Plano de saúde: fazer botox e pedir nota de consulta sai do bolso de todos, diz diretora de entidade


Em entrevista ao ‘Estadão’ sobre cenário da saúde suplementar, Vera Valente comenta sobre fraudes e fala ainda do impacto da incorporação de medicamentos caros sobre finanças do setor e das mudanças necessárias para que convênios não fiquem impagáveis

Por Fabiana Cambricoli
Atualização:
Foto: TABA BENEDICTO
Entrevista comVera ValenteDiretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde)

Na ofensiva dos planos de saúde contra fraudes, um dos grandes objetivos da advogada Vera Valente, diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde), principal associação do setor, é mostrar como os gastos indevidos com práticas fraudulentas acabam onerando não só o caixa das empresas, mas, principalmente, o bolso dos beneficiários.

“Se você está fazendo um botox de R$ 2 mil e pegando nota fiscal de consulta, alguém também pode estar usando esse mesmo sistema que você paga para pedir um reembolso de R$ 200 mil. No final, todo mundo se prejudica porque, no mutualismo, vai sair do bolso de todo mundo quando vier um reajuste”, disse ela, em entrevista exclusiva ao Estadão, sobre o cenário do setor em meio à crise financeira.

Como mostrou o Estadão, o número de notícias-crime e ações cíveis movidas pelas operadoras para a denúncia de fraudes subiu 884% entre 2018 a 2022, passando de 75 para 738 procedimentos no período. Somente a FenaSaúde já apresentou três notícias-crime ao Ministério Público de São Paulo que levaram à abertura de nove inquéritos policiais. As representações denunciavam contratações fraudulentas de planos de saúde para obtenção de vantagem indevida através de reembolso. A estimativa é que essas fraudes tenham envolvido o pagamento indevido de R$ 51 milhões. Em todo o setor, a estimativa é que as fraudes movimentem dezenas de bilhões de reais.

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Valente lembrou que o índice de sinistralidade (porcentual gasto com assistência sobre o valor arrecadado) bateu recorde em 2022 e disse que a situação dos planos é “crítica”. Além das fraudes, a chegada de terapias com custo na casa dos milhões, o aumento de idosos na carteira de clientes, a regra que permite número ilimitado de terapias e a judicialização ajudam a explicar os altos índices de reajuste nas mensalidades que são alvos de reclamação dos clientes.

Ela defende que, para reequilibrar as contas e evitar que os planos virem artigos de luxo, as operadoras sejam autorizadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a comercializar planos mais básicos, só com cobertura de consultas e exames, para atrair jovens e aumentar a base de clientes.

A proposta chegou a ser defendida pelo então ministro da Saúde Ricardo Barros em 2016, mas não foi para frente após críticas de órgãos de defesa do consumidor. Para Valente, a população que seria cliente desse produto tem buscado alternativas na utilização de clínicas populares e cartões de consultas, o que, para ela, deixa o usuário mais vulnerável. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

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Beneficiários de planos de saúde reclamam de mensalidades cada vez mais caras enquanto as operadoras falam em crise financeira. O que está acontecendo para que esses reajustes não sejam suficientes para garantir a sustentabilidade do setor?

Por causa da pandemia, represou-se alguns procedimentos e, logo depois, teve um pico de procura do sistema e esse uso se manteve em níveis superiores ao que era antes da pandemia. Não sabemos se isso veio para ficar ou se é pontual, mas a sinistralidade em 2022, ou seja, qual percentual do que você arrecada é usado para pagar a assistência, bateu recorde, com quase 90%, e a gente também observou um aumento do custo de uma série de insumos.

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Soma-se a isso a questão das fraudes, com o uso do reembolso para fraudar o sistema. Isso sai do bolso de todo mundo, isso onera a todos. Se você está fazendo um botox de R$ 2 mil e pegando nota fiscal de consulta, alguém também pode estar usando esse mesmo sistema que você paga para pegar um reembolso de R$ 200 mil, então, no final, todo mundo se prejudica porque, no mutualismo, vai sair do bolso de todo mundo quando vier um reajuste.

Outra questão é a do rol exemplificativo e do rol taxativo. Por que não pode ter um rol exemplificativo? Por que você tem que ter uma lista? Porque a lista traz segurança. Ela tem tudo comprovadamente relevante em termos de tratamento. Independentemente do financiamento da saúde ser público ou privado, você tem que saber o que você vai pagar porque senão não tem orçamento que chegue. Pode pagar tudo? Pode. Só que isso vai sair do seu bolso. É isso que as pessoas não fazem a conexão.

Essa fantasia de que pode dar tudo para todo mundo não existe em nenhum lugar do mundo. Isso tira totalmente a previsibilidade, compromete os cálculos atuariais. Essa previsibilidade é a base para segurança do negócio da operadora, mas também para as pessoas. Nessa discussão do rol, a ANS mudou uma resolução e tornou as terapias ilimitadas. Esse custo também foi a níveis muito superiores. Quando você torna ilimitado, você traz um estímulo ao abuso, houve oportunismo. A gente viu propaganda no Instagram de clínicas procurando crianças autistas.

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E ainda tem situações como o famoso medicamento Zolgensma (remédio para atrofia muscular espinhal), que custa R$ 7,5 milhões na saúde suplementar e R$ 5 milhões para o SUS. Algumas operadoras pequenas não faturam em um ano o custo desse medicamento. Se ela tiver uma prescrição, ela quebra. Com o rol exemplicativo, vamos ter que incorporar várias terapias na casa dos milhões, estamos falando de terapias caríssimas, como a terapia gênica. Tem ainda a judicialização, o envelhecimento da população da saúde suplementar. Se você não tiver uma forma de ampliar a base de jovens para também trazer quem usa menos para ajudar a pagar, não se sustenta. Então, a gente está num momento extremamente crítico e desafiador.

Vera Valente é diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) Foto: Taba Benedicto/Estadão

Sobre as terapias ilimitadas, há casos, como os de crianças autistas, que a carga horária de sessões necessárias é maior. Qual seria o modelo ideal, na visão das operadoras, para evitar irregularidades mas garantir o acesso a quem precisa?

