Nísia não teve erros que justificassem sua saída, avaliam nomes importantes da área


Primeira mulher à frente do Ministério da Saúde deixa marcas como a retomada da vacinação e o investimento na indústria nacional, apesar de deslizes

Por Leon Ferrari e Stefhanie Piovezan
Atualização:

Nísia Trindade, demitida do Ministério da Saúde nesta terça-feira, 25, deixa um legado positivo, segundo especialistas. Entre os triunfos da agora ex-ministra estão o aumento da cobertura vacinal, a inclusão de novos imunizantes na rede pública, a reorganização da pasta e a retomada de programas como o Mais Médicos.

Para eles, Nísia não cometeu erros que justificassem sua saída e a demissão é uma questão política. Pesaram contra sua gestão a queda de popularidade do governo federal, a falta de articulação e a ausência de padrinhos políticos.

Nísia Trindade em seu último evento como ministra, quando anunciou 60 milhões de doses anuais da vacina contra dengue
Nísia Trindade em seu último evento como ministra, quando anunciou 60 milhões de doses anuais da vacina contra dengue Foto: WILTON JUNIOR
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“Um ministro de Estado precisa ter uma boa penetração e articulação no Congresso. Isso é fatal. Se o ministro não tem esse perfil, tem de ter um preposto que faça isso por ele”, avalia o médico Walter Cintra, professor de gestão em saúde da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Essa compreensão faltou ao Ministério da Saúde”, resume. Para ele, não adianta ser muito técnico e esquecer que a questão política é central, porque quem vai decidir os recursos da saúde, em última análise, são os políticos — ainda mais no modelo das emendas parlamentares.

O fato de ser a primeira mulher à frente da pasta também aumentou o teto de vidro. “Muita gente olha de forma preconceituosa, com misoginia e diz: ‘As mulheres são mais frágeis, não têm tanto poder de comando’”, critica o médico sanitarista Claudio Maierovitch Pessanha Henriques, ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Nísia já foi ‘acusada’ de ser ‘suave demais’. Ser gestor, ter poder e conseguir fazer isso sem gritar, ofender, menosprezar é uma grande qualidade”.

Embora enalteçam sua capacidade técnica e a equipe que reuniu, os especialistas apontam que a gestão não foi isenta de deslizes. Mencionam, por exemplo, a falta de coordenação nacional no combate à dengue e a dificuldade de lidar com a gestão de filas no Sistema Único de Saúde (SUS) no período à frente da pasta, o qual superou a média.

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Desde a redemocratização, calcula a médica Ana Maria Malik, professora da FGV, os ocupantes do cargo duram, em média, 16 meses.

A professora Lorena Guadalupe Barberia, do departamento de Ciência Política da USP, refina o cálculo. Ela e colegas publicaram na revista científica Leadership in Health Services uma análise sobre a queda de ministros e secretários de Saúde no Brasil durante a pandemia. “Na média, ministros da Saúde ficam no cargo 500 dias. Ela ficou 786 dias. Considero uma vitória ela ter permanecido tanto tempo sabendo que, durante períodos de crise, há maior alternância.”

Reconstrução

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É unânime entre os especialistas que Nísia reconstruiu um ministério desmontado após gestões “desastrosas” de seus antecessores nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. “Ela pegou um ministério destruído e está entregando para seu sucessor uma pasta com projetos bem encaminhados”, pondera Cintra.

“O que foi destruído nos seis anos de dois governos em que a saúde deixou de ser priorizada, Nísia reconstruiu em 25 meses. Isso não é pouco”, dizem a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) em nota de agradecimento.

Foi ela a responsável por retomar programas como o Mais Médicos, o Brasil Sorridente e a Farmácia Popular. Por outro lado, faltou à ministra uma marca própria. O mais próximo disso foi o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, que Nísia tocou ao lado do vice-presidente Geraldo Alckmin. O projeto busca expandir a produção nacional de insumos, medicamentos e vacinas e reduzir a dependência de produtos estrangeiros, mas é uma iniciativa de longo prazo e não repercutiu junto ao público.

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Crise no Território Yanomami

Logo no início da gestão, houve a crise no território Yanomami. A longa interferência de não indígenas na região, relacionada ao garimpo ilegal, aumentou os índices de violência, degradação ambiental – impactando diretamente na alimentação – e doenças. Em janeiro de 2023, a situação veio à tona, escancarando para o mundo centenas de casos de desnutrição severa, falta de medicamentos e mortes por malária.

A tentativa de solucionar a crise foi uma das primeiras medidas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele decretou situação de emergência em saúde e mobilizou ministérios. Apesar disso, dados divulgados em janeiro de 2024 mostraram que o número de mortes no território havia aumentado.

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“Não havia informação e isso é quase um lugar-comum quando trabalhamos com doenças de populações pobres. No primeiro momento, quando se começa a trabalhar, os números estouram porque não existiam, eram absolutamente negligenciados. As pessoas não estavam sendo atendidas e, portanto, não havia informação sobre o que vinha acontecendo. Quando começa o trabalho, a primeira resposta aumenta os números”, diz Maierovitch.

