Museu Osório Cesar, no Juquery, está em fase final de restauração


Em obra há quase três anos, espaço do hospital leva o nome do pai da arteterapia no Brasil e vai receber pinturas de ex-pacientes

Por Caio Nascimento
Atualização:

FRANCO DA ROCHA - O Museu Osório Cesar, localizado no Complexo Hospitalar do Juquery, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, está em fase final de reforma após mais de uma década fechado. Com previsão de abertura em maio de 2020, a casa, projetada pelo arquiteto Ramos de Azevedo no fim do século 19, abrigará cerca de 270 obras de arte criadas por ex-pacientes do hospital psiquiátrico.

Fachada do museu Osório Cesar, localizado no complexo hospitalar do Juquery, localizado em Franco da Rocha. Foto: Werther Santana / Estadão

A unidade reúne um acervo de mais de 8 mil pinturas, modelagens e desenhos feitos sob a supervisão de Osório Cesar, considerado o primeiro médico brasileiro a investigar a psique dos enfermos por meio da arte, ainda no começo do século 20. Chamado de arteterapia, o método rendeu reflexões publicadas no livro A Expressão Artística nos Alienados, lançado por ele em 1929.

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Cesar era próximo de grandes nomes do modernismo, como Tarsila do Amaral, Lasar Segall e Maria Leontina, que, presos às correntes culturais da época, não conseguiam alcançar o nível de liberdade criativa dos internos do Juquery. Isso porque essas pessoas, confinadas em leitos psiquiátricos e alheias à realidade, pintavam os quadros sem se preocupar com as noções acadêmicas da arte.

Acervo conta com oito mil obras de arte feitas por pacientes do hospital psiquiátrico do Juquery ao longo de quase um século. Foto: Werther Santana / Estadão

"Esses artistas vinham para o ateliê de Osório e enxergavam aqui uma inspiração, porque era invejável a possibilidade de acessar o inconsciente sem grandes amarras. A arte no Juquery era uma janela para o mundo", afirma a secretária de Cultura de Franco de Rocha, Taiana Garcia, responsável pela restauração.

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Histórias

Com um investimento municipal de quase R$ 4 milhões, o museu reunirá as obras dos pacientes que tiveram produções intensas no hospital psiquiátrico. Além disso, o contraste entre talento e as limitações mentais ganhará destaque com a exposição de quadros que resgatam a história de quem passou por lá. 

Aurora Cursinho, por exemplo, é uma das pacientes que entram nessa seara. Ex-prostituta e internada na velhice por comportamento "amoral", ela foi parar no Juquery em 1944 e lá ficou até a morte, em 1959. Apesar da condição de vulnerabilidade, a mulher deixou como legado 186 pinturas que retratam memórias da infância, abusos sexuais e recordações dos lugares por onde passou - como os albergues paulistas em que dormia durante os anos 1930.

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Iotiro Akaba é outro que marcou época. Ele chegou ao Brasil durante a imigração japonesa, iniciada em 1908, e foi internado no hospital com "demência precoce" em 1924, onde viveu até morrer, 44 anos depois. Muitas de suas obras remetem ao Japão, com ideogramas e portos do país asiático. 

Funcionária do Complexo do Juquery com os quadros de Iotiro Akaba, que serão expostos no Museu Osório César. Obras estão preservadas no Núcleo de Acervos, Memórias e Cultura do hospital. Foto: Werther Santana / Estadão

"As produções são variadas. Cada obra traz muito da vivência específica do artista (paciente). Cada um tem marcas, histórias e sensibilidades únicas", afirma Michelle Guimarães, museóloga do Museu Osório Cesar. "Isso é importante para desmistificar a imagem de quem sofre com transtorno mental. Eles vão muito além da doença. São artistas, assim como Portinari e Tarsila do Amaral", ressalta.

