Precisamos gostar dos nossos filhos, além de amá-los, diz psicoterapeuta britânica; entenda


Philippa Perry fala sobre a importância de ver o mundo pelos olhos da criança e ensina a criar limites com gentiliza

Por Leon Ferrari
Atualização:
Foto: Léo Souza/Estadão
Entrevista comPhilippa PerryPsicoterapeuta e escritora

Logo nas primeiras páginas de “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” (Companhia das Letras), a psicoterapeuta britânica Philippa Perry afirma que a obra foi criada “para os pais que não apenas amam seus filhos, mas querem gostar deles também”.

À primeira vista, pode parecer confuso, afinal, é possível amar alguém sem gostar? Para ela, sim. “Quando você gosta de alguém, sente-se em sintonia com essa pessoa. Se você não gosta de alguém, só quer resolver a pessoa, como se fosse uma tarefa ou um problema”, explica.

Para gostar de alguém, é preciso se colocar no lugar da pessoa para ver o mundo de outra forma. No caso das crianças, diz, é preciso imaginar como é ter pequenas e cansadas pernas, e o sentimento de solidão à noite, quando são postas para dormir, por exemplo. “Precisamos imaginar como eles se sentem com isso, e precisamos sentir isso com eles.”

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Pela primeira vez no País, ela recebeu o Estadão na The School of Life Brasil, na Vila Madalena, em São Paulo. A convite do braço brasileiro da organização educacional internacional — da qual é embaixadora —, Philippa veio para palestrar na 6ª edição do G.A.T.E. Academy - Global Access Through Education, que ocorreu na quinta-feira, 28, promovido pelo STB, consultoria em educação internacional, em parceria com o JK Iguatemi.

Também autora dos livros “Como manter a mente sã” e “O livro que você gostaria que todas as pessoas que você ama lessem (e talvez algumas que você não ame)” — ambos traduzidos para o português e publicados pela Companhia das Letras — e de uma coluna semanal no jornal The Guardian em que ajuda leitores a lidarem com problemas pessoais, ela conversou sobre como ajudar crianças a entenderem seus sentimentos e criar limites de forma gentil, sem deixar de oferecer um espaço seguro para os pequenos.

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Confira a entrevista:

Você diz que “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” é para pais que ‘não apenas amam seus filhos, mas querem gostar deles também’. É possível amar uma pessoa sem gostar dela? Quanto essa contradição pode prejudicar o desenvolvimento de uma criança?

Sim. Precisamos gostar dos nossos filhos, assim como amamos eles. Muitas vezes, amamos porque são parte de nós, porque temos um vínculo que é, de certa forma, biológico. Mas, para gostarmos de nossos filhos, precisamos ver o mundo do ponto de vista deles, além do nosso.

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Precisamos imaginar como é ter pequenas perninhas cansadas nos sustentando. Precisamos imaginar como é sentir-se completamente sozinho e viver apenas no presente quando colocamos as crianças para dormir à noite. Precisamos imaginar como eles se sentem com isso, e precisamos sentir isso com eles.

Quando você gosta de alguém, vivencia os sentimentos em sintonia com essa pessoa. Se você não gosta de alguém, só quer resolver a pessoa, como se fosse uma tarefa ou um problema. Se você é tratado como uma tarefa ou um problema, isso vai afetá-lo. Você pode acabar sentindo que é menos do que bom o suficiente. Pode não se sentir aceito. Para nos sentirmos aceitos, precisamos que gostem de nós.

'Para nos sentirmos aceitos, precisamos que gostem de nós', diz Philippa Foto: Léo Souza/Estadão
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A senhora escreve que os rótulos de “bons pais”/”maus pais” não ajudam em nada…

Não suporto esses rótulos. Sou uma boa mãe? Sou um bom pai? Não suporto esses rótulos porque eles tornam a parentalidade uma performance. Eu performei bem? Pare com isso. Simplesmente pare com isso.

Não se trata de ser uma boa mãe ou um bom pai, é sobre ter o melhor relacionamento possível com seu filho. Precisamos focar em coisas como: “Eu tenho um bom relacionamento com meu filho?” “Eu gosto do meu filho?”

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Não é sobre ser bom. Não é sobre você. A dinâmica tem que ser centrada no relacionamento, não em “eu sou muito bom nisso”.

Não vamos tomar um café com um amigo e saímos pensando: “Eu arrasei nesse café”. Porque isso soa como “eu consegui manipular aquele amigo”. Não é sobre isso. Não é assim que devemos pensar sobre essa relação.

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Erros vão fazer parte do processo. Como os pais podem lidar com os erros que cometem com os filhos e quanto isso pode ser importante para o desenvolvimento das crianças?

Vamos errar. Vamos entender nossos filhos de forma errada. Vamos dar informações erradas. E, às vezes, aquela pequena criança vai dizer: “Não, papai, você está errado.” “Você errou.” E o pai precisa olhar bem para si mesmo e admitir: “Sim, eu realmente errei.”