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Tem criança que faz 40 horas de terapia por semana, mas temos casos de crianças fazendo 80 horas por semana. Não tem o menor cabimento, esse número mostra que tem abuso. A gente teve caso de operadora que entrou em contato com a família falando que iria cancelar o plano porque ele não foi pago e ouviu da mãe que ela iria ligar para a clínica porque eles deviam ter esquecido de pagar. Ou seja, a clínica pagava o plano para faturar em forma de reembolso. Tem clínica que dá cashback para os pais. Então, pegou-se um tema sensível, uma situação complicada e as pessoas estão sendo usadas.

O alerta que eu tenho feito sobre essa coisa da fraude é que você está sendo usado para pessoas enriquecerem ilicitamente. Então, não se deixe usar. E essa percepção do abuso no uso das terapias é generalizada entre as operadoras da FenaSaúde. Um caminho que elas estão adotando é criar núcleos próprios de atendimento para essas crianças. Agora, eu acho que a ANS tem que rever essa questão. Você tem a limitação até do número de horas em um dia. Se você tem um problema de saúde, se alguém na sua família tem um problema de saúde, a gente entende perfeitamente que as pessoas querem tentar tudo o que for possível, só que o sistema não consegue pagar. Então, o que é justo o sistema pagar? A limitação na saúde privada é a capacidade de pagamento dos seus contratantes. Ninguém quer restringir acesso, mas ele tem que ser dentro de um equilíbrio, dentro de algo que seja razoável e não os abusos que a gente está vendo.

Sobre o aumento do número de idosos e queda do número de jovens nos planos de saúde, alguns especialistas dizem que, se nada for feito, o plano pode virar um artigo de luxo porque ficaria muito caro. Acredita que isso vá acontecer ou há caminhos para manter ou até ampliar o acesso sem penalizar quem está envelhecendo?

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Essa questão da longevidade não é só brasileira, é um desafio para os sistemas de saúde de todo o mundo. Se você olhar isso de uma forma mais abrangente, temos que estimular as pessoas mais novas a cuidar da saúde para não ter o agravamento de doenças. Mas isso é num cenário mais de longo prazo. No momento atual, o que aconteceu é que vai ficando caro, os jovens não contratam, as empresas menores não oferecem o plano como um benefício, então há uma expulsão desses jovens. Pode virar um artigo de luxo e isso não é ruim só para a saúde suplementar, é ruim para o sistema de saúde como um todo porque essas pessoas vão procurar o SUS.

Qual é o caminho que a gente acredita? Como fazer para trazer mais pessoas, desonerar o SUS, melhorar essa gestão desse recurso, trazer jovens para melhorar esse balanço com os mais idosos? Fazendo coisas diferentes do que está sendo feito. Você precisa ter um plano mais simples, um plano de consultas e exames. Hoje, tem o ambulatorial, mas é um percentual muito pequeno porque ele é caro porque tem pendurado nele as terapias. A gente defende que continue tendo o ambulatorial com terapia, o hospitalar, mas que possamos colocar na prateleira a questão do plano de consultas e exames. Quando você pega o crescimento desses cartões de consultas por telemedicina, quem está comprando esse cartão não tem plano de saúde. Tem aí em torno de 30 milhões de cartões no mercado.

Agora, se hoje o cara está vendendo esse cartão e amanhã ele decidir não vender mais, você que comprou fica na mão. É muito curioso que o argumento (de não permitir planos de consultas e exames) seja de proteção ao consumidor, mas esse consumidor está no limbo. Ele não consegue acessar o SUS e busca acesso nas clínicas populares, cartões de desconto, cartões de consulta por telemedicina. A gente poderia viabilizar. Deixa que as operadoras tenham esse produto. A operadora é regulada, ela tem uma capacidade de atendimento. E você atrairia mais o público jovem. Tem muita gente contra, principalmente com esse argumento de defesa do consumidor, mas, insisto, este consumidor está desassistido.

A gente defende também a questão de uma flexibilidade da ANS com relação ao reajuste do plano individual. As empresas não vendem mais individual, só quem vende individual é operadora verticalizada (aquelas que administram também a rede de prestação de serviços) porque ela controla todos os custos. Quando você tem um reajuste único, como o da ANS, você tem injustiças porque tem alguns lugares que esse reajuste poderia ser até menor. Não é flexibilização no sentido de fazer o que quiser, mas que fossem cálculos atuariais que poderiam ser auditados pela ANS.

As operadoras precisam ter previsibilidade, mas tem o outro lado, do consumidor, que é o elo mais fraco e, se receber um reajuste de 30%, o pagamento do plano pode ficar inviável. Qual seria a equação possível nesse caso?

A gente já levou alguns estudos, algumas alternativas para a ANS, mas existem caminhos. Rever a fórmula de cálculo segundo características regionais é um exemplo. É no sentido de caminhar para algo que não seja uma fórmula única para todos os planos, mas algo que você possa levar em consideração especificidades. Características tanto do tipo do modelo de negócio quanto das características regionais.

No ano passado, os planos fecharam com déficit operacional. Qual é o cenário esperado para esse ano tendo em vista os números dos primeiros meses?

A gente fechou o primeiro trimestre com uma leve recuperação. A gente veio de seis trimestres consecutivos de prejuízo operacional e fechou 2022 com quase R$ 11 bilhões de prejuízo operacional e a gente, no primeiro trimestre de 2023, teve uma leve recuperação, mas teremos um melhor retrato do que o ano promete quando os números do segundo trimestre fecharem.

Sobre essas tecnologias muito caras que você mencionou, a saúde suplementar está conversando com a indústria farmacêutica para negociar preços?

As terapias estão vindo numa velocidade muito grande e entrando no mercado com testes clínicos muito incipientes por serem drogas para doenças raras. Nessa lógica do registro rápido, tem uma regra de olhar o preço em outros países, sendo que a gente é um país muito mais pobre do que os das matrizes dessas indústrias. Daí o dossiê com o pedido de incorporação vai para a ANS e se não respondem em até seis meses, a incorporação é automática. Isso não existe em nenhum outro lugar do mundo. É uma grande distorção.