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É importante para desmistificar a imagem de quem sofre com transtorno mental. Eles vão muito além da doença. São artistas, assim como Portinari e Tarsila do Amaral

Michelle Guimarães, museóloga do Museu Osório Cesar

Vidas que não se reduzem à loucura

Como o museu não comporta as 8 mil obras de arte - preservadas no Núcleo de Acervos, Memórias e Cultura do Juquery -, a equipe da Secretaria de Cultura de Franco da Rocha informa que pretende disponibilizar todas em uma plataforma virtual pública e gratuita, a fim de torná-las conhecidas e chamar a atenção da sociedade para a importância da arte na saúde mental.

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"O objetivo do museu é quebrar preconceitos. Queremos sensibilizar os visitantes para entenderem que a arte é para todos. Precisamos romper um pouco com essa visão de que cultura está só nas Belas Artes e nos grandes nomes", diz Taiana. "Os pacientes do Juquery produzem arte desde sempre aqui." 

O objetivo do museu é quebrar preconceitos. Queremos sensibilizar os visitantes para entenderem que a arte é para todos. Precisamos romper um pouco com essa visão de que cultura está só nas Belas Artes e nos grandes nomes

Taiana Garcia, secretária de Cultura de Franco de Rocha

Já Michelle explica que é importante para o público do local compreender as relações entre arte e psicologia. Segundo ela, as inúmeras peças do acervo trazem perspectivas de que a psiquiatria não traria caso se limitasse ao tratamento medicamentoso. 

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"A arte permite trabalhar com vidas que são reduzidas à loucura. O conteúdo daqui prova que é possível viver, criar e deixar um legado para o mundo, mesmo diante da dor e a (falta) de saúde mental", avalia. 

Algumas das obras que estão guardadas no Hospital Psiquiátrico do Juquery. Apenas 270 (3%) das oito mil obras irão para o museu Osório Cesar, uma vez que o local não comporta todo o acervo. Foto: Werther Santana / Estadão

Quem for visitar o museu terá a oportunidade de ver também a carta do pai da psicanálise, Sigmund Freud, escrita para Osório. O psiquiatra do Juquery fazia uma leitura freudiana da arte e usava conceitos do médico austríaco, como a interpretação de sonhos, para analisar suas observações no hospital psiquiátrico, o que fez os dois se aproximarem.

"Os órgãos genitais masculinos (pintados pelos pacientes) são, por exemplo, representados por bengalas, limas, serpentes, punhais, revólveres, torneiras, dirigíveis Zepelim, peixes etc", escreve no começo de A Expressão Artística nos Alienados. "Já os órgãos femininos têm representação em vasos, caixas, cofres, portas e frutos", completa.

Atraso nas obras 

Com quartos espaçosos, janelas grandes e piso de madeira, o casarão térreo em formato de chalé francês foi primeiramente a residência oficial dos diretores do Juquery, depois virou uma escola de enfermagem e, em seguida, se transformou na Museu do Hospital e na Escola Livre de Artes Plásticas voltada para pacientes, que funcionou de 1956 até meados da década de 1970. Só em 1985 que se transformou no museu, em homenagem a Osório.

O local fechou as portas em 2006 com necessidades de reformas e ficou 11 anos assim até o início da restauração, no fim de 2017. De lá para cá, a demora das licitações fez com que a previsão de entrega da obra se estendesse de janeiro de 2020 para maio do mesmo ano. 

"Há vários processos acontecendo ao mesmo tempo. Tem o restauro, ocorreu a catalogação e higienização das obras de arte, e logo mais iniciamos a expografia", diz a secretária Taiana. Quanto ao atraso, ela explica que isso ocorre devido à burocraciapública. "Quando precisamos adicionar um documento, aumenta-se mais 15 dias."

Paciente comemorou o tetracampeonato do Brasil na Copa do Mundo de 1994 com uma obra de arte. Foto: Werther Santana / Estadão

O Museu Osório César vai contar com recepção, loja, um café e salas de exposição. Terá também banheiros, área da administração e um setor educativo, tudo com acessibilidade para pessoas com deficiência. Fora isso, os curadores Pedro Quintanilha e Hélio Menezes, responsáveis pelo projeto artístico, decidiram não usar paredes falsas em algumas partes do museu para os visitantes verem como era o espaço original de produção do antigo ateliê.