Às vezes, me perguntam: “Mas se eu disser ao meu filho que estou errado ou que cometi um erro, ele não vai se sentir inseguro?” Eu respondo: “Não, você estará validando os instintos dele.” Ele sabe que você errou. Então, se você diz que estava certo quando estava errado, você está confundindo os instintos do seu filho. E são esses instintos que o mantêm seguro. Se você diz que preto é branco, a criança sabe que não é isso, mas é levada a acreditar no contrário, você só vai confundir a cabeça dela. Não faça isso.

O maior erro que cometi — ou pelo menos o que lembro agora, provavelmente fiz coisas piores — foi quando eu estava caminhando com minha filha, quando ela tinha 8 anos, e ela estava cansada, queria voltar para casa. Eu disse: “Ok, você pode voltar, eu vou continuar.” Estávamos no interior e, quando cheguei em casa, ela disse: “Uma vaca me derrubou.” As vacas de lá eram muito dóceis, não selvagens. Então pensei: “Ah, eu sei o que aconteceu. Ela ficou com medo no caminho de volta e criou uma narrativa para justificar o medo.” Cabeça de psicanalista. Então perguntei: “Você sentiu medo no caminho de volta?”. Ela respondeu: “Não, não senti medo. Uma vaca me derrubou”. Eu disse: “Aham, ok”.

Ela sabia que eu não tinha acreditado. Claro, as vacas não eram agressivas, se você se aproxima delas, geralmente fogem. Algumas semanas depois, meu cadarço desamarrou no campo. Eu me agachei para amarrar, uma vaca veio com a cabeça e me derrubou. Pensei: “Entendi”. Quando você é mais baixo que as vacas, elas pensam que podem te vencer e acabam te derrubando. Não de forma agressiva, mas como se estivessem brincando ou te empurrando. E pensei: “Ela é mais baixa, então, claro, foi derrubada”.

Falei para ela: “Sabe, eu não acreditei em você sobre a vaca”. E ela respondeu: “Eu sei que você não acreditou”. Eu disse: “Sinto muito, eu errei”. E expliquei: “As vacas te derrubam quando acham que são maiores que você. Embora todas as vacas sejam maiores que nós, elas parecem medir isso só pela altura.” E contei o que aconteceu comigo, quando estava agachada. Disse para ela que não sabia disso sobre as vacas antes. Depois, expliquei: “Sempre que uma vaca se aproximar, levante as mãos acima da cabeça. Elas vão achar que você é maior que elas.”

Mas ela se lembrou disso por muito tempo. A última vez que tive que me desculpar por isso, ela tinha uns 17 anos. “Você não acreditou em mim naquela vez em que a vaca me derrubou.” Então, você precisa admitir quando está errado e manter a mente aberta quando uma criança conta algo que parece inacreditável. Sei que as crianças mentem o tempo todo. É o superpoder delas e, às vezes, é bem difícil distinguir a diferença.

A revista científica The Lancet Psychiatry publicou um relatório alertando que a saúde mental de jovens de 12 a 25 anos vem se deteriorando e entrou em uma “fase perigosa”. O que está acontecendo?

O que está acontecendo é que estamos ficando excessivamente ansiosos com sentimentos desconfortáveis. Estamos acreditando que deveríamos nos sentir felizes, contentes, sem medo e sem estresse o tempo todo. E quando experimentamos sentimentos desconfortáveis normais — um pouco de estresse, preocupação ou insegurança —, em vez de aceitar que isso faz parte da vida, que o sofrimento faz parte da vida, e que esses são sentimentos desconfortáveis, estamos patologizando-os. Estamos dando a eles rótulos, como se fossem transtornos de saúde mental.

Em vez de pensar “estou me sentindo triste porque algumas coisas não estão dando certo para mim” e em vez de conter esses sentimentos desconfortáveis, os pais entram em pânico e terceirizam seus filhos para que outras instâncias lidem com os sentimentos desconfortáveis daquelas crianças. Tristeza, estresse e desespero são completamente normais e uma resposta saudável ao mundo em que vivemos. Mas estamos patologizando esses sentimentos.

Eu vou além: estamos comodificando esses sentimentos ao transformar angústias normais em patologias. Estamos criando um problema e buscamos instâncias externas para resolvê-lo. E esses agentes estão comodificando o sofrimento, ganhando dinheiro com ele.

As empresas farmacêuticas, por exemplo, lucram com medicamentos para crianças que nunca demonstraram melhora no longo prazo. Claro, no curto prazo pode haver alguma melhora, mas os medicamentos não ensinam às crianças que seus sentimentos são normais e que elas podem lidar com eles. Não estamos ensinando resiliência ao sugerir que um sentimento desconfortável não é normal.

Mas algumas crianças podem precisar e se beneficiar deles…

Deixe-me questionar isso um pouco. Nos anos 1980, apenas uma em mil crianças era diagnosticada com algo como TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). O que aconteceu foi que os critérios para definir o TDAH se tornaram cada vez mais amplos. E agora os neurodivergentes estão ultrapassando os neurotípicos. As crianças mudaram ou fomos nós que mudamos nossa visão sobre crianças que gostam de correr e têm dificuldade para se concentrar e estamos patologizando isso?

Sim, estamos patologizando. Talvez uma em mil crianças realmente se beneficie de medicamentos como Ritalina. Mas, mesmo com isso, acredito que existem maneiras melhores de lidar com nossas crianças enquanto elas passam por fases e etapas em que têm dificuldade de concentração. Além disso, estamos estabelecendo parâmetros muito estreitos sobre o que é normal para crianças. Queremos que elas se encaixem, não causem problemas e sigam um sistema escolar que talvez nem mesmo seja adequado para elas.

