A temporada de doenças respiratórias entre crianças se alongou na capital paulista. Na segunda quinzena de junho, quando os casos tradicionalmente começam a cair, alguns hospitais continuam a operar com ocupações de leitos pediátricos acima dos 90%.
Na avaliação de médicos, a extensão da temporada é um reflexo da “bagunça” causada pela pandemia da covid-19, que interferiu na sazonalidade de circulação dos vírus. Crianças de até 2 anos, que têm um sistema imunológico mais frágil, lideram as internações.
Marcelo Gomes, pesquisador do InfoGripe da Fiocruz, destaca que casos de vírus sincicial respiratório (o VSR) em crianças, que desde fevereiro puxavam para cima as estatísticas de internação por síndrome aguda grave (SRAG) na capital, já apresentam tendência de queda, mas seguem em níveis elevados. O cenário, porém, pode mudar com a chegada do frio e a circulação do vírus influenza, causador da gripe.
Síndrome respiratória aguda grave
Gomes informa que, no cenário nacional, vemos, finalmente, uma “tendência de reversão”. Os casos de internação por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) passam a cair. O indicador é puxado pelo Centro-Sul do País, enquanto Norte e Nordeste ainda enfrentam aumento, que é marcado principalmente pela internação dos menores de 2 anos.
A alta registrada desde fevereiro também foi alavancada pelos bebês. Gomes destaca que o vírus sincicial respiratório foi o grande responsável pelas internações. “É um vírus que circula em todas as faixas etárias, só que acaba tendo um impacto maior nas crianças pequenas.” Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o VSR responde por 80% dos casos de bronquiolite e 50% dos diagnósticos de pneumonia em menores de 2 anos.
Antes da pandemia, conta Gomes, o que se esperava seria um aumento dos casos de internação por esse vírus só em março, e o término da temporada um pouco mais cedo. Agora, entre meados de maio e final de junho, no eixo Centro-Sul, as hospitalizações passaram a cair. Mas seguem em patamares elevados.
Só na capital paulista, conforme dados tabulados pela Fiocruz e enviados ao Estadão, a média móvel de internações de crianças com menos de 2 anos por síndrome respiratória aguda grave está em 104 (na semana de 28/05 a 03/06). O ano iniciou com uma média de 68 novos casos por semana e atingiu o pico entre 7 e 13 de maio (138).
“Foi bastante expressivo (o cenário de internações de crianças)”, afirma Gomes.
‘O emocional abala muito’, relata mãe
Desde os 7 meses de idade, a pequena Isabella Fernandes de Almeida, de 2 anos e 6 meses, já passou por cinco internações devido a complicações respiratórias. Duas só neste ano, de acordo com a mãe Débora Fernandes Pinho. Em uma delas, chegou a ficar 15 dias na UTI. Um mês após superar uma pneumonia, ela voltou ao Hospital Infantil Sabará com o mesmo quadro, mas, dessa vez, ela vai poder tratar os sintomas em casa.
“Me sinto mal”, diz a executiva de contas. “O emocional abala muito, mesmo sabendo que ela tem essa facilidade em desenvolver (quadros respiratórios)”. Segundo a mãe, Isabella nasceu com um estreitamento na parte do tórax, e isso a torna mais suscetível a enfrentar quadros graves quando contrai vírus. Neste ano a menina passou a frequentar a escola, o que, na visão da mãe, deixa a pequena ainda mais exposta.
Lorena e Maitê, filhas gêmeas da administradora de empresas Daniela Martins, de 41 anos, também foram hospitalizadas recentemente na capital em função de complicações respiratórias. As duas têm amiotrofia muscular espinhal do tipo 1, uma doença rara, genética, que as coloca dentro do grupo de pessoas mais predispostas a sofrer com infecções que comprometem o sistema respiratório. Para ter ideia, quem tem amiotrofia muscular espinhal apresenta mais dificuldade para tossir e assoar o nariz, o que leva ao acúmulo de secreção no pulmão, comprometendo o funcionamento adequado do órgão em pessoas que convivem com essas condições clínicas.
“As meninas tiveram febre e eu percebi que o padrão respiratório delas estava alterado”, disse Daniela. “Como em casa temos um oxímetro que mede a saturação de oxigênio, percebi rapidamente a alteração, pelo treino que recebi de profissionais especializados neste tipo de doenças neuromusculares, e as levamos para o hospital.” As filhas de Daniela, que têm 4 anos, foram diagnosticadas com uma infecção respiratória causada pelo metapneumovírus, que pertence à mesma família do vírus sincicial respiratório, segundo a administradora.
Elas ficaram hospitalizadas por cerca de duas semanas até se recuperarem. Uma das pequenas ainda apresentou complicações e precisou ser entubada, mas foi só um susto. Na internação, elas foram tratadas com antibióticos e fisioterapia respiratória até receberem alta. “Em casa, ainda fizemos fisioterapia por duas semanas, com intervalo de três dias. Agora elas estão bem e sem nenhuma sequela”, diz a mãe de Lorena e Maitê.