Aí você vai no SUS, tem compartilhamento de risco, na saúde suplementar não tem, ou seja, no SUS, se a criança vier a falecer logo depois que usou a medicação, o SUS paga só 20%, mas a saúde suplementar tem que pagar 100%. E não é a operadora que está pagando, essa é outra ficha que tem que cair, a operadora usa o dinheiro que sai do bolso de quem paga o plano, então as condições têm que ser iguais. Defendo a criação de uma agência única em que você vai ter técnicos capacitados, fazer toda a análise e, se o medicamento é comprovadamente bom, ele é bom para quem está no SUS e na saúde suplementar. E o compartilhamento de risco tem que ser para os dois. Mas isso tem que acontecer antes de incorporar. Depois que está incorporado, sou obrigada a pagar. A ANS tem que chamar para discutir o preço.

Você falou sobre o impacto da judicialização sobre os custos. Publicamos uma matéria mostrando que o número de ações voltou ao nível pré-pandemia. Como vê esse cenário?

Existe uma máquina de judicialização no País e uma rede de advogados que incentiva essa judicialização. Então continua sendo um enorme desafio e a judicialização é a pior forma de acesso, porque ela se dá para um em detrimento de vários, se dá muitas vezes na hora errada e ela é cara. A gente continua conversando muito, inclusive no âmbito do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), para que tenha um repositório, uma fonte que o juiz possa consultar e se sentir tranquilo emocionalmente inclusive para falar não.

Por exemplo, a família de um rapaz de 19 anos judicializou o Zolgensma, mas na bula está que há comprovação para crianças até 6 meses. Tem o NatJus (plataforma do CNJ que reúne pareceres e notas técnicas dos tribunais brasileiros lastreados em medicina baseada em evidências), mas é mais para o SUS. Por que a gente não cria um núcleo de consulta que seja para o SUS e saúde suplementar para que o juiz olhe aquilo e se sinta seguro sobre a consistência técnica?

O próprio setor reconhece que as operadoras também precisam melhorar em vários pontos para enfrentar os desafios de aumento de custos. Há uma crítica de que as empresas não assumiram devidamente ainda seu papel em ações de prevenção e promoção da saúde, por exemplo.

Esse tema da Atenção Primária é um movimento que algumas operadoras vêm fazendo e que eu acho que a parceria com os contratantes é importante. Fizemos um evento muito bom com a CNI (Confederação Nacional das Indústrias) para trazer o contratante, para que ele seja um parceiro na divulgação da informação, ajudar na gestão dessa população, criar programas de autocuidado, prevenção, combate ao tabagismo.

Hoje você tem uma rotatividade muito grande de beneficiários, então esse é um desafio. Teria que ser um movimento realmente de todas as operadoras para que todo o setor se beneficiasse desse tipo de programa. Eu acho que o setor está se movimentando para trazer um melhor cuidado, mas não são mudanças que você faz de forma muito rápida, mas as operadoras estão se engajando mais.

Sobre a reforma da lei dos planos de saúde, que está em tramitação no Congresso, qual é a posição das operadoras sobre os principais pontos propostos no projeto?

É uma lei que tem 25 anos. Então ela precisa mesmo ser modernizada. Agora, tem que olhar de forma pragmática e modernizar buscando ampliar, e não reduzir o setor. Algumas medidas começaram a ser discutidas, como proibir o cancelamento unilateral de contratos dos planos coletivos. Algumas medidas que estão sendo faladas seriam para destruir o setor de vez. Você tem os planos individuais, que não pode cancelar e dão prejuízo; os PMEs com terapias ilimitadas, aumento de gastos com reembolso.

Agora, se o contrato de plano coletivo for deficitário e você não puder cancelar, você faz o quê? Aí você pega um setor de 700 operadoras, muitas pequenas no interior do país, os primeiros que vão sucumbir são esses planos que, muitas vezes, são a única opção naquela região. Se você tira isso, você deixa uma situação mais agravada ainda para o sistema público. Então, a gente defende a modernização, mas tem que rever ouvindo todas as partes que vão ser impactadas. A gente está preocupado, temos buscado conversar, mostrar os números, mostrar os estudos que a gente tem para que haja uma discussão equilibrada, olhando a realidade hoje.

Na ofensiva dos planos de saúde contra fraudes, um dos grandes objetivos da advogada Vera Valente, diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde), principal associação do setor, é mostrar como os gastos indevidos com práticas fraudulentas acabam onerando não só o caixa das empresas, mas, principalmente, o bolso dos beneficiários.

“Se você está fazendo um botox de R$ 2 mil e pegando nota fiscal de consulta, alguém também pode estar usando esse mesmo sistema que você paga para pedir um reembolso de R$ 200 mil. No final, todo mundo se prejudica porque, no mutualismo, vai sair do bolso de todo mundo quando vier um reajuste”, disse ela, em entrevista exclusiva ao Estadão, sobre o cenário do setor em meio à crise financeira.

Como mostrou o Estadão, o número de notícias-crime e ações cíveis movidas pelas operadoras para a denúncia de fraudes subiu 884% entre 2018 a 2022, passando de 75 para 738 procedimentos no período. Somente a FenaSaúde já apresentou três notícias-crime ao Ministério Público de São Paulo que levaram à abertura de nove inquéritos policiais. As representações denunciavam contratações fraudulentas de planos de saúde para obtenção de vantagem indevida através de reembolso. A estimativa é que essas fraudes tenham envolvido o pagamento indevido de R$ 51 milhões. Em todo o setor, a estimativa é que as fraudes movimentem dezenas de bilhões de reais.

Valente lembrou que o índice de sinistralidade (porcentual gasto com assistência sobre o valor arrecadado) bateu recorde em 2022 e disse que a situação dos planos é “crítica”. Além das fraudes, a chegada de terapias com custo na casa dos milhões, o aumento de idosos na carteira de clientes, a regra que permite número ilimitado de terapias e a judicialização ajudam a explicar os altos índices de reajuste nas mensalidades que são alvos de reclamação dos clientes.