'À medida que seu filho cresce, ofereça sempre um espaço seguro para os sentimentos dele', diz Philippa Foto: Léo Souza/Estadão

Não estamos permitindo que crianças tenham sentimentos que categorizamos como ruins ou o problema é que estamos diagnosticando em excesso?

Ambos. Estamos ficando com medo de sentimentos desconfortáveis. E as redes sociais parecem criar marcas específicas para certos tipos de transtornos mentais. TDAH, por exemplo. Não estou falando sobre angústia muito, muito grave. Isso sempre existiu. Mas coisas como ideação suicida são ampliadas pelas redes sociais. As pessoas veem coisas nas redes sociais e pensam: “Eu tenho isso, eu tenho isso, eu tenho isso”. E isso é contagioso. É uma contaminação social, e estamos exigindo que os médicos resolvam. Muito disso pode ser resolvido em casa, se os pais tiverem confiança para ouvir, acolher e não entrar em pânico.

Para conter os sentimentos do seu filho, você precisa ser capaz de gerenciar os seus próprios. E existem três maneiras principais de lidar com os sentimentos.

Suponha que seu filho venha até você com um dedo cortado. Uma criança pequena chega e diz: “Eu machuquei meu dedo, está cortado”. As três formas de lidar com isso são:

  1. “Isso é só um arranhão, não dói.” Você afasta a criança e ela fica sozinha com o sentimento dela, o que não é bom.
  2. “Oh, meu Deus, você cortou seu dedo! Oh, não, vamos para o hospital! Oh, meu Deus, isso é uma tragédia!” Isso amplifica o sofrimento da criança.
  3. Abaixar-se no nível da criança e dizer: “Oh, você cortou o dedo? Um arranhão assim pode realmente doer. Deixe-me colocar um curativo e dar um beijinho. Pode ser?”

À medida que seu filho cresce, ofereça sempre um espaço seguro para os sentimentos dele. Não estou falando sobre não ter limites. As pessoas acham que, porque eu acredito em ser gentil, gostar dos filhos e ser amigo deles, isso significa que não acredito em limites. Eu não sou contra limites. Limites são realmente importantes.

E você deve estabelecer seus limites antes de ultrapassá-los. Se você está muito cansado para brincar com seu filho às 20h30, e vai perder a paciência e dizer “não aguento mais”, então você precisa garantir que ele esteja dormindo às 20h. Você faz isso dizendo a ele: “Quero que você esteja na cama às 20h e dormindo, porque estou muito cansado para continuar com isso.”

Você não define a criança quando estabelece um limite, você se define. Então, se você ficar muito cansado brincando no parque com seu filho, diga: “Vamos embora em dois minutos, porque estou com frio e cansado”. Você não diz: “Vamos embora em dois minutos porque você já teve o suficiente”. Nós nos definimos quando colocamos um limite, não a criança.

Se definirmos nossos filhos e dissermos “você sempre faz uma cena sobre isso”, “pare de fazer cena”, isso não é muito gentil. Mas, se você disser “eu não consigo ouvir mais sobre isso, eu vejo que você está muito chateado, mas eu simplesmente não quero ouvir mais sobre isso”, é diferente. Não estamos dizendo que eles são ruins, estamos nos definindo de forma que continuamos acessíveis. Se dissermos “eu sinto que meu limite é...”, então eles podem confiar em nós.

Logo nas primeiras páginas de “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” (Companhia das Letras), a psicoterapeuta britânica Philippa Perry afirma que a obra foi criada “para os pais que não apenas amam seus filhos, mas querem gostar deles também”.

À primeira vista, pode parecer confuso, afinal, é possível amar alguém sem gostar? Para ela, sim. “Quando você gosta de alguém, sente-se em sintonia com essa pessoa. Se você não gosta de alguém, só quer resolver a pessoa, como se fosse uma tarefa ou um problema”, explica.

Para gostar de alguém, é preciso se colocar no lugar da pessoa para ver o mundo de outra forma. No caso das crianças, diz, é preciso imaginar como é ter pequenas e cansadas pernas, e o sentimento de solidão à noite, quando são postas para dormir, por exemplo. “Precisamos imaginar como eles se sentem com isso, e precisamos sentir isso com eles.”

Pela primeira vez no País, ela recebeu o Estadão na The School of Life Brasil, na Vila Madalena, em São Paulo. A convite do braço brasileiro da organização educacional internacional — da qual é embaixadora —, Philippa veio para palestrar na 6ª edição do G.A.T.E. Academy - Global Access Through Education, que ocorreu na quinta-feira, 28, promovido pelo STB, consultoria em educação internacional, em parceria com o JK Iguatemi.

Também autora dos livros “Como manter a mente sã” e “O livro que você gostaria que todas as pessoas que você ama lessem (e talvez algumas que você não ame)” — ambos traduzidos para o português e publicados pela Companhia das Letras — e de uma coluna semanal no jornal The Guardian em que ajuda leitores a lidarem com problemas pessoais, ela conversou sobre como ajudar crianças a entenderem seus sentimentos e criar limites de forma gentil, sem deixar de oferecer um espaço seguro para os pequenos.