Para Ana Maria, a atuação da pasta de Nísia na gestão da crise Yanomami e sua presença durante a tragédia no Rio Grande do Sul são dois pontos altos de sua passagem pelo cargo. “Ela conseguiu mostrar a cara do ministério nessas tragédias”, comenta. “Isso mostra para a população que ela não está órfã.”

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Cobertura vacinal

Os índices de vacinação vinham diminuindo desde 2016 e a queda se intensificou entre 2019 e 2022, quando Bolsonaro e aliados espalharam desinformação sobre vacinas, aumentando a desconfiança sobre os imunizantes. Ao assumir a pasta, Nísia emprestou ao governo a imagem de quem fora presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no momento mais grave da pandemia, e empenhou esforços para reverter esse quadro.

“Ela se tornou, de certa forma, um símbolo que se contrapôs à ausência de ação do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro”, avalia Maierovitch. “Ela representava um lado naquela discussão que contrapunha a ciência, o crédito na produção científica, às fake news”.

Em 2023, o Brasil saiu do ranking de 20 países com mais crianças não vacinadas, no qual ocupava o sétimo lugar em 2021. “A recuperação das coberturas vacinais é uma das maiores preocupações no campo da saúde coletiva e nós vimos, aos longo dos últimos dois anos, centenas de atividades de planejamento por município, por Estado”, diz Maierovitch. “Essa era a grande expectativa que tínhamos”.

Para Maierovitch, a retomada da vacinação e a incorporação de novos imunizantes — entre eles opções contra a dengue e o vírus sincicial respiratório (VSR), maior causa de hospitalizações em crianças de até 1 ano — serão legados da gestão de Nísia. “Daqui a 50 anos, vamos dizer: ‘A dengue cresceu, cresceu, o País gastou muito dinheiro para combater, então entrou a vacina, e acabou’”, projeta.

O infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), também não tem críticas ao trabalho da ministra na retomada das taxas de imunização, mas destaca duas limitações.

A primeira foi a falta de insumos estratégicos. Ocorreram faltas pontuais de vários tipos de vacina em pelo menos 11 Estados e no Distrito Federal. “Como que você está se comunicando mais efetivamente e prevendo um aumento da cobertura vacinal, mas não consegue fornecer os insumos necessários para isso?”, questiona.

A segunda, e mais grave para ele, é a ausência no País da vacina mais atualizada contra a covid-19. “Tem para (a subvariante) XBB, mas não tem para a JN.1 até hoje. Isso é um imbróglio muito difícil de explicar do ponto de vista técnico.”

Dengue

A dengue no Brasil segue um padrão cíclico, com epidemias a cada três a cinco anos, segundo a OMS. Em 2024, o País registrou a pior epidemia de sua história, com mais de 6,6 milhões de casos prováveis e 6,2 mil mortes. Neste ano, a circulação do sorotipo 3 pode levar a um novo cenário desafiador — já são 416 mil casos prováveis e 166 mortes registradas.

A gestão de Nísia ficará marcada por tornar o Brasil o primeiro País no mundo a integrar uma vacina contra a dengue ao sistema público de saúde. A pasta comprou todo o estoque oferecido pela Takeda, responsável pelo único imunizante aprovado pela Anvisa. Por restrições de produção da farmacêutica japonesa, a vacinação em massa não foi possível e a pasta precisou definir um grupo prioritário para proteger, que foram as crianças de 10 a 14 anos.

A ministra avisou que a vacinação em massa não seria possível tão cedo e frisou em todas as coletivas sobre o assunto que os efeitos positivos só seriam vistos em alguns anos. No entanto, a oposição usou o número reduzido de doses como munição contra Nísia.

Para Croda, na verdade, a grande falha no combate à epidemia de dengue foi a falta de coordenação nacional. “Em nenhum momento foi decretada emergência de saúde pública, e nós vivemos o pior cenário de dengue que o Brasil já viveu. A dengue matou mais do que qualquer outra doença infecciosa, inclusive tuberculose, que ficou em segundo lugar, e covid”. Os decretos de emergência ficaram a cargo de Estados e municípios.

Na avaliação dele, a falta de coordenação não impactou tanto o número de casos — o mundo inteiro enfrenta a dificuldade de controle de vetor —, mas levou a um número elevado de mortes. “A letalidade ficou em 0,09 e vai chegar a 0,1. É o dobro da letalidade ‘ideal’, de 0,05, que é o estipulado pela Organização Pan-Americana da Saúde. Ou seja, não tivemos uma organização adequada de serviço de saúde para atendimento da população e treinamento adequado dos profissionais de saúde”.

Filas do SUS

A retomada do Mais Médicos e da estratégia de Saúde da Família foi mencionada com bons olhos pelos especialistas.

“O Bolsonaro acabou com o Mais Médicos. Fez um ‘programinha’ (para substituir) que foi um desastre. O máximo que eles conseguiram fazer foi contratar três mil médicos. Com a entrada do Lula, hoje nós temos 25 mil médicos trabalhando no que é a nova versão do programa”, aponta o médico sanitarista Gonzalo Vecina, fundador e ex-presidente da Anvisa.