Ela defende que, para reequilibrar as contas e evitar que os planos virem artigos de luxo, as operadoras sejam autorizadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a comercializar planos mais básicos, só com cobertura de consultas e exames, para atrair jovens e aumentar a base de clientes.

A proposta chegou a ser defendida pelo então ministro da Saúde Ricardo Barros em 2016, mas não foi para frente após críticas de órgãos de defesa do consumidor. Para Valente, a população que seria cliente desse produto tem buscado alternativas na utilização de clínicas populares e cartões de consultas, o que, para ela, deixa o usuário mais vulnerável. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Beneficiários de planos de saúde reclamam de mensalidades cada vez mais caras enquanto as operadoras falam em crise financeira. O que está acontecendo para que esses reajustes não sejam suficientes para garantir a sustentabilidade do setor?

Por causa da pandemia, represou-se alguns procedimentos e, logo depois, teve um pico de procura do sistema e esse uso se manteve em níveis superiores ao que era antes da pandemia. Não sabemos se isso veio para ficar ou se é pontual, mas a sinistralidade em 2022, ou seja, qual percentual do que você arrecada é usado para pagar a assistência, bateu recorde, com quase 90%, e a gente também observou um aumento do custo de uma série de insumos.

Soma-se a isso a questão das fraudes, com o uso do reembolso para fraudar o sistema. Isso sai do bolso de todo mundo, isso onera a todos. Se você está fazendo um botox de R$ 2 mil e pegando nota fiscal de consulta, alguém também pode estar usando esse mesmo sistema que você paga para pegar um reembolso de R$ 200 mil, então, no final, todo mundo se prejudica porque, no mutualismo, vai sair do bolso de todo mundo quando vier um reajuste.

Outra questão é a do rol exemplificativo e do rol taxativo. Por que não pode ter um rol exemplificativo? Por que você tem que ter uma lista? Porque a lista traz segurança. Ela tem tudo comprovadamente relevante em termos de tratamento. Independentemente do financiamento da saúde ser público ou privado, você tem que saber o que você vai pagar porque senão não tem orçamento que chegue. Pode pagar tudo? Pode. Só que isso vai sair do seu bolso. É isso que as pessoas não fazem a conexão.

Essa fantasia de que pode dar tudo para todo mundo não existe em nenhum lugar do mundo. Isso tira totalmente a previsibilidade, compromete os cálculos atuariais. Essa previsibilidade é a base para segurança do negócio da operadora, mas também para as pessoas. Nessa discussão do rol, a ANS mudou uma resolução e tornou as terapias ilimitadas. Esse custo também foi a níveis muito superiores. Quando você torna ilimitado, você traz um estímulo ao abuso, houve oportunismo. A gente viu propaganda no Instagram de clínicas procurando crianças autistas.

E ainda tem situações como o famoso medicamento Zolgensma (remédio para atrofia muscular espinhal), que custa R$ 7,5 milhões na saúde suplementar e R$ 5 milhões para o SUS. Algumas operadoras pequenas não faturam em um ano o custo desse medicamento. Se ela tiver uma prescrição, ela quebra. Com o rol exemplicativo, vamos ter que incorporar várias terapias na casa dos milhões, estamos falando de terapias caríssimas, como a terapia gênica. Tem ainda a judicialização, o envelhecimento da população da saúde suplementar. Se você não tiver uma forma de ampliar a base de jovens para também trazer quem usa menos para ajudar a pagar, não se sustenta. Então, a gente está num momento extremamente crítico e desafiador.

Vera Valente é diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) Foto: Taba Benedicto/Estadão

Sobre as terapias ilimitadas, há casos, como os de crianças autistas, que a carga horária de sessões necessárias é maior. Qual seria o modelo ideal, na visão das operadoras, para evitar irregularidades mas garantir o acesso a quem precisa?

Tem criança que faz 40 horas de terapia por semana, mas temos casos de crianças fazendo 80 horas por semana. Não tem o menor cabimento, esse número mostra que tem abuso. A gente teve caso de operadora que entrou em contato com a família falando que iria cancelar o plano porque ele não foi pago e ouviu da mãe que ela iria ligar para a clínica porque eles deviam ter esquecido de pagar. Ou seja, a clínica pagava o plano para faturar em forma de reembolso. Tem clínica que dá cashback para os pais. Então, pegou-se um tema sensível, uma situação complicada e as pessoas estão sendo usadas.

O alerta que eu tenho feito sobre essa coisa da fraude é que você está sendo usado para pessoas enriquecerem ilicitamente. Então, não se deixe usar. E essa percepção do abuso no uso das terapias é generalizada entre as operadoras da FenaSaúde. Um caminho que elas estão adotando é criar núcleos próprios de atendimento para essas crianças. Agora, eu acho que a ANS tem que rever essa questão. Você tem a limitação até do número de horas em um dia. Se você tem um problema de saúde, se alguém na sua família tem um problema de saúde, a gente entende perfeitamente que as pessoas querem tentar tudo o que for possível, só que o sistema não consegue pagar. Então, o que é justo o sistema pagar? A limitação na saúde privada é a capacidade de pagamento dos seus contratantes. Ninguém quer restringir acesso, mas ele tem que ser dentro de um equilíbrio, dentro de algo que seja razoável e não os abusos que a gente está vendo.

Sobre o aumento do número de idosos e queda do número de jovens nos planos de saúde, alguns especialistas dizem que, se nada for feito, o plano pode virar um artigo de luxo porque ficaria muito caro. Acredita que isso vá acontecer ou há caminhos para manter ou até ampliar o acesso sem penalizar quem está envelhecendo?

Essa questão da longevidade não é só brasileira, é um desafio para os sistemas de saúde de todo o mundo. Se você olhar isso de uma forma mais abrangente, temos que estimular as pessoas mais novas a cuidar da saúde para não ter o agravamento de doenças. Mas isso é num cenário mais de longo prazo. No momento atual, o que aconteceu é que vai ficando caro, os jovens não contratam, as empresas menores não oferecem o plano como um benefício, então há uma expulsão desses jovens. Pode virar um artigo de luxo e isso não é ruim só para a saúde suplementar, é ruim para o sistema de saúde como um todo porque essas pessoas vão procurar o SUS.