Confira a entrevista:

Você diz que “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” é para pais que ‘não apenas amam seus filhos, mas querem gostar deles também’. É possível amar uma pessoa sem gostar dela? Quanto essa contradição pode prejudicar o desenvolvimento de uma criança?

Sim. Precisamos gostar dos nossos filhos, assim como amamos eles. Muitas vezes, amamos porque são parte de nós, porque temos um vínculo que é, de certa forma, biológico. Mas, para gostarmos de nossos filhos, precisamos ver o mundo do ponto de vista deles, além do nosso.

Precisamos imaginar como é ter pequenas perninhas cansadas nos sustentando. Precisamos imaginar como é sentir-se completamente sozinho e viver apenas no presente quando colocamos as crianças para dormir à noite. Precisamos imaginar como eles se sentem com isso, e precisamos sentir isso com eles.

Quando você gosta de alguém, vivencia os sentimentos em sintonia com essa pessoa. Se você não gosta de alguém, só quer resolver a pessoa, como se fosse uma tarefa ou um problema. Se você é tratado como uma tarefa ou um problema, isso vai afetá-lo. Você pode acabar sentindo que é menos do que bom o suficiente. Pode não se sentir aceito. Para nos sentirmos aceitos, precisamos que gostem de nós.

'Para nos sentirmos aceitos, precisamos que gostem de nós', diz Philippa Foto: Léo Souza/Estadão

A senhora escreve que os rótulos de “bons pais”/”maus pais” não ajudam em nada…

Não suporto esses rótulos. Sou uma boa mãe? Sou um bom pai? Não suporto esses rótulos porque eles tornam a parentalidade uma performance. Eu performei bem? Pare com isso. Simplesmente pare com isso.

Não se trata de ser uma boa mãe ou um bom pai, é sobre ter o melhor relacionamento possível com seu filho. Precisamos focar em coisas como: “Eu tenho um bom relacionamento com meu filho?” “Eu gosto do meu filho?”

Não é sobre ser bom. Não é sobre você. A dinâmica tem que ser centrada no relacionamento, não em “eu sou muito bom nisso”.

Não vamos tomar um café com um amigo e saímos pensando: “Eu arrasei nesse café”. Porque isso soa como “eu consegui manipular aquele amigo”. Não é sobre isso. Não é assim que devemos pensar sobre essa relação.

Erros vão fazer parte do processo. Como os pais podem lidar com os erros que cometem com os filhos e quanto isso pode ser importante para o desenvolvimento das crianças?

Vamos errar. Vamos entender nossos filhos de forma errada. Vamos dar informações erradas. E, às vezes, aquela pequena criança vai dizer: “Não, papai, você está errado.” “Você errou.” E o pai precisa olhar bem para si mesmo e admitir: “Sim, eu realmente errei.”

Às vezes, me perguntam: “Mas se eu disser ao meu filho que estou errado ou que cometi um erro, ele não vai se sentir inseguro?” Eu respondo: “Não, você estará validando os instintos dele.” Ele sabe que você errou. Então, se você diz que estava certo quando estava errado, você está confundindo os instintos do seu filho. E são esses instintos que o mantêm seguro. Se você diz que preto é branco, a criança sabe que não é isso, mas é levada a acreditar no contrário, você só vai confundir a cabeça dela. Não faça isso.

O maior erro que cometi — ou pelo menos o que lembro agora, provavelmente fiz coisas piores — foi quando eu estava caminhando com minha filha, quando ela tinha 8 anos, e ela estava cansada, queria voltar para casa. Eu disse: “Ok, você pode voltar, eu vou continuar.” Estávamos no interior e, quando cheguei em casa, ela disse: “Uma vaca me derrubou.” As vacas de lá eram muito dóceis, não selvagens. Então pensei: “Ah, eu sei o que aconteceu. Ela ficou com medo no caminho de volta e criou uma narrativa para justificar o medo.” Cabeça de psicanalista. Então perguntei: “Você sentiu medo no caminho de volta?”. Ela respondeu: “Não, não senti medo. Uma vaca me derrubou”. Eu disse: “Aham, ok”.

Ela sabia que eu não tinha acreditado. Claro, as vacas não eram agressivas, se você se aproxima delas, geralmente fogem. Algumas semanas depois, meu cadarço desamarrou no campo. Eu me agachei para amarrar, uma vaca veio com a cabeça e me derrubou. Pensei: “Entendi”. Quando você é mais baixo que as vacas, elas pensam que podem te vencer e acabam te derrubando. Não de forma agressiva, mas como se estivessem brincando ou te empurrando. E pensei: “Ela é mais baixa, então, claro, foi derrubada”.

Falei para ela: “Sabe, eu não acreditei em você sobre a vaca”. E ela respondeu: “Eu sei que você não acreditou”. Eu disse: “Sinto muito, eu errei”. E expliquei: “As vacas te derrubam quando acham que são maiores que você. Embora todas as vacas sejam maiores que nós, elas parecem medir isso só pela altura.” E contei o que aconteceu comigo, quando estava agachada. Disse para ela que não sabia disso sobre as vacas antes. Depois, expliquei: “Sempre que uma vaca se aproximar, levante as mãos acima da cabeça. Elas vão achar que você é maior que elas.”

