Após curto período em queda, o índice de cesáreas voltou a crescer no País e bateu recorde em 2020, quando 57,2% dos nascimentos ocorreram por esse tipo de parto – a maior taxa da história, segundo análise feita pelo Estadão com base nos dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), do Ministério da Saúde.
O recorde anterior havia sido registrado em 2014, quando a taxa foi de 57%. No ano seguinte, com o crescente movimento pelo parto humanizado, o País apresentou pela primeira vez em décadas um aumento do índice de partos normais. Com isso, o porcentual de cesáreas caiu para 55,5% em 2015.
Em 2016, manteve-se o cenário de queda, mas, em 2017, a tendência mudou novamente e a taxa de cesáreas voltou a crescer ano após ano, culminando no recorde de 2020 e na manutenção da taxa na casa dos 57% em 2021, último dado disponível (veja gráfico). Os dados preliminares de 2022, atualizados em outubro, mostram taxa de 57,6%, o que pode levar a novo recorde se o índice se confirmar.
Embora a cesariana seja uma técnica importante para salvar a gestante e o feto em algumas circunstâncias, seu uso indiscriminado e sem indicação clínica é considerado um problema de saúde pública por aumentar os riscos de complicações para a mulher e o bebê. “Há maior risco de hemorragia e infecção, além de complicações relacionadas à placenta”, diz a obstetra Adriana Gomes Luz, secretária da Comissão Nacional Especializada em Assistência Pré-Natal da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e professora assistente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
As cesáreas feitas sem indicação também aumentam o risco de o bebê nascer antes de completar seu desenvolvimento dentro do útero da mãe. A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que a taxa adequada de nascimentos via cesariana seja de 10% a 15%.
Conforme a Organização Panamericana de Saúde (Opas), o Brasil é um dos cinco países do mundo nos quais o índice de cesarianas supera o de partos vaginais – estão nessa situação também Egito, Chipre, Turquia e República Dominicana. Com a taxa recorde registrada em 2020, o Brasil se aproxima dos 58,1% alcançados pelo país caribenho, o líder mundial de cesáreas.
Pandemia impactou assistência à gestante, dizem especialistas
Para especialistas, os reflexos da pandemia em todo o sistema de saúde justificam, em partes, o índice recorde de cesarianas no Brasil, mas a falta de ações e de campanhas mais incisivas também ajudou a frear o avanço que começava a ser observado em 2015 na valorização do parto vaginal.
“Na pandemia, muitas maternidades restringiram o acesso de acompanhantes, que são importantes no momento do trabalho de parto. Isso gerou insegurança entre as gestantes, elas queriam sair daquele ambiente o mais rápido possível. A gente viu aumentar o número de pedidos por cesárea”, diz Adriana.
Ela afirma que a própria situação de emergência sanitária, com direcionamento de esforços para o atendimento de pacientes com coronavírus, também impactou os serviços de saúde materno-infantis. “Houve desorganização do sistema de saúde como um todo porque era preciso desviar o foco para a covid-19. Algumas salas de parto normal foram transformadas em áreas covid”, afirma ela.
Para Rômulo Negrini, coordenador médico da maternidade do Hospital Israelita Albert Einstein, o impacto da pandemia foi sentido desde o pré-natal, o que também pesa na escolha do parto. “Muitas mulheres perderam consultas de pré-natal por causa da pandemia. E é nessa caminhada que o parto vai sendo discutido entre a equipe e a gestante”, afirma. Ele diz ainda que, como algumas gestantes foram infectadas pelo coronavírus e tiveram complicações, pode ter havido aumento da necessidade de cesarianas.
Alguns projetos específicos para a valorização e capacitação do parto normal também tiveram de ser suspensos por causa da covid. “No projeto Parto Adequado (iniciativa da Agência Nacional de Saúde Suplementar em parceria com o Einstein para dar orientação para hospitais e operadoras do País sobre parto), havia sessões presenciais de aprendizado para profissionais de saúde e elas tiveram de ser suspensas. Pessoas que trabalhavam ativamente em ações do parto normal foram deslocadas para ajudar no combate à pandemia”, diz Negrini.
Além dos impactos da pandemia, Adriana acredita que o tema precisa ser alvo de mais políticas e campanhas para que a redução de cesáreas desnecessárias seja consistente. “Quando colocamos esse assunto para discussão e conseguimos, de forma adequada, mostrar os prós e contras da cesariana, com pessoas famosas e influenciadores abraçando a causa, a população olha e reflete”, diz a obstetra.
Para ela, uma das ações mais importantes é o letramento da paciente sobre os tipos de parto e seus direitos. “Temos de empoderar a mulher para ela não aceitar passivamente a cesárea quando não há uma indicação clara. E também desfazer mitos, como a questão da dor no parto normal. Hoje temos técnicas farmacológicas e não farmacológicas para aliviar o desconforto”, diz a médica.