Qual é o caminho que a gente acredita? Como fazer para trazer mais pessoas, desonerar o SUS, melhorar essa gestão desse recurso, trazer jovens para melhorar esse balanço com os mais idosos? Fazendo coisas diferentes do que está sendo feito. Você precisa ter um plano mais simples, um plano de consultas e exames. Hoje, tem o ambulatorial, mas é um percentual muito pequeno porque ele é caro porque tem pendurado nele as terapias. A gente defende que continue tendo o ambulatorial com terapia, o hospitalar, mas que possamos colocar na prateleira a questão do plano de consultas e exames. Quando você pega o crescimento desses cartões de consultas por telemedicina, quem está comprando esse cartão não tem plano de saúde. Tem aí em torno de 30 milhões de cartões no mercado.

Agora, se hoje o cara está vendendo esse cartão e amanhã ele decidir não vender mais, você que comprou fica na mão. É muito curioso que o argumento (de não permitir planos de consultas e exames) seja de proteção ao consumidor, mas esse consumidor está no limbo. Ele não consegue acessar o SUS e busca acesso nas clínicas populares, cartões de desconto, cartões de consulta por telemedicina. A gente poderia viabilizar. Deixa que as operadoras tenham esse produto. A operadora é regulada, ela tem uma capacidade de atendimento. E você atrairia mais o público jovem. Tem muita gente contra, principalmente com esse argumento de defesa do consumidor, mas, insisto, este consumidor está desassistido.

A gente defende também a questão de uma flexibilidade da ANS com relação ao reajuste do plano individual. As empresas não vendem mais individual, só quem vende individual é operadora verticalizada (aquelas que administram também a rede de prestação de serviços) porque ela controla todos os custos. Quando você tem um reajuste único, como o da ANS, você tem injustiças porque tem alguns lugares que esse reajuste poderia ser até menor. Não é flexibilização no sentido de fazer o que quiser, mas que fossem cálculos atuariais que poderiam ser auditados pela ANS.

As operadoras precisam ter previsibilidade, mas tem o outro lado, do consumidor, que é o elo mais fraco e, se receber um reajuste de 30%, o pagamento do plano pode ficar inviável. Qual seria a equação possível nesse caso?

A gente já levou alguns estudos, algumas alternativas para a ANS, mas existem caminhos. Rever a fórmula de cálculo segundo características regionais é um exemplo. É no sentido de caminhar para algo que não seja uma fórmula única para todos os planos, mas algo que você possa levar em consideração especificidades. Características tanto do tipo do modelo de negócio quanto das características regionais.

No ano passado, os planos fecharam com déficit operacional. Qual é o cenário esperado para esse ano tendo em vista os números dos primeiros meses?

A gente fechou o primeiro trimestre com uma leve recuperação. A gente veio de seis trimestres consecutivos de prejuízo operacional e fechou 2022 com quase R$ 11 bilhões de prejuízo operacional e a gente, no primeiro trimestre de 2023, teve uma leve recuperação, mas teremos um melhor retrato do que o ano promete quando os números do segundo trimestre fecharem.

Sobre essas tecnologias muito caras que você mencionou, a saúde suplementar está conversando com a indústria farmacêutica para negociar preços?

As terapias estão vindo numa velocidade muito grande e entrando no mercado com testes clínicos muito incipientes por serem drogas para doenças raras. Nessa lógica do registro rápido, tem uma regra de olhar o preço em outros países, sendo que a gente é um país muito mais pobre do que os das matrizes dessas indústrias. Daí o dossiê com o pedido de incorporação vai para a ANS e se não respondem em até seis meses, a incorporação é automática. Isso não existe em nenhum outro lugar do mundo. É uma grande distorção.

Aí você vai no SUS, tem compartilhamento de risco, na saúde suplementar não tem, ou seja, no SUS, se a criança vier a falecer logo depois que usou a medicação, o SUS paga só 20%, mas a saúde suplementar tem que pagar 100%. E não é a operadora que está pagando, essa é outra ficha que tem que cair, a operadora usa o dinheiro que sai do bolso de quem paga o plano, então as condições têm que ser iguais. Defendo a criação de uma agência única em que você vai ter técnicos capacitados, fazer toda a análise e, se o medicamento é comprovadamente bom, ele é bom para quem está no SUS e na saúde suplementar. E o compartilhamento de risco tem que ser para os dois. Mas isso tem que acontecer antes de incorporar. Depois que está incorporado, sou obrigada a pagar. A ANS tem que chamar para discutir o preço.

Você falou sobre o impacto da judicialização sobre os custos. Publicamos uma matéria mostrando que o número de ações voltou ao nível pré-pandemia. Como vê esse cenário?

Existe uma máquina de judicialização no País e uma rede de advogados que incentiva essa judicialização. Então continua sendo um enorme desafio e a judicialização é a pior forma de acesso, porque ela se dá para um em detrimento de vários, se dá muitas vezes na hora errada e ela é cara. A gente continua conversando muito, inclusive no âmbito do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), para que tenha um repositório, uma fonte que o juiz possa consultar e se sentir tranquilo emocionalmente inclusive para falar não.

Por exemplo, a família de um rapaz de 19 anos judicializou o Zolgensma, mas na bula está que há comprovação para crianças até 6 meses. Tem o NatJus (plataforma do CNJ que reúne pareceres e notas técnicas dos tribunais brasileiros lastreados em medicina baseada em evidências), mas é mais para o SUS. Por que a gente não cria um núcleo de consulta que seja para o SUS e saúde suplementar para que o juiz olhe aquilo e se sinta seguro sobre a consistência técnica?

O próprio setor reconhece que as operadoras também precisam melhorar em vários pontos para enfrentar os desafios de aumento de custos. Há uma crítica de que as empresas não assumiram devidamente ainda seu papel em ações de prevenção e promoção da saúde, por exemplo.