Mas ela se lembrou disso por muito tempo. A última vez que tive que me desculpar por isso, ela tinha uns 17 anos. “Você não acreditou em mim naquela vez em que a vaca me derrubou.” Então, você precisa admitir quando está errado e manter a mente aberta quando uma criança conta algo que parece inacreditável. Sei que as crianças mentem o tempo todo. É o superpoder delas e, às vezes, é bem difícil distinguir a diferença.

A revista científica The Lancet Psychiatry publicou um relatório alertando que a saúde mental de jovens de 12 a 25 anos vem se deteriorando e entrou em uma “fase perigosa”. O que está acontecendo?

O que está acontecendo é que estamos ficando excessivamente ansiosos com sentimentos desconfortáveis. Estamos acreditando que deveríamos nos sentir felizes, contentes, sem medo e sem estresse o tempo todo. E quando experimentamos sentimentos desconfortáveis normais — um pouco de estresse, preocupação ou insegurança —, em vez de aceitar que isso faz parte da vida, que o sofrimento faz parte da vida, e que esses são sentimentos desconfortáveis, estamos patologizando-os. Estamos dando a eles rótulos, como se fossem transtornos de saúde mental.

Em vez de pensar “estou me sentindo triste porque algumas coisas não estão dando certo para mim” e em vez de conter esses sentimentos desconfortáveis, os pais entram em pânico e terceirizam seus filhos para que outras instâncias lidem com os sentimentos desconfortáveis daquelas crianças. Tristeza, estresse e desespero são completamente normais e uma resposta saudável ao mundo em que vivemos. Mas estamos patologizando esses sentimentos.

Eu vou além: estamos comodificando esses sentimentos ao transformar angústias normais em patologias. Estamos criando um problema e buscamos instâncias externas para resolvê-lo. E esses agentes estão comodificando o sofrimento, ganhando dinheiro com ele.

As empresas farmacêuticas, por exemplo, lucram com medicamentos para crianças que nunca demonstraram melhora no longo prazo. Claro, no curto prazo pode haver alguma melhora, mas os medicamentos não ensinam às crianças que seus sentimentos são normais e que elas podem lidar com eles. Não estamos ensinando resiliência ao sugerir que um sentimento desconfortável não é normal.

Mas algumas crianças podem precisar e se beneficiar deles…

Deixe-me questionar isso um pouco. Nos anos 1980, apenas uma em mil crianças era diagnosticada com algo como TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). O que aconteceu foi que os critérios para definir o TDAH se tornaram cada vez mais amplos. E agora os neurodivergentes estão ultrapassando os neurotípicos. As crianças mudaram ou fomos nós que mudamos nossa visão sobre crianças que gostam de correr e têm dificuldade para se concentrar e estamos patologizando isso?

Sim, estamos patologizando. Talvez uma em mil crianças realmente se beneficie de medicamentos como Ritalina. Mas, mesmo com isso, acredito que existem maneiras melhores de lidar com nossas crianças enquanto elas passam por fases e etapas em que têm dificuldade de concentração. Além disso, estamos estabelecendo parâmetros muito estreitos sobre o que é normal para crianças. Queremos que elas se encaixem, não causem problemas e sigam um sistema escolar que talvez nem mesmo seja adequado para elas.

'À medida que seu filho cresce, ofereça sempre um espaço seguro para os sentimentos dele', diz Philippa Foto: Léo Souza/Estadão

Não estamos permitindo que crianças tenham sentimentos que categorizamos como ruins ou o problema é que estamos diagnosticando em excesso?

Ambos. Estamos ficando com medo de sentimentos desconfortáveis. E as redes sociais parecem criar marcas específicas para certos tipos de transtornos mentais. TDAH, por exemplo. Não estou falando sobre angústia muito, muito grave. Isso sempre existiu. Mas coisas como ideação suicida são ampliadas pelas redes sociais. As pessoas veem coisas nas redes sociais e pensam: “Eu tenho isso, eu tenho isso, eu tenho isso”. E isso é contagioso. É uma contaminação social, e estamos exigindo que os médicos resolvam. Muito disso pode ser resolvido em casa, se os pais tiverem confiança para ouvir, acolher e não entrar em pânico.

Para conter os sentimentos do seu filho, você precisa ser capaz de gerenciar os seus próprios. E existem três maneiras principais de lidar com os sentimentos.

Suponha que seu filho venha até você com um dedo cortado. Uma criança pequena chega e diz: “Eu machuquei meu dedo, está cortado”. As três formas de lidar com isso são:

  1. “Isso é só um arranhão, não dói.” Você afasta a criança e ela fica sozinha com o sentimento dela, o que não é bom.
  2. “Oh, meu Deus, você cortou seu dedo! Oh, não, vamos para o hospital! Oh, meu Deus, isso é uma tragédia!” Isso amplifica o sofrimento da criança.
  3. Abaixar-se no nível da criança e dizer: “Oh, você cortou o dedo? Um arranhão assim pode realmente doer. Deixe-me colocar um curativo e dar um beijinho. Pode ser?”