Franco da Rocha não é só presídios e enchentes 

Conhecida por presídios, hospitais psiquiátricos e pelas enchentes, fruto das cheias do Ribeirão Eusébio e do Rio Juquery, Franco da Rocha ainda carrega o estigma de ser uma cidade com histórias de mortes e loucura. No entanto, os gestores públicos do município acreditam que o museu ajude a população a romper com preconceito e a enxergar o outro lado da região. 

"É uma cidade que sempre foi vista como lugar de inundações e penitenciárias. Mas aqui é o berço da arteterapia no Brasil. As pessoas não sabem disso", diz Taiana.

(Franco da Rocha) É uma cidade que sempre foi vista como lugar de inundações e penitenciárias. Mas aqui é o berço da arteterapia no Brasil. As pessoas não sabem disso

Taiana Garcia, secretária de Cultura de Franco de Rocha

Para fomentar o conhecimento sobre a história científica da cidade, a prefeitura de Franco da Rocha informa que publicará no começo de fevereiro de 2020 e no segundo semestre do mesmo ano um edital de fomento a pesquisas referentes ao museu, no valor de R$ 40 mil. 

"Queremos promover um intercâmbio de conhecimentos. O museu vai atrair muita gente e estamos perto de São Paulo", alega a secretária.

Atualmente, o município já tem uma parceria com a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) para a produção de um livro sobre a história da cidade. 

Além disso, um grupo de psicólogos, psiquiatras e jornalistas pretende reeditar o livro Expressão Artística nos Alienados para revisar termos como "doentes", "loucos", "alienados" e localizar a obra de Osório César na atualidade.

O esforço em dar visibilidade ao lugar não é para menos. Durante muitos anos, o atendimento humanizado implantado no Juquery se chocou com violações de direitos humanos contra os internos do hospital, conforme apontam documentos da Comissão da Verdade, de 2014, e relatos de ex-pacientes como Walter Frias, que presenciou sessões de tortura dentro da instituição na ditadura militar e denunciou no livro O Capa-Branca, do jornalista Daniel Navarro Sonim.

Esta senhora é uma das 57 pessoas que restaram internadas no Hospital Psiquiátrico do Juquery. Aunidade médica está sendo desativada aos poucos desde a lei da Reforma Psiquiátrica, instituída em 2001. Foto: Werther Santana / Estadão

"Para além das passagens difíceis, temos um patrimônio arquitetônico, natural e científico dentro do Juquery. Então, o museu vai mostrar também o outro lado da história", afirma Taiana.

*ESTAGIÁRIO SOB A SUPERVISÃO DE CHARLISE MORAIS

FRANCO DA ROCHA - O Museu Osório Cesar, localizado no Complexo Hospitalar do Juquery, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, está em fase final de reforma após mais de uma década fechado. Com previsão de abertura em maio de 2020, a casa, projetada pelo arquiteto Ramos de Azevedo no fim do século 19, abrigará cerca de 270 obras de arte criadas por ex-pacientes do hospital psiquiátrico.

Fachada do museu Osório Cesar, localizado no complexo hospitalar do Juquery, localizado em Franco da Rocha. Foto: Werther Santana / Estadão

A unidade reúne um acervo de mais de 8 mil pinturas, modelagens e desenhos feitos sob a supervisão de Osório Cesar, considerado o primeiro médico brasileiro a investigar a psique dos enfermos por meio da arte, ainda no começo do século 20. Chamado de arteterapia, o método rendeu reflexões publicadas no livro A Expressão Artística nos Alienados, lançado por ele em 1929.

Cesar era próximo de grandes nomes do modernismo, como Tarsila do Amaral, Lasar Segall e Maria Leontina, que, presos às correntes culturais da época, não conseguiam alcançar o nível de liberdade criativa dos internos do Juquery. Isso porque essas pessoas, confinadas em leitos psiquiátricos e alheias à realidade, pintavam os quadros sem se preocupar com as noções acadêmicas da arte.