Esse tema da Atenção Primária é um movimento que algumas operadoras vêm fazendo e que eu acho que a parceria com os contratantes é importante. Fizemos um evento muito bom com a CNI (Confederação Nacional das Indústrias) para trazer o contratante, para que ele seja um parceiro na divulgação da informação, ajudar na gestão dessa população, criar programas de autocuidado, prevenção, combate ao tabagismo.

Hoje você tem uma rotatividade muito grande de beneficiários, então esse é um desafio. Teria que ser um movimento realmente de todas as operadoras para que todo o setor se beneficiasse desse tipo de programa. Eu acho que o setor está se movimentando para trazer um melhor cuidado, mas não são mudanças que você faz de forma muito rápida, mas as operadoras estão se engajando mais.

Sobre a reforma da lei dos planos de saúde, que está em tramitação no Congresso, qual é a posição das operadoras sobre os principais pontos propostos no projeto?

É uma lei que tem 25 anos. Então ela precisa mesmo ser modernizada. Agora, tem que olhar de forma pragmática e modernizar buscando ampliar, e não reduzir o setor. Algumas medidas começaram a ser discutidas, como proibir o cancelamento unilateral de contratos dos planos coletivos. Algumas medidas que estão sendo faladas seriam para destruir o setor de vez. Você tem os planos individuais, que não pode cancelar e dão prejuízo; os PMEs com terapias ilimitadas, aumento de gastos com reembolso.

Agora, se o contrato de plano coletivo for deficitário e você não puder cancelar, você faz o quê? Aí você pega um setor de 700 operadoras, muitas pequenas no interior do país, os primeiros que vão sucumbir são esses planos que, muitas vezes, são a única opção naquela região. Se você tira isso, você deixa uma situação mais agravada ainda para o sistema público. Então, a gente defende a modernização, mas tem que rever ouvindo todas as partes que vão ser impactadas. A gente está preocupado, temos buscado conversar, mostrar os números, mostrar os estudos que a gente tem para que haja uma discussão equilibrada, olhando a realidade hoje.

Na ofensiva dos planos de saúde contra fraudes, um dos grandes objetivos da advogada Vera Valente, diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde), principal associação do setor, é mostrar como os gastos indevidos com práticas fraudulentas acabam onerando não só o caixa das empresas, mas, principalmente, o bolso dos beneficiários.

“Se você está fazendo um botox de R$ 2 mil e pegando nota fiscal de consulta, alguém também pode estar usando esse mesmo sistema que você paga para pedir um reembolso de R$ 200 mil. No final, todo mundo se prejudica porque, no mutualismo, vai sair do bolso de todo mundo quando vier um reajuste”, disse ela, em entrevista exclusiva ao Estadão, sobre o cenário do setor em meio à crise financeira.

Como mostrou o Estadão, o número de notícias-crime e ações cíveis movidas pelas operadoras para a denúncia de fraudes subiu 884% entre 2018 a 2022, passando de 75 para 738 procedimentos no período. Somente a FenaSaúde já apresentou três notícias-crime ao Ministério Público de São Paulo que levaram à abertura de nove inquéritos policiais. As representações denunciavam contratações fraudulentas de planos de saúde para obtenção de vantagem indevida através de reembolso. A estimativa é que essas fraudes tenham envolvido o pagamento indevido de R$ 51 milhões. Em todo o setor, a estimativa é que as fraudes movimentem dezenas de bilhões de reais.

Valente lembrou que o índice de sinistralidade (porcentual gasto com assistência sobre o valor arrecadado) bateu recorde em 2022 e disse que a situação dos planos é “crítica”. Além das fraudes, a chegada de terapias com custo na casa dos milhões, o aumento de idosos na carteira de clientes, a regra que permite número ilimitado de terapias e a judicialização ajudam a explicar os altos índices de reajuste nas mensalidades que são alvos de reclamação dos clientes.

Ela defende que, para reequilibrar as contas e evitar que os planos virem artigos de luxo, as operadoras sejam autorizadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) a comercializar planos mais básicos, só com cobertura de consultas e exames, para atrair jovens e aumentar a base de clientes.

A proposta chegou a ser defendida pelo então ministro da Saúde Ricardo Barros em 2016, mas não foi para frente após críticas de órgãos de defesa do consumidor. Para Valente, a população que seria cliente desse produto tem buscado alternativas na utilização de clínicas populares e cartões de consultas, o que, para ela, deixa o usuário mais vulnerável. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Beneficiários de planos de saúde reclamam de mensalidades cada vez mais caras enquanto as operadoras falam em crise financeira. O que está acontecendo para que esses reajustes não sejam suficientes para garantir a sustentabilidade do setor?

Por causa da pandemia, represou-se alguns procedimentos e, logo depois, teve um pico de procura do sistema e esse uso se manteve em níveis superiores ao que era antes da pandemia. Não sabemos se isso veio para ficar ou se é pontual, mas a sinistralidade em 2022, ou seja, qual percentual do que você arrecada é usado para pagar a assistência, bateu recorde, com quase 90%, e a gente também observou um aumento do custo de uma série de insumos.

Soma-se a isso a questão das fraudes, com o uso do reembolso para fraudar o sistema. Isso sai do bolso de todo mundo, isso onera a todos. Se você está fazendo um botox de R$ 2 mil e pegando nota fiscal de consulta, alguém também pode estar usando esse mesmo sistema que você paga para pegar um reembolso de R$ 200 mil, então, no final, todo mundo se prejudica porque, no mutualismo, vai sair do bolso de todo mundo quando vier um reajuste.

Outra questão é a do rol exemplificativo e do rol taxativo. Por que não pode ter um rol exemplificativo? Por que você tem que ter uma lista? Porque a lista traz segurança. Ela tem tudo comprovadamente relevante em termos de tratamento. Independentemente do financiamento da saúde ser público ou privado, você tem que saber o que você vai pagar porque senão não tem orçamento que chegue. Pode pagar tudo? Pode. Só que isso vai sair do seu bolso. É isso que as pessoas não fazem a conexão.