À medida que seu filho cresce, ofereça sempre um espaço seguro para os sentimentos dele. Não estou falando sobre não ter limites. As pessoas acham que, porque eu acredito em ser gentil, gostar dos filhos e ser amigo deles, isso significa que não acredito em limites. Eu não sou contra limites. Limites são realmente importantes.

E você deve estabelecer seus limites antes de ultrapassá-los. Se você está muito cansado para brincar com seu filho às 20h30, e vai perder a paciência e dizer “não aguento mais”, então você precisa garantir que ele esteja dormindo às 20h. Você faz isso dizendo a ele: “Quero que você esteja na cama às 20h e dormindo, porque estou muito cansado para continuar com isso.”

Você não define a criança quando estabelece um limite, você se define. Então, se você ficar muito cansado brincando no parque com seu filho, diga: “Vamos embora em dois minutos, porque estou com frio e cansado”. Você não diz: “Vamos embora em dois minutos porque você já teve o suficiente”. Nós nos definimos quando colocamos um limite, não a criança.

Se definirmos nossos filhos e dissermos “você sempre faz uma cena sobre isso”, “pare de fazer cena”, isso não é muito gentil. Mas, se você disser “eu não consigo ouvir mais sobre isso, eu vejo que você está muito chateado, mas eu simplesmente não quero ouvir mais sobre isso”, é diferente. Não estamos dizendo que eles são ruins, estamos nos definindo de forma que continuamos acessíveis. Se dissermos “eu sinto que meu limite é...”, então eles podem confiar em nós.

Logo nas primeiras páginas de “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” (Companhia das Letras), a psicoterapeuta britânica Philippa Perry afirma que a obra foi criada “para os pais que não apenas amam seus filhos, mas querem gostar deles também”.

À primeira vista, pode parecer confuso, afinal, é possível amar alguém sem gostar? Para ela, sim. “Quando você gosta de alguém, sente-se em sintonia com essa pessoa. Se você não gosta de alguém, só quer resolver a pessoa, como se fosse uma tarefa ou um problema”, explica.

Para gostar de alguém, é preciso se colocar no lugar da pessoa para ver o mundo de outra forma. No caso das crianças, diz, é preciso imaginar como é ter pequenas e cansadas pernas, e o sentimento de solidão à noite, quando são postas para dormir, por exemplo. “Precisamos imaginar como eles se sentem com isso, e precisamos sentir isso com eles.”

Pela primeira vez no País, ela recebeu o Estadão na The School of Life Brasil, na Vila Madalena, em São Paulo. A convite do braço brasileiro da organização educacional internacional — da qual é embaixadora —, Philippa veio para palestrar na 6ª edição do G.A.T.E. Academy - Global Access Through Education, que ocorreu na quinta-feira, 28, promovido pelo STB, consultoria em educação internacional, em parceria com o JK Iguatemi.

Também autora dos livros “Como manter a mente sã” e “O livro que você gostaria que todas as pessoas que você ama lessem (e talvez algumas que você não ame)” — ambos traduzidos para o português e publicados pela Companhia das Letras — e de uma coluna semanal no jornal The Guardian em que ajuda leitores a lidarem com problemas pessoais, ela conversou sobre como ajudar crianças a entenderem seus sentimentos e criar limites de forma gentil, sem deixar de oferecer um espaço seguro para os pequenos.

Confira a entrevista:

Você diz que “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” é para pais que ‘não apenas amam seus filhos, mas querem gostar deles também’. É possível amar uma pessoa sem gostar dela? Quanto essa contradição pode prejudicar o desenvolvimento de uma criança?

Sim. Precisamos gostar dos nossos filhos, assim como amamos eles. Muitas vezes, amamos porque são parte de nós, porque temos um vínculo que é, de certa forma, biológico. Mas, para gostarmos de nossos filhos, precisamos ver o mundo do ponto de vista deles, além do nosso.

Precisamos imaginar como é ter pequenas perninhas cansadas nos sustentando. Precisamos imaginar como é sentir-se completamente sozinho e viver apenas no presente quando colocamos as crianças para dormir à noite. Precisamos imaginar como eles se sentem com isso, e precisamos sentir isso com eles.

Quando você gosta de alguém, vivencia os sentimentos em sintonia com essa pessoa. Se você não gosta de alguém, só quer resolver a pessoa, como se fosse uma tarefa ou um problema. Se você é tratado como uma tarefa ou um problema, isso vai afetá-lo. Você pode acabar sentindo que é menos do que bom o suficiente. Pode não se sentir aceito. Para nos sentirmos aceitos, precisamos que gostem de nós.

'Para nos sentirmos aceitos, precisamos que gostem de nós', diz Philippa Foto: Léo Souza/Estadão

A senhora escreve que os rótulos de “bons pais”/”maus pais” não ajudam em nada…

Não suporto esses rótulos. Sou uma boa mãe? Sou um bom pai? Não suporto esses rótulos porque eles tornam a parentalidade uma performance. Eu performei bem? Pare com isso. Simplesmente pare com isso.

Não se trata de ser uma boa mãe ou um bom pai, é sobre ter o melhor relacionamento possível com seu filho. Precisamos focar em coisas como: “Eu tenho um bom relacionamento com meu filho?” “Eu gosto do meu filho?”