Acervo conta com oito mil obras de arte feitas por pacientes do hospital psiquiátrico do Juquery ao longo de quase um século. Foto: Werther Santana / Estadão

"Esses artistas vinham para o ateliê de Osório e enxergavam aqui uma inspiração, porque era invejável a possibilidade de acessar o inconsciente sem grandes amarras. A arte no Juquery era uma janela para o mundo", afirma a secretária de Cultura de Franco de Rocha, Taiana Garcia, responsável pela restauração.

Histórias

Com um investimento municipal de quase R$ 4 milhões, o museu reunirá as obras dos pacientes que tiveram produções intensas no hospital psiquiátrico. Além disso, o contraste entre talento e as limitações mentais ganhará destaque com a exposição de quadros que resgatam a história de quem passou por lá. 

Aurora Cursinho, por exemplo, é uma das pacientes que entram nessa seara. Ex-prostituta e internada na velhice por comportamento "amoral", ela foi parar no Juquery em 1944 e lá ficou até a morte, em 1959. Apesar da condição de vulnerabilidade, a mulher deixou como legado 186 pinturas que retratam memórias da infância, abusos sexuais e recordações dos lugares por onde passou - como os albergues paulistas em que dormia durante os anos 1930.

Iotiro Akaba é outro que marcou época. Ele chegou ao Brasil durante a imigração japonesa, iniciada em 1908, e foi internado no hospital com "demência precoce" em 1924, onde viveu até morrer, 44 anos depois. Muitas de suas obras remetem ao Japão, com ideogramas e portos do país asiático. 

Funcionária do Complexo do Juquery com os quadros de Iotiro Akaba, que serão expostos no Museu Osório César. Obras estão preservadas no Núcleo de Acervos, Memórias e Cultura do hospital. Foto: Werther Santana / Estadão

"As produções são variadas. Cada obra traz muito da vivência específica do artista (paciente). Cada um tem marcas, histórias e sensibilidades únicas", afirma Michelle Guimarães, museóloga do Museu Osório Cesar. "Isso é importante para desmistificar a imagem de quem sofre com transtorno mental. Eles vão muito além da doença. São artistas, assim como Portinari e Tarsila do Amaral", ressalta.

É importante para desmistificar a imagem de quem sofre com transtorno mental. Eles vão muito além da doença. São artistas, assim como Portinari e Tarsila do Amaral

Michelle Guimarães, museóloga do Museu Osório Cesar

Vidas que não se reduzem à loucura

Como o museu não comporta as 8 mil obras de arte - preservadas no Núcleo de Acervos, Memórias e Cultura do Juquery -, a equipe da Secretaria de Cultura de Franco da Rocha informa que pretende disponibilizar todas em uma plataforma virtual pública e gratuita, a fim de torná-las conhecidas e chamar a atenção da sociedade para a importância da arte na saúde mental.

"O objetivo do museu é quebrar preconceitos. Queremos sensibilizar os visitantes para entenderem que a arte é para todos. Precisamos romper um pouco com essa visão de que cultura está só nas Belas Artes e nos grandes nomes", diz Taiana. "Os pacientes do Juquery produzem arte desde sempre aqui." 

O objetivo do museu é quebrar preconceitos. Queremos sensibilizar os visitantes para entenderem que a arte é para todos. Precisamos romper um pouco com essa visão de que cultura está só nas Belas Artes e nos grandes nomes

Taiana Garcia, secretária de Cultura de Franco de Rocha

Já Michelle explica que é importante para o público do local compreender as relações entre arte e psicologia. Segundo ela, as inúmeras peças do acervo trazem perspectivas de que a psiquiatria não traria caso se limitasse ao tratamento medicamentoso. 