Essa fantasia de que pode dar tudo para todo mundo não existe em nenhum lugar do mundo. Isso tira totalmente a previsibilidade, compromete os cálculos atuariais. Essa previsibilidade é a base para segurança do negócio da operadora, mas também para as pessoas. Nessa discussão do rol, a ANS mudou uma resolução e tornou as terapias ilimitadas. Esse custo também foi a níveis muito superiores. Quando você torna ilimitado, você traz um estímulo ao abuso, houve oportunismo. A gente viu propaganda no Instagram de clínicas procurando crianças autistas.

E ainda tem situações como o famoso medicamento Zolgensma (remédio para atrofia muscular espinhal), que custa R$ 7,5 milhões na saúde suplementar e R$ 5 milhões para o SUS. Algumas operadoras pequenas não faturam em um ano o custo desse medicamento. Se ela tiver uma prescrição, ela quebra. Com o rol exemplicativo, vamos ter que incorporar várias terapias na casa dos milhões, estamos falando de terapias caríssimas, como a terapia gênica. Tem ainda a judicialização, o envelhecimento da população da saúde suplementar. Se você não tiver uma forma de ampliar a base de jovens para também trazer quem usa menos para ajudar a pagar, não se sustenta. Então, a gente está num momento extremamente crítico e desafiador.

Vera Valente é diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) Foto: Taba Benedicto/Estadão

Sobre as terapias ilimitadas, há casos, como os de crianças autistas, que a carga horária de sessões necessárias é maior. Qual seria o modelo ideal, na visão das operadoras, para evitar irregularidades mas garantir o acesso a quem precisa?

Tem criança que faz 40 horas de terapia por semana, mas temos casos de crianças fazendo 80 horas por semana. Não tem o menor cabimento, esse número mostra que tem abuso. A gente teve caso de operadora que entrou em contato com a família falando que iria cancelar o plano porque ele não foi pago e ouviu da mãe que ela iria ligar para a clínica porque eles deviam ter esquecido de pagar. Ou seja, a clínica pagava o plano para faturar em forma de reembolso. Tem clínica que dá cashback para os pais. Então, pegou-se um tema sensível, uma situação complicada e as pessoas estão sendo usadas.

O alerta que eu tenho feito sobre essa coisa da fraude é que você está sendo usado para pessoas enriquecerem ilicitamente. Então, não se deixe usar. E essa percepção do abuso no uso das terapias é generalizada entre as operadoras da FenaSaúde. Um caminho que elas estão adotando é criar núcleos próprios de atendimento para essas crianças. Agora, eu acho que a ANS tem que rever essa questão. Você tem a limitação até do número de horas em um dia. Se você tem um problema de saúde, se alguém na sua família tem um problema de saúde, a gente entende perfeitamente que as pessoas querem tentar tudo o que for possível, só que o sistema não consegue pagar. Então, o que é justo o sistema pagar? A limitação na saúde privada é a capacidade de pagamento dos seus contratantes. Ninguém quer restringir acesso, mas ele tem que ser dentro de um equilíbrio, dentro de algo que seja razoável e não os abusos que a gente está vendo.

Sobre o aumento do número de idosos e queda do número de jovens nos planos de saúde, alguns especialistas dizem que, se nada for feito, o plano pode virar um artigo de luxo porque ficaria muito caro. Acredita que isso vá acontecer ou há caminhos para manter ou até ampliar o acesso sem penalizar quem está envelhecendo?

Essa questão da longevidade não é só brasileira, é um desafio para os sistemas de saúde de todo o mundo. Se você olhar isso de uma forma mais abrangente, temos que estimular as pessoas mais novas a cuidar da saúde para não ter o agravamento de doenças. Mas isso é num cenário mais de longo prazo. No momento atual, o que aconteceu é que vai ficando caro, os jovens não contratam, as empresas menores não oferecem o plano como um benefício, então há uma expulsão desses jovens. Pode virar um artigo de luxo e isso não é ruim só para a saúde suplementar, é ruim para o sistema de saúde como um todo porque essas pessoas vão procurar o SUS.

Qual é o caminho que a gente acredita? Como fazer para trazer mais pessoas, desonerar o SUS, melhorar essa gestão desse recurso, trazer jovens para melhorar esse balanço com os mais idosos? Fazendo coisas diferentes do que está sendo feito. Você precisa ter um plano mais simples, um plano de consultas e exames. Hoje, tem o ambulatorial, mas é um percentual muito pequeno porque ele é caro porque tem pendurado nele as terapias. A gente defende que continue tendo o ambulatorial com terapia, o hospitalar, mas que possamos colocar na prateleira a questão do plano de consultas e exames. Quando você pega o crescimento desses cartões de consultas por telemedicina, quem está comprando esse cartão não tem plano de saúde. Tem aí em torno de 30 milhões de cartões no mercado.

Agora, se hoje o cara está vendendo esse cartão e amanhã ele decidir não vender mais, você que comprou fica na mão. É muito curioso que o argumento (de não permitir planos de consultas e exames) seja de proteção ao consumidor, mas esse consumidor está no limbo. Ele não consegue acessar o SUS e busca acesso nas clínicas populares, cartões de desconto, cartões de consulta por telemedicina. A gente poderia viabilizar. Deixa que as operadoras tenham esse produto. A operadora é regulada, ela tem uma capacidade de atendimento. E você atrairia mais o público jovem. Tem muita gente contra, principalmente com esse argumento de defesa do consumidor, mas, insisto, este consumidor está desassistido.

A gente defende também a questão de uma flexibilidade da ANS com relação ao reajuste do plano individual. As empresas não vendem mais individual, só quem vende individual é operadora verticalizada (aquelas que administram também a rede de prestação de serviços) porque ela controla todos os custos. Quando você tem um reajuste único, como o da ANS, você tem injustiças porque tem alguns lugares que esse reajuste poderia ser até menor. Não é flexibilização no sentido de fazer o que quiser, mas que fossem cálculos atuariais que poderiam ser auditados pela ANS.

As operadoras precisam ter previsibilidade, mas tem o outro lado, do consumidor, que é o elo mais fraco e, se receber um reajuste de 30%, o pagamento do plano pode ficar inviável. Qual seria a equação possível nesse caso?

