Um dos estudos que vinha sendo conduzido com a cloroquina em Manaus – que foi modificado após observação de aumento de risco de complicações cardíacas – virou alvo em redes bolsonaristas, com os cientistas sendo chamados de irresponsáveis e acusados de usarem “cobaias humanas”.
O CloroCovid-19, com 70 pesquisadores de instituições renomadas como Fiocruz, Universidade do Estado do Amazonas e da USP, havia sido autorizado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Consistia em testar, em pacientes com suspeita de covid-19 com quadro de síndrome aguda respiratória grave (SRAG), duas duas dosagens de cloroquina: uma baixa e uma mais alta. A dose baixa é a mesma que havia sido recomendada pelo Ministério da Saúde para casos graves e a alta foi a que havia sido usada em pacientes chineses.
Inicialmente, o estudo previu a inclusão de 440 pacientes hospitalizados já em estado grave, no Hospital Delphina Aziz, referência para covid-19 no Amazonas. Os testes começaram no dia 23 de março. Com alguns dias de trabalho, foi registrada a morte de 11 pacientes dos dois grupos, mas notou-se mais efeitos colaterais no grupo com a dose alta e ela foi suspensa. Todos os pacientes começaram a usar a dose mais baixa a partir do dia 6 de abril, segundo explicou em nota o infectologista Marcus Lacerda, da Fiocruz, líder do estudo.
"A primeira conclusão foi que pacientes graves com covid-19 não deveriam mais usar a dose recomendada no consenso chinês, fato que até o momento não se tinha qualquer evidência, uma vez que nenhum estudo realizou adequadamente a avaliação de segurança, como eletrocardiogramas diários, como feito em Manaus, sob assessoria de cardiologistas experientes e renomados. Dose altas parecem ser seguras em pacientes com câncer, mas não em pacientes graves com covid-19, em especial os mais idosos. Uma possível explicação levantada no artigo é a ocorrência de miocardite, ou seja, inflamação do músculo cardíaco", escreveu Lacerda.
"O estudo não permite em absoluto concluir que a cloroquina em doses baixas funciona ou não para covid-19, porque não tem o grupo comparador de controle, ou seja, sem usar a medicação. Outros estudos para responder a essa questão, estão sendo realizados nesse momento, em outras partes do planeta", continuou.
Os pesquisadores comunicaram à Conep e o resultado veio à tona, justamente por ter trazido um primeiro resultado negativo para o uso da cloroquina. Uma reportagem grande sobre o assunto saiu no New York Times, chamando a atenção para os potenciais riscos com base nos resultados preliminares do trabalho e a pesquisa caiu nas redes sociais. Postagens indicavam que todas as mortes teriam ocorrido por causa do uso da dose mais alta. Uma mensagem inicial, que viralizou, dizia que o estudo era irresponsável e que os pesquisadores tinham usado os pacientes como "cobaias humanas".
"Algo absolutamente incorreto", disse Lacerda, "já que todos os requisitos éticos e legais foram rigorosamente seguidos". Ele explicou que todo o procedimento foi aprovado pelos comitês de ética e, dos 11 mortos, havia pessoas dos dois grupos: dose baixa e o de alta. "A interpretação equivocada do ativista e seus seguidores foi de que todas as mortes ocorridas no estudo se deveram ao uso das altas doses, sendo que nem todos os pacientes usaram a alta dose e todos eles tinham covid-19 muito grave, vindo a falecer por conta da doença, o que ocorreu dentro da média mundial."
Lacerda relatou ainda que as reações escalaram para o nível de agressão. "Uma onda de reações de natureza ideológica, de pessoas que nunca leram o estudo na íntegra, sem qualquer formação científica, motivou manifestações violentas de cunho pessoal ao pesquisador principal, sua família e sua equipe, o que tem desviado a atenção e o foco do trabalho realizado aqui durante a pandemia", escreveu.
"Pacientes e seus familiares estão com medo do que pode ter acontecido na pesquisa, apesar da equipe estar em constante contato com todos os participantes e seus familiares, com o objetivo de orientar e confortar pessoas que já passaram por imenso trauma", disse. "O debate não apenas está tendo forte viés ideológico, mas também prejudicando a reputação de pesquisadores com forte tradição de pesquisa no Brasil e no mundo, o que pode ser um efeito deletério grave em momentos como o que estamos vivendo."
Nota de apoio da Fiocruz
Em apoio aos pesquisadores de Manaus, o Conselho Deliberativo da Fiocruz divulgou uma nota dizendo que "considera inaceitáveis os ataques que alguns de seus pesquisadores vem sofrendo nas redes sociais".
Estudos como esse, diz a instituição, "são parte do esforço da ciência na busca por medicamentos e terapêuticas que possam contribuir para superar as incertezas da pandemia de covid-19". O conselho informou que a pesquisa CloroCovid-19 permanece em andamento, com aprovação da Conep.
"A Fiocruz tem trabalhado incansavelmente em diversas frentes de atuação e vem a público clamar pela tranquilidade e segurança de seus pesquisadores, requisitos essenciais para o desenvolvimento de seus estudos. É fundamental alertar que a busca por soluções não pode prescindir do rigor científico e do tempo exigido para obtenção de resultados seguros e que as pesquisas devem se manter, portanto, fora do campo narrativo que constrói esperanças em cima de respostas rápidas e ainda inconclusivas", afirma na nota.
"A Fundação apoia incondicionalmente seu corpo de pesquisadores, que estão absolutamente comprometidos com a ciência e com a busca de soluções para o enfrentamento dessa pandemia, e reafirma seu compromisso com a missão de produzir, disseminar e compartilhar conhecimentos e tecnologias voltados para o fortalecimento e a consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS) e para a promoção da saúde e da qualidade de vida da população brasileira."