"A arte permite trabalhar com vidas que são reduzidas à loucura. O conteúdo daqui prova que é possível viver, criar e deixar um legado para o mundo, mesmo diante da dor e a (falta) de saúde mental", avalia. 

Algumas das obras que estão guardadas no Hospital Psiquiátrico do Juquery. Apenas 270 (3%) das oito mil obras irão para o museu Osório Cesar, uma vez que o local não comporta todo o acervo. Foto: Werther Santana / Estadão

Quem for visitar o museu terá a oportunidade de ver também a carta do pai da psicanálise, Sigmund Freud, escrita para Osório. O psiquiatra do Juquery fazia uma leitura freudiana da arte e usava conceitos do médico austríaco, como a interpretação de sonhos, para analisar suas observações no hospital psiquiátrico, o que fez os dois se aproximarem.

"Os órgãos genitais masculinos (pintados pelos pacientes) são, por exemplo, representados por bengalas, limas, serpentes, punhais, revólveres, torneiras, dirigíveis Zepelim, peixes etc", escreve no começo de A Expressão Artística nos Alienados. "Já os órgãos femininos têm representação em vasos, caixas, cofres, portas e frutos", completa.

Atraso nas obras 

Com quartos espaçosos, janelas grandes e piso de madeira, o casarão térreo em formato de chalé francês foi primeiramente a residência oficial dos diretores do Juquery, depois virou uma escola de enfermagem e, em seguida, se transformou na Museu do Hospital e na Escola Livre de Artes Plásticas voltada para pacientes, que funcionou de 1956 até meados da década de 1970. Só em 1985 que se transformou no museu, em homenagem a Osório.

O local fechou as portas em 2006 com necessidades de reformas e ficou 11 anos assim até o início da restauração, no fim de 2017. De lá para cá, a demora das licitações fez com que a previsão de entrega da obra se estendesse de janeiro de 2020 para maio do mesmo ano. 

"Há vários processos acontecendo ao mesmo tempo. Tem o restauro, ocorreu a catalogação e higienização das obras de arte, e logo mais iniciamos a expografia", diz a secretária Taiana. Quanto ao atraso, ela explica que isso ocorre devido à burocraciapública. "Quando precisamos adicionar um documento, aumenta-se mais 15 dias."

Paciente comemorou o tetracampeonato do Brasil na Copa do Mundo de 1994 com uma obra de arte. Foto: Werther Santana / Estadão

O Museu Osório César vai contar com recepção, loja, um café e salas de exposição. Terá também banheiros, área da administração e um setor educativo, tudo com acessibilidade para pessoas com deficiência. Fora isso, os curadores Pedro Quintanilha e Hélio Menezes, responsáveis pelo projeto artístico, decidiram não usar paredes falsas em algumas partes do museu para os visitantes verem como era o espaço original de produção do antigo ateliê.

Franco da Rocha não é só presídios e enchentes 

Conhecida por presídios, hospitais psiquiátricos e pelas enchentes, fruto das cheias do Ribeirão Eusébio e do Rio Juquery, Franco da Rocha ainda carrega o estigma de ser uma cidade com histórias de mortes e loucura. No entanto, os gestores públicos do município acreditam que o museu ajude a população a romper com preconceito e a enxergar o outro lado da região. 

"É uma cidade que sempre foi vista como lugar de inundações e penitenciárias. Mas aqui é o berço da arteterapia no Brasil. As pessoas não sabem disso", diz Taiana.

(Franco da Rocha) É uma cidade que sempre foi vista como lugar de inundações e penitenciárias. Mas aqui é o berço da arteterapia no Brasil. As pessoas não sabem disso

Taiana Garcia, secretária de Cultura de Franco de Rocha

Para fomentar o conhecimento sobre a história científica da cidade, a prefeitura de Franco da Rocha informa que publicará no começo de fevereiro de 2020 e no segundo semestre do mesmo ano um edital de fomento a pesquisas referentes ao museu, no valor de R$ 40 mil. 