Não é sobre ser bom. Não é sobre você. A dinâmica tem que ser centrada no relacionamento, não em “eu sou muito bom nisso”.

Não vamos tomar um café com um amigo e saímos pensando: “Eu arrasei nesse café”. Porque isso soa como “eu consegui manipular aquele amigo”. Não é sobre isso. Não é assim que devemos pensar sobre essa relação.

Erros vão fazer parte do processo. Como os pais podem lidar com os erros que cometem com os filhos e quanto isso pode ser importante para o desenvolvimento das crianças?

Vamos errar. Vamos entender nossos filhos de forma errada. Vamos dar informações erradas. E, às vezes, aquela pequena criança vai dizer: “Não, papai, você está errado.” “Você errou.” E o pai precisa olhar bem para si mesmo e admitir: “Sim, eu realmente errei.”

Às vezes, me perguntam: “Mas se eu disser ao meu filho que estou errado ou que cometi um erro, ele não vai se sentir inseguro?” Eu respondo: “Não, você estará validando os instintos dele.” Ele sabe que você errou. Então, se você diz que estava certo quando estava errado, você está confundindo os instintos do seu filho. E são esses instintos que o mantêm seguro. Se você diz que preto é branco, a criança sabe que não é isso, mas é levada a acreditar no contrário, você só vai confundir a cabeça dela. Não faça isso.

O maior erro que cometi — ou pelo menos o que lembro agora, provavelmente fiz coisas piores — foi quando eu estava caminhando com minha filha, quando ela tinha 8 anos, e ela estava cansada, queria voltar para casa. Eu disse: “Ok, você pode voltar, eu vou continuar.” Estávamos no interior e, quando cheguei em casa, ela disse: “Uma vaca me derrubou.” As vacas de lá eram muito dóceis, não selvagens. Então pensei: “Ah, eu sei o que aconteceu. Ela ficou com medo no caminho de volta e criou uma narrativa para justificar o medo.” Cabeça de psicanalista. Então perguntei: “Você sentiu medo no caminho de volta?”. Ela respondeu: “Não, não senti medo. Uma vaca me derrubou”. Eu disse: “Aham, ok”.

Ela sabia que eu não tinha acreditado. Claro, as vacas não eram agressivas, se você se aproxima delas, geralmente fogem. Algumas semanas depois, meu cadarço desamarrou no campo. Eu me agachei para amarrar, uma vaca veio com a cabeça e me derrubou. Pensei: “Entendi”. Quando você é mais baixo que as vacas, elas pensam que podem te vencer e acabam te derrubando. Não de forma agressiva, mas como se estivessem brincando ou te empurrando. E pensei: “Ela é mais baixa, então, claro, foi derrubada”.

Falei para ela: “Sabe, eu não acreditei em você sobre a vaca”. E ela respondeu: “Eu sei que você não acreditou”. Eu disse: “Sinto muito, eu errei”. E expliquei: “As vacas te derrubam quando acham que são maiores que você. Embora todas as vacas sejam maiores que nós, elas parecem medir isso só pela altura.” E contei o que aconteceu comigo, quando estava agachada. Disse para ela que não sabia disso sobre as vacas antes. Depois, expliquei: “Sempre que uma vaca se aproximar, levante as mãos acima da cabeça. Elas vão achar que você é maior que elas.”

Mas ela se lembrou disso por muito tempo. A última vez que tive que me desculpar por isso, ela tinha uns 17 anos. “Você não acreditou em mim naquela vez em que a vaca me derrubou.” Então, você precisa admitir quando está errado e manter a mente aberta quando uma criança conta algo que parece inacreditável. Sei que as crianças mentem o tempo todo. É o superpoder delas e, às vezes, é bem difícil distinguir a diferença.

A revista científica The Lancet Psychiatry publicou um relatório alertando que a saúde mental de jovens de 12 a 25 anos vem se deteriorando e entrou em uma “fase perigosa”. O que está acontecendo?

O que está acontecendo é que estamos ficando excessivamente ansiosos com sentimentos desconfortáveis. Estamos acreditando que deveríamos nos sentir felizes, contentes, sem medo e sem estresse o tempo todo. E quando experimentamos sentimentos desconfortáveis normais — um pouco de estresse, preocupação ou insegurança —, em vez de aceitar que isso faz parte da vida, que o sofrimento faz parte da vida, e que esses são sentimentos desconfortáveis, estamos patologizando-os. Estamos dando a eles rótulos, como se fossem transtornos de saúde mental.

Em vez de pensar “estou me sentindo triste porque algumas coisas não estão dando certo para mim” e em vez de conter esses sentimentos desconfortáveis, os pais entram em pânico e terceirizam seus filhos para que outras instâncias lidem com os sentimentos desconfortáveis daquelas crianças. Tristeza, estresse e desespero são completamente normais e uma resposta saudável ao mundo em que vivemos. Mas estamos patologizando esses sentimentos.

Eu vou além: estamos comodificando esses sentimentos ao transformar angústias normais em patologias. Estamos criando um problema e buscamos instâncias externas para resolvê-lo. E esses agentes estão comodificando o sofrimento, ganhando dinheiro com ele.