Ele estima que, atualmente, 60% da população têm acesso à estratégia de Saúde da Família e 40% não recebem as visitas das equipes. “Desses, um pouco mais da metade tem plano de saúde. Um pouco menos da metade não tem nada, precisamos chegar a eles”, defende.

Segundo Vecina, Nísia herdou uma “dívida” relacionada ao represamento de cirurgias na pandemia e à própria expansão dos atendimentos da atenção primária, que são as filas de exames e procedimentos de média e alta complexidade. “Fila para tudo quanto é lado, e nenhuma resolutividade”, fala. “Não existe lugar nenhum no Brasil em que isso tenha sido encaminhado de maneira minimamente aceitável. É uma dívida do SUS com a sociedade brasileira.”

A dívida, considerando que a gestão da saúde pública é tripartite, também recai sobre Estados e municípios.

Faltou, na visão dos entrevistados, que o programa Mais Especialistas decolasse e que a pasta tivesse avançado em apresentar uma nova forma de gerir as filas do SUS. Vecina menciona, por exemplo, foco em regiões de saúde e filas únicas, a exemplo do programa nacional de transplantes. Hoje, cada Estado e cidade tem sua própria fila e elas não se conversam.

Para o sanitarista, a pasta estava na direção certa para resolver esse problema, apesar de sua complexidade. “(Isso não se concretizou) 90% por de falta de tempo e 10% por falta de competência. Competência de conseguir convocar e gerenciar a pauta.”

Chegada de Alexandre Padilha

Lorena destaca que escolha de Alexandre Padilha, um nome forte dentro do Partido dos Trabalhadores, indica que o governo federal não prevê uma ruptura nas mudanças encabeçadas por Nísia. “Ele é uma pessoa com uma grande experiência política, com um jogo de cintura importante neste momento crítico do governo, e é alguém muito próximo ao presidente, com uma chance maior de ser ouvido, o que ajuda”, aponta.

Fernanda Magano, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), também não prevê alterações na linha traçada até aqui, de restabelecimento dos espaços de participação e controle social na saúde. Ela menciona que os fóruns foram fragilizados entre 2016 e 2022 e, sob a liderança de Nísia, o ministério deu condições para que voltassem a exercer seu papel.

Entre essas medidas, ela menciona a garantia de recursos para a 17ª Conferência Nacional de Saúde e a resolução nº 715/2023, que estimula a formação e atuação de conselhos municipais de saúde. Fernanda destaca ainda o trabalho para construir uma demografia dos profissionais de saúde e a discussão sobre uma política nacional para os trabalhadores da rede pública. “Esse cuidado foi desenhado e apresentado e vai gerar efeitos no médio, longo prazo”, diz.

“Ela cumpriu esses dois anos com muito esforço para superar a herança que recebeu”, avalia a presidente do CNS. “Ela cumpriu seu papel, mas tem toda a pressão do Congresso. A substituição vem na lógica de uma política macro, na mudança de poder na Câmara e no Senado e nas eleições de 2026.″

Nesse cenário, pondera Lorena, o desafio será Padilha administrar com um espaço de manobra limitado. “Por causa do estado do orçamento e dos cortes e ajustes que estamos vendo, não existe um espaço orçamentário muito grande para priorizar e pautar uma nova agenda na área de saúde.”

“Esse é o problema que estamos vendo”, diz Lorena. “Saímos de uma pandemia sem ter um fortalecimento da área de saúde e um investimento maior para cuidar de muitas coisas como teríamos gostado de ver.”

Nísia Trindade, demitida do Ministério da Saúde nesta terça-feira, 25, deixa um legado positivo, segundo especialistas. Entre os triunfos da agora ex-ministra estão o aumento da cobertura vacinal, a inclusão de novos imunizantes na rede pública, a reorganização da pasta e a retomada de programas como o Mais Médicos.

Para eles, Nísia não cometeu erros que justificassem sua saída e a demissão é uma questão política. Pesaram contra sua gestão a queda de popularidade do governo federal, a falta de articulação e a ausência de padrinhos políticos.

Nísia Trindade em seu último evento como ministra, quando anunciou 60 milhões de doses anuais da vacina contra dengue Foto: WILTON JUNIOR

“Um ministro de Estado precisa ter uma boa penetração e articulação no Congresso. Isso é fatal. Se o ministro não tem esse perfil, tem de ter um preposto que faça isso por ele”, avalia o médico Walter Cintra, professor de gestão em saúde da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Essa compreensão faltou ao Ministério da Saúde”, resume. Para ele, não adianta ser muito técnico e esquecer que a questão política é central, porque quem vai decidir os recursos da saúde, em última análise, são os políticos — ainda mais no modelo das emendas parlamentares.