"Queremos promover um intercâmbio de conhecimentos. O museu vai atrair muita gente e estamos perto de São Paulo", alega a secretária.

Atualmente, o município já tem uma parceria com a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) para a produção de um livro sobre a história da cidade. 

Além disso, um grupo de psicólogos, psiquiatras e jornalistas pretende reeditar o livro Expressão Artística nos Alienados para revisar termos como "doentes", "loucos", "alienados" e localizar a obra de Osório César na atualidade.

O esforço em dar visibilidade ao lugar não é para menos. Durante muitos anos, o atendimento humanizado implantado no Juquery se chocou com violações de direitos humanos contra os internos do hospital, conforme apontam documentos da Comissão da Verdade, de 2014, e relatos de ex-pacientes como Walter Frias, que presenciou sessões de tortura dentro da instituição na ditadura militar e denunciou no livro O Capa-Branca, do jornalista Daniel Navarro Sonim.

Esta senhora é uma das 57 pessoas que restaram internadas no Hospital Psiquiátrico do Juquery. Aunidade médica está sendo desativada aos poucos desde a lei da Reforma Psiquiátrica, instituída em 2001. Foto: Werther Santana / Estadão

"Para além das passagens difíceis, temos um patrimônio arquitetônico, natural e científico dentro do Juquery. Então, o museu vai mostrar também o outro lado da história", afirma Taiana.

*ESTAGIÁRIO SOB A SUPERVISÃO DE CHARLISE MORAIS

FRANCO DA ROCHA - O Museu Osório Cesar, localizado no Complexo Hospitalar do Juquery, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo, está em fase final de reforma após mais de uma década fechado. Com previsão de abertura em maio de 2020, a casa, projetada pelo arquiteto Ramos de Azevedo no fim do século 19, abrigará cerca de 270 obras de arte criadas por ex-pacientes do hospital psiquiátrico.

Fachada do museu Osório Cesar, localizado no complexo hospitalar do Juquery, localizado em Franco da Rocha. Foto: Werther Santana / Estadão

A unidade reúne um acervo de mais de 8 mil pinturas, modelagens e desenhos feitos sob a supervisão de Osório Cesar, considerado o primeiro médico brasileiro a investigar a psique dos enfermos por meio da arte, ainda no começo do século 20. Chamado de arteterapia, o método rendeu reflexões publicadas no livro A Expressão Artística nos Alienados, lançado por ele em 1929.

Cesar era próximo de grandes nomes do modernismo, como Tarsila do Amaral, Lasar Segall e Maria Leontina, que, presos às correntes culturais da época, não conseguiam alcançar o nível de liberdade criativa dos internos do Juquery. Isso porque essas pessoas, confinadas em leitos psiquiátricos e alheias à realidade, pintavam os quadros sem se preocupar com as noções acadêmicas da arte.

Acervo conta com oito mil obras de arte feitas por pacientes do hospital psiquiátrico do Juquery ao longo de quase um século. Foto: Werther Santana / Estadão

"Esses artistas vinham para o ateliê de Osório e enxergavam aqui uma inspiração, porque era invejável a possibilidade de acessar o inconsciente sem grandes amarras. A arte no Juquery era uma janela para o mundo", afirma a secretária de Cultura de Franco de Rocha, Taiana Garcia, responsável pela restauração.

Histórias

Com um investimento municipal de quase R$ 4 milhões, o museu reunirá as obras dos pacientes que tiveram produções intensas no hospital psiquiátrico. Além disso, o contraste entre talento e as limitações mentais ganhará destaque com a exposição de quadros que resgatam a história de quem passou por lá. 

Aurora Cursinho, por exemplo, é uma das pacientes que entram nessa seara. Ex-prostituta e internada na velhice por comportamento "amoral", ela foi parar no Juquery em 1944 e lá ficou até a morte, em 1959. Apesar da condição de vulnerabilidade, a mulher deixou como legado 186 pinturas que retratam memórias da infância, abusos sexuais e recordações dos lugares por onde passou - como os albergues paulistas em que dormia durante os anos 1930.