A gente já levou alguns estudos, algumas alternativas para a ANS, mas existem caminhos. Rever a fórmula de cálculo segundo características regionais é um exemplo. É no sentido de caminhar para algo que não seja uma fórmula única para todos os planos, mas algo que você possa levar em consideração especificidades. Características tanto do tipo do modelo de negócio quanto das características regionais.

No ano passado, os planos fecharam com déficit operacional. Qual é o cenário esperado para esse ano tendo em vista os números dos primeiros meses?

A gente fechou o primeiro trimestre com uma leve recuperação. A gente veio de seis trimestres consecutivos de prejuízo operacional e fechou 2022 com quase R$ 11 bilhões de prejuízo operacional e a gente, no primeiro trimestre de 2023, teve uma leve recuperação, mas teremos um melhor retrato do que o ano promete quando os números do segundo trimestre fecharem.

Sobre essas tecnologias muito caras que você mencionou, a saúde suplementar está conversando com a indústria farmacêutica para negociar preços?

As terapias estão vindo numa velocidade muito grande e entrando no mercado com testes clínicos muito incipientes por serem drogas para doenças raras. Nessa lógica do registro rápido, tem uma regra de olhar o preço em outros países, sendo que a gente é um país muito mais pobre do que os das matrizes dessas indústrias. Daí o dossiê com o pedido de incorporação vai para a ANS e se não respondem em até seis meses, a incorporação é automática. Isso não existe em nenhum outro lugar do mundo. É uma grande distorção.

Aí você vai no SUS, tem compartilhamento de risco, na saúde suplementar não tem, ou seja, no SUS, se a criança vier a falecer logo depois que usou a medicação, o SUS paga só 20%, mas a saúde suplementar tem que pagar 100%. E não é a operadora que está pagando, essa é outra ficha que tem que cair, a operadora usa o dinheiro que sai do bolso de quem paga o plano, então as condições têm que ser iguais. Defendo a criação de uma agência única em que você vai ter técnicos capacitados, fazer toda a análise e, se o medicamento é comprovadamente bom, ele é bom para quem está no SUS e na saúde suplementar. E o compartilhamento de risco tem que ser para os dois. Mas isso tem que acontecer antes de incorporar. Depois que está incorporado, sou obrigada a pagar. A ANS tem que chamar para discutir o preço.

Você falou sobre o impacto da judicialização sobre os custos. Publicamos uma matéria mostrando que o número de ações voltou ao nível pré-pandemia. Como vê esse cenário?

Existe uma máquina de judicialização no País e uma rede de advogados que incentiva essa judicialização. Então continua sendo um enorme desafio e a judicialização é a pior forma de acesso, porque ela se dá para um em detrimento de vários, se dá muitas vezes na hora errada e ela é cara. A gente continua conversando muito, inclusive no âmbito do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), para que tenha um repositório, uma fonte que o juiz possa consultar e se sentir tranquilo emocionalmente inclusive para falar não.

Por exemplo, a família de um rapaz de 19 anos judicializou o Zolgensma, mas na bula está que há comprovação para crianças até 6 meses. Tem o NatJus (plataforma do CNJ que reúne pareceres e notas técnicas dos tribunais brasileiros lastreados em medicina baseada em evidências), mas é mais para o SUS. Por que a gente não cria um núcleo de consulta que seja para o SUS e saúde suplementar para que o juiz olhe aquilo e se sinta seguro sobre a consistência técnica?

O próprio setor reconhece que as operadoras também precisam melhorar em vários pontos para enfrentar os desafios de aumento de custos. Há uma crítica de que as empresas não assumiram devidamente ainda seu papel em ações de prevenção e promoção da saúde, por exemplo.

Esse tema da Atenção Primária é um movimento que algumas operadoras vêm fazendo e que eu acho que a parceria com os contratantes é importante. Fizemos um evento muito bom com a CNI (Confederação Nacional das Indústrias) para trazer o contratante, para que ele seja um parceiro na divulgação da informação, ajudar na gestão dessa população, criar programas de autocuidado, prevenção, combate ao tabagismo.

Hoje você tem uma rotatividade muito grande de beneficiários, então esse é um desafio. Teria que ser um movimento realmente de todas as operadoras para que todo o setor se beneficiasse desse tipo de programa. Eu acho que o setor está se movimentando para trazer um melhor cuidado, mas não são mudanças que você faz de forma muito rápida, mas as operadoras estão se engajando mais.

Sobre a reforma da lei dos planos de saúde, que está em tramitação no Congresso, qual é a posição das operadoras sobre os principais pontos propostos no projeto?

É uma lei que tem 25 anos. Então ela precisa mesmo ser modernizada. Agora, tem que olhar de forma pragmática e modernizar buscando ampliar, e não reduzir o setor. Algumas medidas começaram a ser discutidas, como proibir o cancelamento unilateral de contratos dos planos coletivos. Algumas medidas que estão sendo faladas seriam para destruir o setor de vez. Você tem os planos individuais, que não pode cancelar e dão prejuízo; os PMEs com terapias ilimitadas, aumento de gastos com reembolso.

Agora, se o contrato de plano coletivo for deficitário e você não puder cancelar, você faz o quê? Aí você pega um setor de 700 operadoras, muitas pequenas no interior do país, os primeiros que vão sucumbir são esses planos que, muitas vezes, são a única opção naquela região. Se você tira isso, você deixa uma situação mais agravada ainda para o sistema público. Então, a gente defende a modernização, mas tem que rever ouvindo todas as partes que vão ser impactadas. A gente está preocupado, temos buscado conversar, mostrar os números, mostrar os estudos que a gente tem para que haja uma discussão equilibrada, olhando a realidade hoje.

Entrevista por Fabiana Cambricoli

É repórter especial de Saúde do Estadão. Formada em jornalismo pela USP e mestra em saúde pública pela mesma instituição, já ganhou mais de dez prêmios jornalísticos. Foi fellow do International Center for Journalists (ICFJ), atuando como repórter visitante na ProPublica, premiado portal de jornalismo investigativo sediado em Nova York.

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