A tecnologia que propiciou o desenvolvimento de vacinas altamente eficazes contra a covid-19 em tempo recorde foi uma novidade para a maioria de nós, leigos, mas fez parte de décadas da vida da bioquímica húngara Katalin Karikó. A cientista - que ganhou o Prêmio de Nobel de Medicina junto do imunologista americano Drew Weissman - foi, por anos, alvo de descrédito daqueles que achavam que a técnica pesquisada por ela não tinha futuro.
Estudiosa do chamado RNA mensageiro (mRNA), plataforma utilizada nas vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna, Katalin, hoje com 68 anos, passou a maior parte da sua carreira recebendo recusas de financiamento para os seus projetos.
O mRNA é um material genético sintetizado em laboratório que tem a função de “levar instruções” para as células agirem. No caso da vacina contra a covid-19, ele induz as células a produzirem uma proteína do vírus que será reconhecida pelo sistema imunológico como uma ameaça, o que levará à produção de anticorpos.
“Por meio das suas descobertas inovadoras, que mudaram fundamentalmente a nossa compreensão de como o mRNA interage com o nosso sistema imunitário, os formandos contribuíram para a taxa sem precedentes de desenvolvimento de vacinas durante uma das maiores ameaças à saúde humana nos tempos modernos”, disse o painel que deu o Nobel à dupla, que se conheceu na Universidade da Pensilvânia (EUA).
A descoberta do mRNA, na década de 60, foi recebida com entusiasmo pela comunidade científica, mas sua possível aplicação em pesquisas com humanos foi perdendo força por dois problemas: sua instabilidade e toxicidade, como explica Luís Carlos de Souza Ferreira, responsável pelo laboratório de desenvolvimento de vacinas do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
“É um material que se degrada muito fácil e é muito reativo, gera uma reação inflamatória exagerada. Naquela época, você aplicava em animais e eles morriam, então era arriscado testar em humanos”, explica o pesquisador.
Apesar dos desafios no uso da tecnologia, Katalin decidiu migrar da Hungria para os Estados Unidos em 1985 na esperança de encontrar um ambiente científico mais propício a seus estudos inovadores. A descrença, no entanto, se repetiu. Sem recursos para suas pesquisas, ela foi ameaçada de deportação por desentendimentos com um dos seus chefes, na Universidade Temple, na Filadélfia.
Em seguida, foi trabalhar na Universidade da Pensilvânia, mas sua insistência em um tema de pesquisa considerado fracassado fez com que ela fosse rebaixada de cargo em 1995.
“Geralmente, nesse ponto, as pessoas simplesmente dizem tchau e vão embora, porque é muito horrível”, disse ela ao site Stat News, em 2020. “Eu ganhava menos que o técnico do laboratório”, contou Katalin, que na época já era pós-doutora.
Mas a cientista não desistiu. Estava empenhada em descobrir uma forma de driblar os problemas de instabilidade e toxicidade do RNA mensageiro e tornar seu uso viável em humanos.
Nos anos 2000, conseguiu se associar a Weissman, que já era um renomado imunologista. Juntos, eles descobriram qual nucleotídeo (conjunto de moléculas do RNA) provocava a reação inflamatória exagerada e o substituíram por uma molécula sintética sem o mesmo potencial tóxico.
Nos testes em animais, não houve reação inflamatória significativa, o que indicava que eles finalmente haviam descoberto uma forma de usar todo o potencial do mRNA sem causar dano. A instabilidade do RNA foi solucionada com o encapsulamento do material em uma camada de lipídios (células de gordura).
Os achados foram publicados em revistas científicas a partir de 2005, mas demorou até que outros pesquisadores dessem a devida atenção ao tema.
Nova fase
Somente a partir de 2010, duas biotechs fundadas por acadêmicos, uma na Alemanha e outra nos EUA, decidiram apostar na ideia. Seus nomes? BioNTech e Moderna, justamente as primeiras empresas a apresentarem resultados extraordinários de eficácia de uma vacina contra a covid-19 (95% e 94%, respectivamente).
Em 2013, Katalin, perto dos 60 anos, foi convidada a trabalhar na BioNTech, que testava a tecnologia de RNA em tratamentos contra o câncer.
Com a chegada da pandemia, a húngara, já no cargo de vice-presidente da empresa, participou do desenvolvimento da vacina feita em parceria com a Pfizer. Não havia nenhum imunizante registrado no mundo usando a tecnologia do RNA.
Katalin Karikó, CIENTISTA DA BIONTECH AO SITE ‘STAT NEWS’
Redenção
Os resultados de eficácia acima de 90%, anunciados em novembro de 2020, surpreenderam até mesmo cientistas envolvidos no projeto. “Foi uma surpresa para todo mundo. A gente esperava uma vacina de 60% a 70% de eficácia, o que já é um índice excelente, mas ter mais de 90% foi muito gratificante e que, até anos atrás, seria impossíveis se não fossem esses estudos de biologia molecular”, comentou em 2020 Cristiano Zerbini, diretor do Centro Paulista de Investigação Clínica e pesquisador principal do estudo da vacina da Pfizer/BioNTech em SP.
Para Jorge Kalil, professor titular da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), a história das vacinas de RNA demonstram a importância do investimento em ciência básica.
“As pesquisas de Katalin e de outros colegas, que avançaram no conhecimento do RNA mensageiro, foram fundamentais para que conseguíssemos chegar tão rápido a uma vacina eficaz. É comum que temas disruptivos gerem desconfiança da comunidade científica porque vão contra os conhecimentos que existem na época. Como aconteceu com ela, acontece com muitos cientistas. É preciso ser perseverante”, diz.
Ela é 13ª mulher a ganhar o prêmio
Em mais de um século de premiação, só 12 mulheres foram agraciadas com o Nobel de Medicina antes de Katalin Karikó. A primeira delas foi apenas em 1947, a americana Gerty Cori, que dividiu a honraria com dois homens. Um deles era seu marido, Carl Ferdinand Cori, com quem desenvolveu pesquisas essenciais para a melhor compreensão da diabetes.
A única mulher a conquistar a láurea sem compartilhá-la com outros cientistas nesta categoria foi Barbara McClintock, em 1983, por suas descobertas sobre os chamados “genes saltadores”, que transitam no genoma e são capazes de se mover e se replicar em segmentos do DNA.
Próximos passos
Katalin segue na missão de ampliar o uso da tecnologia. “Estou esperançosa de que, agora, que há tanto interesse e entusiasmo por esta pesquisa, será possível desenvolver e testar esta tecnologia para prevenção e tratamento de outras doenças”, declarou ao site da Universidade da Pensilvânia em 2020. A expectativa é de que, no futuro, a vacina sirva para outras doenças, como vários tipos de câncer.
“Sou mais uma cientista básica, mas sempre quis fazer algo para ajudar os pacientes”, disse à época. Depois de tanta espera, Katalin finalmente conseguiu.