Iotiro Akaba é outro que marcou época. Ele chegou ao Brasil durante a imigração japonesa, iniciada em 1908, e foi internado no hospital com "demência precoce" em 1924, onde viveu até morrer, 44 anos depois. Muitas de suas obras remetem ao Japão, com ideogramas e portos do país asiático. 

Funcionária do Complexo do Juquery com os quadros de Iotiro Akaba, que serão expostos no Museu Osório César. Obras estão preservadas no Núcleo de Acervos, Memórias e Cultura do hospital. Foto: Werther Santana / Estadão

"As produções são variadas. Cada obra traz muito da vivência específica do artista (paciente). Cada um tem marcas, histórias e sensibilidades únicas", afirma Michelle Guimarães, museóloga do Museu Osório Cesar. "Isso é importante para desmistificar a imagem de quem sofre com transtorno mental. Eles vão muito além da doença. São artistas, assim como Portinari e Tarsila do Amaral", ressalta.

É importante para desmistificar a imagem de quem sofre com transtorno mental. Eles vão muito além da doença. São artistas, assim como Portinari e Tarsila do Amaral

Michelle Guimarães, museóloga do Museu Osório Cesar

Vidas que não se reduzem à loucura

Como o museu não comporta as 8 mil obras de arte - preservadas no Núcleo de Acervos, Memórias e Cultura do Juquery -, a equipe da Secretaria de Cultura de Franco da Rocha informa que pretende disponibilizar todas em uma plataforma virtual pública e gratuita, a fim de torná-las conhecidas e chamar a atenção da sociedade para a importância da arte na saúde mental.

"O objetivo do museu é quebrar preconceitos. Queremos sensibilizar os visitantes para entenderem que a arte é para todos. Precisamos romper um pouco com essa visão de que cultura está só nas Belas Artes e nos grandes nomes", diz Taiana. "Os pacientes do Juquery produzem arte desde sempre aqui." 

O objetivo do museu é quebrar preconceitos. Queremos sensibilizar os visitantes para entenderem que a arte é para todos. Precisamos romper um pouco com essa visão de que cultura está só nas Belas Artes e nos grandes nomes

Taiana Garcia, secretária de Cultura de Franco de Rocha

Já Michelle explica que é importante para o público do local compreender as relações entre arte e psicologia. Segundo ela, as inúmeras peças do acervo trazem perspectivas de que a psiquiatria não traria caso se limitasse ao tratamento medicamentoso. 

"A arte permite trabalhar com vidas que são reduzidas à loucura. O conteúdo daqui prova que é possível viver, criar e deixar um legado para o mundo, mesmo diante da dor e a (falta) de saúde mental", avalia. 

Algumas das obras que estão guardadas no Hospital Psiquiátrico do Juquery. Apenas 270 (3%) das oito mil obras irão para o museu Osório Cesar, uma vez que o local não comporta todo o acervo. Foto: Werther Santana / Estadão

Quem for visitar o museu terá a oportunidade de ver também a carta do pai da psicanálise, Sigmund Freud, escrita para Osório. O psiquiatra do Juquery fazia uma leitura freudiana da arte e usava conceitos do médico austríaco, como a interpretação de sonhos, para analisar suas observações no hospital psiquiátrico, o que fez os dois se aproximarem.

"Os órgãos genitais masculinos (pintados pelos pacientes) são, por exemplo, representados por bengalas, limas, serpentes, punhais, revólveres, torneiras, dirigíveis Zepelim, peixes etc", escreve no começo de A Expressão Artística nos Alienados. "Já os órgãos femininos têm representação em vasos, caixas, cofres, portas e frutos", completa.

Atraso nas obras 

Com quartos espaçosos, janelas grandes e piso de madeira, o casarão térreo em formato de chalé francês foi primeiramente a residência oficial dos diretores do Juquery, depois virou uma escola de enfermagem e, em seguida, se transformou na Museu do Hospital e na Escola Livre de Artes Plásticas voltada para pacientes, que funcionou de 1956 até meados da década de 1970. Só em 1985 que se transformou no museu, em homenagem a Osório.