O fato de ser a primeira mulher à frente da pasta também aumentou o teto de vidro. “Muita gente olha de forma preconceituosa, com misoginia e diz: ‘As mulheres são mais frágeis, não têm tanto poder de comando’”, critica o médico sanitarista Claudio Maierovitch Pessanha Henriques, ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Nísia já foi ‘acusada’ de ser ‘suave demais’. Ser gestor, ter poder e conseguir fazer isso sem gritar, ofender, menosprezar é uma grande qualidade”.

Embora enalteçam sua capacidade técnica e a equipe que reuniu, os especialistas apontam que a gestão não foi isenta de deslizes. Mencionam, por exemplo, a falta de coordenação nacional no combate à dengue e a dificuldade de lidar com a gestão de filas no Sistema Único de Saúde (SUS) no período à frente da pasta, o qual superou a média.

Desde a redemocratização, calcula a médica Ana Maria Malik, professora da FGV, os ocupantes do cargo duram, em média, 16 meses.

A professora Lorena Guadalupe Barberia, do departamento de Ciência Política da USP, refina o cálculo. Ela e colegas publicaram na revista científica Leadership in Health Services uma análise sobre a queda de ministros e secretários de Saúde no Brasil durante a pandemia. “Na média, ministros da Saúde ficam no cargo 500 dias. Ela ficou 786 dias. Considero uma vitória ela ter permanecido tanto tempo sabendo que, durante períodos de crise, há maior alternância.”

Reconstrução

É unânime entre os especialistas que Nísia reconstruiu um ministério desmontado após gestões “desastrosas” de seus antecessores nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. “Ela pegou um ministério destruído e está entregando para seu sucessor uma pasta com projetos bem encaminhados”, pondera Cintra.

“O que foi destruído nos seis anos de dois governos em que a saúde deixou de ser priorizada, Nísia reconstruiu em 25 meses. Isso não é pouco”, dizem a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) em nota de agradecimento.

Foi ela a responsável por retomar programas como o Mais Médicos, o Brasil Sorridente e a Farmácia Popular. Por outro lado, faltou à ministra uma marca própria. O mais próximo disso foi o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, que Nísia tocou ao lado do vice-presidente Geraldo Alckmin. O projeto busca expandir a produção nacional de insumos, medicamentos e vacinas e reduzir a dependência de produtos estrangeiros, mas é uma iniciativa de longo prazo e não repercutiu junto ao público.

Crise no Território Yanomami

Logo no início da gestão, houve a crise no território Yanomami. A longa interferência de não indígenas na região, relacionada ao garimpo ilegal, aumentou os índices de violência, degradação ambiental – impactando diretamente na alimentação – e doenças. Em janeiro de 2023, a situação veio à tona, escancarando para o mundo centenas de casos de desnutrição severa, falta de medicamentos e mortes por malária.

A tentativa de solucionar a crise foi uma das primeiras medidas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele decretou situação de emergência em saúde e mobilizou ministérios. Apesar disso, dados divulgados em janeiro de 2024 mostraram que o número de mortes no território havia aumentado.

“Não havia informação e isso é quase um lugar-comum quando trabalhamos com doenças de populações pobres. No primeiro momento, quando se começa a trabalhar, os números estouram porque não existiam, eram absolutamente negligenciados. As pessoas não estavam sendo atendidas e, portanto, não havia informação sobre o que vinha acontecendo. Quando começa o trabalho, a primeira resposta aumenta os números”, diz Maierovitch.

Para Ana Maria, a atuação da pasta de Nísia na gestão da crise Yanomami e sua presença durante a tragédia no Rio Grande do Sul são dois pontos altos de sua passagem pelo cargo. “Ela conseguiu mostrar a cara do ministério nessas tragédias”, comenta. “Isso mostra para a população que ela não está órfã.”

Cobertura vacinal

Os índices de vacinação vinham diminuindo desde 2016 e a queda se intensificou entre 2019 e 2022, quando Bolsonaro e aliados espalharam desinformação sobre vacinas, aumentando a desconfiança sobre os imunizantes. Ao assumir a pasta, Nísia emprestou ao governo a imagem de quem fora presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no momento mais grave da pandemia, e empenhou esforços para reverter esse quadro.

“Ela se tornou, de certa forma, um símbolo que se contrapôs à ausência de ação do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro”, avalia Maierovitch. “Ela representava um lado naquela discussão que contrapunha a ciência, o crédito na produção científica, às fake news”.

Em 2023, o Brasil saiu do ranking de 20 países com mais crianças não vacinadas, no qual ocupava o sétimo lugar em 2021. “A recuperação das coberturas vacinais é uma das maiores preocupações no campo da saúde coletiva e nós vimos, aos longo dos últimos dois anos, centenas de atividades de planejamento por município, por Estado”, diz Maierovitch. “Essa era a grande expectativa que tínhamos”.

Para Maierovitch, a retomada da vacinação e a incorporação de novos imunizantes — entre eles opções contra a dengue e o vírus sincicial respiratório (VSR), maior causa de hospitalizações em crianças de até 1 ano — serão legados da gestão de Nísia. “Daqui a 50 anos, vamos dizer: ‘A dengue cresceu, cresceu, o País gastou muito dinheiro para combater, então entrou a vacina, e acabou’”, projeta.

O infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), também não tem críticas ao trabalho da ministra na retomada das taxas de imunização, mas destaca duas limitações.

A primeira foi a falta de insumos estratégicos. Ocorreram faltas pontuais de vários tipos de vacina em pelo menos 11 Estados e no Distrito Federal. “Como que você está se comunicando mais efetivamente e prevendo um aumento da cobertura vacinal, mas não consegue fornecer os insumos necessários para isso?”, questiona.

A segunda, e mais grave para ele, é a ausência no País da vacina mais atualizada contra a covid-19. “Tem para (a subvariante) XBB, mas não tem para a JN.1 até hoje. Isso é um imbróglio muito difícil de explicar do ponto de vista técnico.”

Dengue

A dengue no Brasil segue um padrão cíclico, com epidemias a cada três a cinco anos, segundo a OMS. Em 2024, o País registrou a pior epidemia de sua história, com mais de 6,6 milhões de casos prováveis e 6,2 mil mortes. Neste ano, a circulação do sorotipo 3 pode levar a um novo cenário desafiador — já são 416 mil casos prováveis e 166 mortes registradas.

A gestão de Nísia ficará marcada por tornar o Brasil o primeiro País no mundo a integrar uma vacina contra a dengue ao sistema público de saúde. A pasta comprou todo o estoque oferecido pela Takeda, responsável pelo único imunizante aprovado pela Anvisa. Por restrições de produção da farmacêutica japonesa, a vacinação em massa não foi possível e a pasta precisou definir um grupo prioritário para proteger, que foram as crianças de 10 a 14 anos.

A ministra avisou que a vacinação em massa não seria possível tão cedo e frisou em todas as coletivas sobre o assunto que os efeitos positivos só seriam vistos em alguns anos. No entanto, a oposição usou o número reduzido de doses como munição contra Nísia.

Para Croda, na verdade, a grande falha no combate à epidemia de dengue foi a falta de coordenação nacional. “Em nenhum momento foi decretada emergência de saúde pública, e nós vivemos o pior cenário de dengue que o Brasil já viveu. A dengue matou mais do que qualquer outra doença infecciosa, inclusive tuberculose, que ficou em segundo lugar, e covid”. Os decretos de emergência ficaram a cargo de Estados e municípios.

Na avaliação dele, a falta de coordenação não impactou tanto o número de casos — o mundo inteiro enfrenta a dificuldade de controle de vetor —, mas levou a um número elevado de mortes. “A letalidade ficou em 0,09 e vai chegar a 0,1. É o dobro da letalidade ‘ideal’, de 0,05, que é o estipulado pela Organização Pan-Americana da Saúde. Ou seja, não tivemos uma organização adequada de serviço de saúde para atendimento da população e treinamento adequado dos profissionais de saúde”.

Filas do SUS

A retomada do Mais Médicos e da estratégia de Saúde da Família foi mencionada com bons olhos pelos especialistas.

“O Bolsonaro acabou com o Mais Médicos. Fez um ‘programinha’ (para substituir) que foi um desastre. O máximo que eles conseguiram fazer foi contratar três mil médicos. Com a entrada do Lula, hoje nós temos 25 mil médicos trabalhando no que é a nova versão do programa”, aponta o médico sanitarista Gonzalo Vecina, fundador e ex-presidente da Anvisa.

Ele estima que, atualmente, 60% da população têm acesso à estratégia de Saúde da Família e 40% não recebem as visitas das equipes. “Desses, um pouco mais da metade tem plano de saúde. Um pouco menos da metade não tem nada, precisamos chegar a eles”, defende.

Segundo Vecina, Nísia herdou uma “dívida” relacionada ao represamento de cirurgias na pandemia e à própria expansão dos atendimentos da atenção primária, que são as filas de exames e procedimentos de média e alta complexidade. “Fila para tudo quanto é lado, e nenhuma resolutividade”, fala. “Não existe lugar nenhum no Brasil em que isso tenha sido encaminhado de maneira minimamente aceitável. É uma dívida do SUS com a sociedade brasileira.”

A dívida, considerando que a gestão da saúde pública é tripartite, também recai sobre Estados e municípios.

Faltou, na visão dos entrevistados, que o programa Mais Especialistas decolasse e que a pasta tivesse avançado em apresentar uma nova forma de gerir as filas do SUS. Vecina menciona, por exemplo, foco em regiões de saúde e filas únicas, a exemplo do programa nacional de transplantes. Hoje, cada Estado e cidade tem sua própria fila e elas não se conversam.

Para o sanitarista, a pasta estava na direção certa para resolver esse problema, apesar de sua complexidade. “(Isso não se concretizou) 90% por de falta de tempo e 10% por falta de competência. Competência de conseguir convocar e gerenciar a pauta.”

Chegada de Alexandre Padilha

Lorena destaca que escolha de Alexandre Padilha, um nome forte dentro do Partido dos Trabalhadores, indica que o governo federal não prevê uma ruptura nas mudanças encabeçadas por Nísia. “Ele é uma pessoa com uma grande experiência política, com um jogo de cintura importante neste momento crítico do governo, e é alguém muito próximo ao presidente, com uma chance maior de ser ouvido, o que ajuda”, aponta.