Sabará opera acima de 90% desde fevereiro
O infectologista Francisco de Oliveira Junior, gerente-médico do Hospital Infantil Sabará, relata ao Estadão que a unidade opera com ocupação de leitos de enfermaria e terapia intensiva (UTI) acima de 90% desde fevereiro. Em momentos “confortáveis”, essa taxa fica entre 80% e 85%. A maioria dos atendimentos em pronto-socorro é de crianças de até 4 anos, enquanto os menores de 2 anos lideram os pedidos de internações.
Na avaliação dele, a temporada até começou no período esperado, mas tem se prolongado. “Até 2019, habitualmente, o pico de ocupação e de procura de pronto-socorro ocorria entre os meses de abril e maio. A partir do final de maio e início do mês de junho, começávamos a ver uma queda. Já passamos da metade do mês de junho e ainda não observamos essa redução”, reforça.
Duas semanas atrás, conta, o vírus sincicial respiratório (VSR) predominava, mas outros patógenos, como o rinovírus, o coronavírus e o metapneumovírus também apareceram nos painéis virais. O infectologista diz que ainda é cedo para dizer que a queda nas infecções pelo VSR é uma tendência.
O Hospital Sírio-Libanês informou, em nota, que, de sexta-feira, 16, até a segunda-feira, 19, houve aumento de 26% na necessidade de leitos. “Fomos de 23 para 29 leitos” Os casos se concentram principalmente entre crianças de até 2 anos, com quadros prioritariamente de VSR, influenza A e coronavírus. A unidade de saúde considera ser “comum” o aumento de casos no outono e inverno.
Na segunda-feira, 19, o Hospital Israelita Albert Einstein tinha ocupação de leitos pediátricos da enfermaria da unidade Morumbi em 95%, enquanto a UTI pediátrica registrava 94,4%. “A taxa de ocupação está dentro do esperado, considerando o período sazonal de maior registro de doenças respiratórias”, afirma a nota. “A unidade está preparada para ampliar o número de leitos para atendimento desses pacientes, se necessário.”
Na Rede de Hospitais São Camilo de São Paulo, os leitos pediátricos se encontram com “alta taxa de ocupação - mais de 90%”, de acordo com o médico Marco Aurélio Oliveira. “Observamos um aumento progressivo de ocupação desde março, saindo de uma média de 50% e atingindo seu pico de até 100% de ocupação no final de abril”, descreveu, em entrevista por e-mail. Segundo ele, quase 60% das internações do período foram por quadros respiratórios, sendo o vírus sincicial o mais prevalente, encontrado em até 40% das pesquisas virais.
Segundo o médico Hamilton Robledo, do São Camilo, a intensificação da circulação de vírus respiratórios nos meses mais frios (ele cita abril, maio, junho e julho) é esperada. “O outono e o início do inverno são motivo de atenção para as doenças respiratórias, tanto virais como alérgicas e bacterianas”.
Rede pública
No Estado, conforme a Secretaria de Saúde, a taxa média de ocupação pediátrica é de 79,3% para hospitais de administração direta e de 85,47%, nos geridos por Organizações Sociais de Saúde (OSS), no mês de abril. No primeiro mês do ano, as mesmas taxas eram de 71,1% e 74,21%, respectivamente. A pasta estadual não informa as ocupações de cada cidade.
A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informa que, nesta terça-feira, 20, a taxa de ocupação de leitos de unidade de terapia intensiva (UTI) pediátricos na rede municipal é de 76%, sendo 46% por questões respiratórias.
Em maio, a taxa de ocupação geral de UTI pediátrica foi de 80,76% e, de leitos de enfermaria, 77,21%. Já em abril, a taxa de ocupação de leitos de UTI pediátricos ficou em 80,52% e, de enfermaria, 77,94%.
O pediatra Antonio Carlos Madeira de Arruda, diretor clínico do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus, sob gestão do Instituto de Responsabilidade Social Sírio-Libanês (IRSSL), informa que a unidade de referência da capital para atendimentos pediátricos operava, na manhã desta terça-feira, 20, com 83,8% dos leitos clínicos ocupados, e de UTI, 85%.
De acordo com ele, o que aconteceu no outono deste ano “não fugiu muito” do que se via em anos anteriores à pandemia. Março, abril e maio foram marcados por maior volume de movimentação de pacientes com quadros respiratórios no pronto-socorro e de internações. Segundo ele, a temporada se estendeu um pouco para os primeiros dias de junho, mas ele já vê redução.
O que pode explica esse alongamento na temporada de vírus respiratórios?
