor” delas.
É normal que ao falar sobre elas, lembremos quase imediatamente das ondas de calor, que consistem na permanência de temperaturas 5°C acima da média por ao menos cinco dias consecutivos. Elas são um dos principais fatores de preocupação tanto porque estão mais frequentes — no Brasil, o número de dias com ondas de calor passou de 7 para 52 em 30 anos, de acordo com estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) — quanto porque as consequências delas à saúde são mais amplamente discutidas, principalmente com dados da Europa.
Um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado em 2014, estima o número de mortes adicionais por causa de ondas de calor. A avaliação limitou-se à população de 65 anos ou mais, porque, segundo a agência, este é o grupo com “maior risco de mortalidade”. A OMS estima 92.207 mortes adicionais anuais por causa do calor em 2030. Número que sobe para 255.486 em 2050. Essa projeção mostra um cenário sem ações de adaptação.