Fernanda Magano, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), também não prevê alterações na linha traçada até aqui, de restabelecimento dos espaços de participação e controle social na saúde. Ela menciona que os fóruns foram fragilizados entre 2016 e 2022 e, sob a liderança de Nísia, o ministério deu condições para que voltassem a exercer seu papel.

Entre essas medidas, ela menciona a garantia de recursos para a 17ª Conferência Nacional de Saúde e a resolução nº 715/2023, que estimula a formação e atuação de conselhos municipais de saúde. Fernanda destaca ainda o trabalho para construir uma demografia dos profissionais de saúde e a discussão sobre uma política nacional para os trabalhadores da rede pública. “Esse cuidado foi desenhado e apresentado e vai gerar efeitos no médio, longo prazo”, diz.

“Ela cumpriu esses dois anos com muito esforço para superar a herança que recebeu”, avalia a presidente do CNS. “Ela cumpriu seu papel, mas tem toda a pressão do Congresso. A substituição vem na lógica de uma política macro, na mudança de poder na Câmara e no Senado e nas eleições de 2026.″

Nesse cenário, pondera Lorena, o desafio será Padilha administrar com um espaço de manobra limitado. “Por causa do estado do orçamento e dos cortes e ajustes que estamos vendo, não existe um espaço orçamentário muito grande para priorizar e pautar uma nova agenda na área de saúde.”

“Esse é o problema que estamos vendo”, diz Lorena. “Saímos de uma pandemia sem ter um fortalecimento da área de saúde e um investimento maior para cuidar de muitas coisas como teríamos gostado de ver.”

Nísia Trindade, demitida do Ministério da Saúde nesta terça-feira, 25, deixa um legado positivo, segundo especialistas. Entre os triunfos da agora ex-ministra estão o aumento da cobertura vacinal, a inclusão de novos imunizantes na rede pública, a reorganização da pasta e a retomada de programas como o Mais Médicos.

Para eles, Nísia não cometeu erros que justificassem sua saída e a demissão é uma questão política. Pesaram contra sua gestão a queda de popularidade do governo federal, a falta de articulação e a ausência de padrinhos políticos.

Nísia Trindade em seu último evento como ministra, quando anunciou 60 milhões de doses anuais da vacina contra dengue Foto: WILTON JUNIOR

“Um ministro de Estado precisa ter uma boa penetração e articulação no Congresso. Isso é fatal. Se o ministro não tem esse perfil, tem de ter um preposto que faça isso por ele”, avalia o médico Walter Cintra, professor de gestão em saúde da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Essa compreensão faltou ao Ministério da Saúde”, resume. Para ele, não adianta ser muito técnico e esquecer que a questão política é central, porque quem vai decidir os recursos da saúde, em última análise, são os políticos — ainda mais no modelo das emendas parlamentares.

O fato de ser a primeira mulher à frente da pasta também aumentou o teto de vidro. “Muita gente olha de forma preconceituosa, com misoginia e diz: ‘As mulheres são mais frágeis, não têm tanto poder de comando’”, critica o médico sanitarista Claudio Maierovitch Pessanha Henriques, ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Nísia já foi ‘acusada’ de ser ‘suave demais’. Ser gestor, ter poder e conseguir fazer isso sem gritar, ofender, menosprezar é uma grande qualidade”.

Embora enalteçam sua capacidade técnica e a equipe que reuniu, os especialistas apontam que a gestão não foi isenta de deslizes. Mencionam, por exemplo, a falta de coordenação nacional no combate à dengue e a dificuldade de lidar com a gestão de filas no Sistema Único de Saúde (SUS) no período à frente da pasta, o qual superou a média.

Desde a redemocratização, calcula a médica Ana Maria Malik, professora da FGV, os ocupantes do cargo duram, em média, 16 meses.

A professora Lorena Guadalupe Barberia, do departamento de Ciência Política da USP, refina o cálculo. Ela e colegas publicaram na revista científica Leadership in Health Services uma análise sobre a queda de ministros e secretários de Saúde no Brasil durante a pandemia. “Na média, ministros da Saúde ficam no cargo 500 dias. Ela ficou 786 dias. Considero uma vitória ela ter permanecido tanto tempo sabendo que, durante períodos de crise, há maior alternância.”

Reconstrução

É unânime entre os especialistas que Nísia reconstruiu um ministério desmontado após gestões “desastrosas” de seus antecessores nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. “Ela pegou um ministério destruído e está entregando para seu sucessor uma pasta com projetos bem encaminhados”, pondera Cintra.

“O que foi destruído nos seis anos de dois governos em que a saúde deixou de ser priorizada, Nísia reconstruiu em 25 meses. Isso não é pouco”, dizem a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) em nota de agradecimento.