O outono, antes da pandemia, em geral, era marcado pelo recrudescimento de síndromes respiratórias em crianças. O início um pouco precoce e o final mais tardio da sazonalidade, na avaliação de alguns médicos ouvidos pela reportagem, é herança da pandemia, que bagunçou a época de transmissão de outros vírus.
“Estamos na fase final dos efeitos da pandemia em relação à circulação de (outros) vírus”, fala Francisco de Oliveira Junior. Ele e Marcelo Gomes, da Fiocruz, explicam que, quando nos isolamos para diminuir a transmissão do causador da covid, outros vírus respiratórios, menos infecciosos que o Sars-CoV-2, quase “desapareceram” em 2020, e nos dois anos seguintes tiveram uma distribuição “errática” e “anômala”.
“Inclusive, estávamos com um passivo imunológico, porque, felizmente, a gente não teve exposição (durante o isolamento social). Mas quando voltamos a baixar a guarda, porque a situação começou a melhorar, os outros vírus passaram a ganhar terreno fora de época”, afirma Gomes.
Influenza acende sinal de alerta
Embora a tendência de internações na capital paulista seja de queda, conforme mostram os dados da Fiocruz, ainda não é hora de relaxar. Gomes destaca que dois fatores podem fazer o jogo virar. De um lado, a chegada do frio mais intenso. “Costumamos ter mais interação social em ambientes fechados e com má circulação de ar”, explica.
Do outro lado, temos o vírus influenza, que segue “dando as caras” e não dá “sinal de reversão”, de acordo com o pesquisador. Na população adulta, diz, já houve aumento de internações por conta dele, mas não houve modificação na tendência geral por causa da queda de hospitalizações devido à covid nessas faixas etárias (então, um vírus compensou o outro).
Mas Gomes se preocupa com o “ritmo lento” da vacinação contra a gripe. “A imunização é fundamental para diminuir o risco de desenvolver um quadro grave.”
Segundo a Secretaria Municipal da Saúde, até 13 de junho, mais de 2,55 milhões de doses do imunizante contra o vírus influenza foram aplicadas. A campanha começou com os grupos de risco em abril e, na metade de maio, foi ampliada para toda a população com 6 meses de idade ou mais.
Quais sintomas respiratórios indicam que preciso levar meu filho ao médico?
Embora o outono chegue ao fim nesta terça e as internações de crianças pareçam estar caindo na capital, é preciso seguir atento. Antonio Carlos Madeira de Arruda destaca, inclusive, que o inverno é marcado pela queda da umidade do ar, o que pode irritar as vias respiratórias de crianças.
Os médicos ouvidos pelo Estadão frisam que nem todas as crianças que apresentam sintomas respiratórios, como tosse e coriza, precisam necessariamente passar por avaliação em unidades de saúde. De olho nisso, eles listaram os sinais de alerta mais importantes que podem significar que é hora de buscar apoio médico:
- Dificuldade para mamar
- Febre alta e persistente: quadros febris que permaneçam por mais de 48 horas podem sinalizar que algo está errado
- Dificuldade para respirar: a falta de ar é o principal sintoma de um quadro mais grave. Nas crianças que ainda não conseguem falar, os pais precisam ficar atentos à musculatura que ajuda na respiração. Caso o bebê estiver fazendo esforço para respirar, os músculos do pescoço, os que ficam acima do pescoço e aqueles que se localizam entre as costelas se retraem
- Extremidades (lábios e dedos) arroxeados: em uma fase mais avançada de um quadro de falta de ar, a criança pode apresentar lábios e pontas dos dedos arroxeados
Como proteger as crianças dos vírus respiratórios?
Alguns dos vírus respiratórios que acometem crianças mais novas são inofensivos para a grande maioria dos adultos. Por isso, de acordo com os médicos, quem tem filhos pequenos precisa ficar especialmente vigilante, sobretudo se a criança tiver alguma comorbidade, como cardiopatias ou problemas pulmonares e imunológicos.
- Uso de máscara: toda pessoa que tiver sintoma respiratório deve usar máscara, de preferência do tipo PFF2/N95. Pessoas que vivem com indivíduos de grupo de risco também são orientados a usar a proteção facial quando estiverem fora de casa, em ambientes fechados com pouca ventilação e de aglomeração, como transporte público.
- Higiene das mãos: lavar as mãos com água e sabão também é uma medida que deve ser incentivada entre as crianças maiores. Em relação aos bebês, os pais devem fazer a higiene antes de pegá-los e evitar que pessoas fora do círculo de convivência tenham contato próximo com eles.
- Manter a carteira de vacinação em dia: além das vacinas da covid e da gripe, os médicos destacam que é preciso manter toda carteira de vacinação atualizada, pois esse período do ano também é marcado por quadros respiratórios preveníveis e causados por bactérias, por exemplo.
- Umidade: garantir a umidificação do ar da casa e quarto da criança pode ajudar no alívio de desconfortos, como a congestão nasal.