O local fechou as portas em 2006 com necessidades de reformas e ficou 11 anos assim até o início da restauração, no fim de 2017. De lá para cá, a demora das licitações fez com que a previsão de entrega da obra se estendesse de janeiro de 2020 para maio do mesmo ano. 

"Há vários processos acontecendo ao mesmo tempo. Tem o restauro, ocorreu a catalogação e higienização das obras de arte, e logo mais iniciamos a expografia", diz a secretária Taiana. Quanto ao atraso, ela explica que isso ocorre devido à burocraciapública. "Quando precisamos adicionar um documento, aumenta-se mais 15 dias."

Paciente comemorou o tetracampeonato do Brasil na Copa do Mundo de 1994 com uma obra de arte. Foto: Werther Santana / Estadão

O Museu Osório César vai contar com recepção, loja, um café e salas de exposição. Terá também banheiros, área da administração e um setor educativo, tudo com acessibilidade para pessoas com deficiência. Fora isso, os curadores Pedro Quintanilha e Hélio Menezes, responsáveis pelo projeto artístico, decidiram não usar paredes falsas em algumas partes do museu para os visitantes verem como era o espaço original de produção do antigo ateliê.

Franco da Rocha não é só presídios e enchentes 

Conhecida por presídios, hospitais psiquiátricos e pelas enchentes, fruto das cheias do Ribeirão Eusébio e do Rio Juquery, Franco da Rocha ainda carrega o estigma de ser uma cidade com histórias de mortes e loucura. No entanto, os gestores públicos do município acreditam que o museu ajude a população a romper com preconceito e a enxergar o outro lado da região. 

"É uma cidade que sempre foi vista como lugar de inundações e penitenciárias. Mas aqui é o berço da arteterapia no Brasil. As pessoas não sabem disso", diz Taiana.

(Franco da Rocha) É uma cidade que sempre foi vista como lugar de inundações e penitenciárias. Mas aqui é o berço da arteterapia no Brasil. As pessoas não sabem disso

Taiana Garcia, secretária de Cultura de Franco de Rocha

Para fomentar o conhecimento sobre a história científica da cidade, a prefeitura de Franco da Rocha informa que publicará no começo de fevereiro de 2020 e no segundo semestre do mesmo ano um edital de fomento a pesquisas referentes ao museu, no valor de R$ 40 mil. 

"Queremos promover um intercâmbio de conhecimentos. O museu vai atrair muita gente e estamos perto de São Paulo", alega a secretária.

Atualmente, o município já tem uma parceria com a Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) para a produção de um livro sobre a história da cidade. 

Além disso, um grupo de psicólogos, psiquiatras e jornalistas pretende reeditar o livro Expressão Artística nos Alienados para revisar termos como "doentes", "loucos", "alienados" e localizar a obra de Osório César na atualidade.

O esforço em dar visibilidade ao lugar não é para menos. Durante muitos anos, o atendimento humanizado implantado no Juquery se chocou com violações de direitos humanos contra os internos do hospital, conforme apontam documentos da Comissão da Verdade, de 2014, e relatos de ex-pacientes como Walter Frias, que presenciou sessões de tortura dentro da instituição na ditadura militar e denunciou no livro O Capa-Branca, do jornalista Daniel Navarro Sonim.

Esta senhora é uma das 57 pessoas que restaram internadas no Hospital Psiquiátrico do Juquery. Aunidade médica está sendo desativada aos poucos desde a lei da Reforma Psiquiátrica, instituída em 2001. Foto: Werther Santana / Estadão

"Para além das passagens difíceis, temos um patrimônio arquitetônico, natural e científico dentro do Juquery. Então, o museu vai mostrar também o outro lado da história", afirma Taiana.

*ESTAGIÁRIO SOB A SUPERVISÃO DE CHARLISE MORAIS

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