Foi ela a responsável por retomar programas como o Mais Médicos, o Brasil Sorridente e a Farmácia Popular. Por outro lado, faltou à ministra uma marca própria. O mais próximo disso foi o Complexo Econômico-Industrial da Saúde, que Nísia tocou ao lado do vice-presidente Geraldo Alckmin. O projeto busca expandir a produção nacional de insumos, medicamentos e vacinas e reduzir a dependência de produtos estrangeiros, mas é uma iniciativa de longo prazo e não repercutiu junto ao público.

Crise no Território Yanomami

Logo no início da gestão, houve a crise no território Yanomami. A longa interferência de não indígenas na região, relacionada ao garimpo ilegal, aumentou os índices de violência, degradação ambiental – impactando diretamente na alimentação – e doenças. Em janeiro de 2023, a situação veio à tona, escancarando para o mundo centenas de casos de desnutrição severa, falta de medicamentos e mortes por malária.

A tentativa de solucionar a crise foi uma das primeiras medidas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ele decretou situação de emergência em saúde e mobilizou ministérios. Apesar disso, dados divulgados em janeiro de 2024 mostraram que o número de mortes no território havia aumentado.

“Não havia informação e isso é quase um lugar-comum quando trabalhamos com doenças de populações pobres. No primeiro momento, quando se começa a trabalhar, os números estouram porque não existiam, eram absolutamente negligenciados. As pessoas não estavam sendo atendidas e, portanto, não havia informação sobre o que vinha acontecendo. Quando começa o trabalho, a primeira resposta aumenta os números”, diz Maierovitch.

Para Ana Maria, a atuação da pasta de Nísia na gestão da crise Yanomami e sua presença durante a tragédia no Rio Grande do Sul são dois pontos altos de sua passagem pelo cargo. “Ela conseguiu mostrar a cara do ministério nessas tragédias”, comenta. “Isso mostra para a população que ela não está órfã.”

Cobertura vacinal

Os índices de vacinação vinham diminuindo desde 2016 e a queda se intensificou entre 2019 e 2022, quando Bolsonaro e aliados espalharam desinformação sobre vacinas, aumentando a desconfiança sobre os imunizantes. Ao assumir a pasta, Nísia emprestou ao governo a imagem de quem fora presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no momento mais grave da pandemia, e empenhou esforços para reverter esse quadro.

“Ela se tornou, de certa forma, um símbolo que se contrapôs à ausência de ação do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro”, avalia Maierovitch. “Ela representava um lado naquela discussão que contrapunha a ciência, o crédito na produção científica, às fake news”.

Em 2023, o Brasil saiu do ranking de 20 países com mais crianças não vacinadas, no qual ocupava o sétimo lugar em 2021. “A recuperação das coberturas vacinais é uma das maiores preocupações no campo da saúde coletiva e nós vimos, aos longo dos últimos dois anos, centenas de atividades de planejamento por município, por Estado”, diz Maierovitch. “Essa era a grande expectativa que tínhamos”.

Para Maierovitch, a retomada da vacinação e a incorporação de novos imunizantes — entre eles opções contra a dengue e o vírus sincicial respiratório (VSR), maior causa de hospitalizações em crianças de até 1 ano — serão legados da gestão de Nísia. “Daqui a 50 anos, vamos dizer: ‘A dengue cresceu, cresceu, o País gastou muito dinheiro para combater, então entrou a vacina, e acabou’”, projeta.

O infectologista Julio Croda, pesquisador da Fiocruz e professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), também não tem críticas ao trabalho da ministra na retomada das taxas de imunização, mas destaca duas limitações.

A primeira foi a falta de insumos estratégicos. Ocorreram faltas pontuais de vários tipos de vacina em pelo menos 11 Estados e no Distrito Federal. “Como que você está se comunicando mais efetivamente e prevendo um aumento da cobertura vacinal, mas não consegue fornecer os insumos necessários para isso?”, questiona.

A segunda, e mais grave para ele, é a ausência no País da vacina mais atualizada contra a covid-19. “Tem para (a subvariante) XBB, mas não tem para a JN.1 até hoje. Isso é um imbróglio muito difícil de explicar do ponto de vista técnico.”

Dengue

A dengue no Brasil segue um padrão cíclico, com epidemias a cada três a cinco anos, segundo a OMS. Em 2024, o País registrou a pior epidemia de sua história, com mais de 6,6 milhões de casos prováveis e 6,2 mil mortes. Neste ano, a circulação do sorotipo 3 pode levar a um novo cenário desafiador — já são 416 mil casos prováveis e 166 mortes registradas.

A gestão de Nísia ficará marcada por tornar o Brasil o primeiro País no mundo a integrar uma vacina contra a dengue ao sistema público de saúde. A pasta comprou todo o estoque oferecido pela Takeda, responsável pelo único imunizante aprovado pela Anvisa. Por restrições de produção da farmacêutica japonesa, a vacinação em massa não foi possível e a pasta precisou definir um grupo prioritário para proteger, que foram as crianças de 10 a 14 anos.

A ministra avisou que a vacinação em massa não seria possível tão cedo e frisou em todas as coletivas sobre o assunto que os efeitos positivos só seriam vistos em alguns anos. No entanto, a oposição usou o número reduzido de doses como munição contra Nísia.

Para Croda, na verdade, a grande falha no combate à epidemia de dengue foi a falta de coordenação nacional. “Em nenhum momento foi decretada emergência de saúde pública, e nós vivemos o pior cenário de dengue que o Brasil já viveu. A dengue matou mais do que qualquer outra doença infecciosa, inclusive tuberculose, que ficou em segundo lugar, e covid”. Os decretos de emergência ficaram a cargo de Estados e municípios.

Na avaliação dele, a falta de coordenação não impactou tanto o número de casos — o mundo inteiro enfrenta a dificuldade de controle de vetor —, mas levou a um número elevado de mortes. “A letalidade ficou em 0,09 e vai chegar a 0,1. É o dobro da letalidade ‘ideal’, de 0,05, que é o estipulado pela Organização Pan-Americana da Saúde. Ou seja, não tivemos uma organização adequada de serviço de saúde para atendimento da população e treinamento adequado dos profissionais de saúde”.

Filas do SUS

A retomada do Mais Médicos e da estratégia de Saúde da Família foi mencionada com bons olhos pelos especialistas.

“O Bolsonaro acabou com o Mais Médicos. Fez um ‘programinha’ (para substituir) que foi um desastre. O máximo que eles conseguiram fazer foi contratar três mil médicos. Com a entrada do Lula, hoje nós temos 25 mil médicos trabalhando no que é a nova versão do programa”, aponta o médico sanitarista Gonzalo Vecina, fundador e ex-presidente da Anvisa.

Ele estima que, atualmente, 60% da população têm acesso à estratégia de Saúde da Família e 40% não recebem as visitas das equipes. “Desses, um pouco mais da metade tem plano de saúde. Um pouco menos da metade não tem nada, precisamos chegar a eles”, defende.

Segundo Vecina, Nísia herdou uma “dívida” relacionada ao represamento de cirurgias na pandemia e à própria expansão dos atendimentos da atenção primária, que são as filas de exames e procedimentos de média e alta complexidade. “Fila para tudo quanto é lado, e nenhuma resolutividade”, fala. “Não existe lugar nenhum no Brasil em que isso tenha sido encaminhado de maneira minimamente aceitável. É uma dívida do SUS com a sociedade brasileira.”

A dívida, considerando que a gestão da saúde pública é tripartite, também recai sobre Estados e municípios.

Faltou, na visão dos entrevistados, que o programa Mais Especialistas decolasse e que a pasta tivesse avançado em apresentar uma nova forma de gerir as filas do SUS. Vecina menciona, por exemplo, foco em regiões de saúde e filas únicas, a exemplo do programa nacional de transplantes. Hoje, cada Estado e cidade tem sua própria fila e elas não se conversam.

Para o sanitarista, a pasta estava na direção certa para resolver esse problema, apesar de sua complexidade. “(Isso não se concretizou) 90% por de falta de tempo e 10% por falta de competência. Competência de conseguir convocar e gerenciar a pauta.”

Chegada de Alexandre Padilha

Lorena destaca que escolha de Alexandre Padilha, um nome forte dentro do Partido dos Trabalhadores, indica que o governo federal não prevê uma ruptura nas mudanças encabeçadas por Nísia. “Ele é uma pessoa com uma grande experiência política, com um jogo de cintura importante neste momento crítico do governo, e é alguém muito próximo ao presidente, com uma chance maior de ser ouvido, o que ajuda”, aponta.

Fernanda Magano, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), também não prevê alterações na linha traçada até aqui, de restabelecimento dos espaços de participação e controle social na saúde. Ela menciona que os fóruns foram fragilizados entre 2016 e 2022 e, sob a liderança de Nísia, o ministério deu condições para que voltassem a exercer seu papel.

Entre essas medidas, ela menciona a garantia de recursos para a 17ª Conferência Nacional de Saúde e a resolução nº 715/2023, que estimula a formação e atuação de conselhos municipais de saúde. Fernanda destaca ainda o trabalho para construir uma demografia dos profissionais de saúde e a discussão sobre uma política nacional para os trabalhadores da rede pública. “Esse cuidado foi desenhado e apresentado e vai gerar efeitos no médio, longo prazo”, diz.

“Ela cumpriu esses dois anos com muito esforço para superar a herança que recebeu”, avalia a presidente do CNS. “Ela cumpriu seu papel, mas tem toda a pressão do Congresso. A substituição vem na lógica de uma política macro, na mudança de poder na Câmara e no Senado e nas eleições de 2026.″

Nesse cenário, pondera Lorena, o desafio será Padilha administrar com um espaço de manobra limitado. “Por causa do estado do orçamento e dos cortes e ajustes que estamos vendo, não existe um espaço orçamentário muito grande para priorizar e pautar uma nova agenda na área de saúde.”

“Esse é o problema que estamos vendo”, diz Lorena. “Saímos de uma pandemia sem ter um fortalecimento da área de saúde e um investimento maior para cuidar de muitas coisas como teríamos gostado de ver.”