As empresas farmacêuticas, por exemplo, lucram com medicamentos para crianças que nunca demonstraram melhora no longo prazo. Claro, no curto prazo pode haver alguma melhora, mas os medicamentos não ensinam às crianças que seus sentimentos são normais e que elas podem lidar com eles. Não estamos ensinando resiliência ao sugerir que um sentimento desconfortável não é normal.

Mas algumas crianças podem precisar e se beneficiar deles…

Deixe-me questionar isso um pouco. Nos anos 1980, apenas uma em mil crianças era diagnosticada com algo como TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). O que aconteceu foi que os critérios para definir o TDAH se tornaram cada vez mais amplos. E agora os neurodivergentes estão ultrapassando os neurotípicos. As crianças mudaram ou fomos nós que mudamos nossa visão sobre crianças que gostam de correr e têm dificuldade para se concentrar e estamos patologizando isso?

Sim, estamos patologizando. Talvez uma em mil crianças realmente se beneficie de medicamentos como Ritalina. Mas, mesmo com isso, acredito que existem maneiras melhores de lidar com nossas crianças enquanto elas passam por fases e etapas em que têm dificuldade de concentração. Além disso, estamos estabelecendo parâmetros muito estreitos sobre o que é normal para crianças. Queremos que elas se encaixem, não causem problemas e sigam um sistema escolar que talvez nem mesmo seja adequado para elas.

'À medida que seu filho cresce, ofereça sempre um espaço seguro para os sentimentos dele', diz Philippa Foto: Léo Souza/Estadão

Não estamos permitindo que crianças tenham sentimentos que categorizamos como ruins ou o problema é que estamos diagnosticando em excesso?

Ambos. Estamos ficando com medo de sentimentos desconfortáveis. E as redes sociais parecem criar marcas específicas para certos tipos de transtornos mentais. TDAH, por exemplo. Não estou falando sobre angústia muito, muito grave. Isso sempre existiu. Mas coisas como ideação suicida são ampliadas pelas redes sociais. As pessoas veem coisas nas redes sociais e pensam: “Eu tenho isso, eu tenho isso, eu tenho isso”. E isso é contagioso. É uma contaminação social, e estamos exigindo que os médicos resolvam. Muito disso pode ser resolvido em casa, se os pais tiverem confiança para ouvir, acolher e não entrar em pânico.

Para conter os sentimentos do seu filho, você precisa ser capaz de gerenciar os seus próprios. E existem três maneiras principais de lidar com os sentimentos.

Suponha que seu filho venha até você com um dedo cortado. Uma criança pequena chega e diz: “Eu machuquei meu dedo, está cortado”. As três formas de lidar com isso são:

  1. “Isso é só um arranhão, não dói.” Você afasta a criança e ela fica sozinha com o sentimento dela, o que não é bom.
  2. “Oh, meu Deus, você cortou seu dedo! Oh, não, vamos para o hospital! Oh, meu Deus, isso é uma tragédia!” Isso amplifica o sofrimento da criança.
  3. Abaixar-se no nível da criança e dizer: “Oh, você cortou o dedo? Um arranhão assim pode realmente doer. Deixe-me colocar um curativo e dar um beijinho. Pode ser?”

À medida que seu filho cresce, ofereça sempre um espaço seguro para os sentimentos dele. Não estou falando sobre não ter limites. As pessoas acham que, porque eu acredito em ser gentil, gostar dos filhos e ser amigo deles, isso significa que não acredito em limites. Eu não sou contra limites. Limites são realmente importantes.

E você deve estabelecer seus limites antes de ultrapassá-los. Se você está muito cansado para brincar com seu filho às 20h30, e vai perder a paciência e dizer “não aguento mais”, então você precisa garantir que ele esteja dormindo às 20h. Você faz isso dizendo a ele: “Quero que você esteja na cama às 20h e dormindo, porque estou muito cansado para continuar com isso.”

Você não define a criança quando estabelece um limite, você se define. Então, se você ficar muito cansado brincando no parque com seu filho, diga: “Vamos embora em dois minutos, porque estou com frio e cansado”. Você não diz: “Vamos embora em dois minutos porque você já teve o suficiente”. Nós nos definimos quando colocamos um limite, não a criança.

Se definirmos nossos filhos e dissermos “você sempre faz uma cena sobre isso”, “pare de fazer cena”, isso não é muito gentil. Mas, se você disser “eu não consigo ouvir mais sobre isso, eu vejo que você está muito chateado, mas eu simplesmente não quero ouvir mais sobre isso”, é diferente. Não estamos dizendo que eles são ruins, estamos nos definindo de forma que continuamos acessíveis. Se dissermos “eu sinto que meu limite é...”, então eles podem confiar em nós.

Logo nas primeiras páginas de “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” (Companhia das Letras), a psicoterapeuta britânica Philippa Perry afirma que a obra foi criada “para os pais que não apenas amam seus filhos, mas querem gostar deles também”.

À primeira vista, pode parecer confuso, afinal, é possível amar alguém sem gostar? Para ela, sim. “Quando você gosta de alguém, sente-se em sintonia com essa pessoa. Se você não gosta de alguém, só quer resolver a pessoa, como se fosse uma tarefa ou um problema”, explica.

Para gostar de alguém, é preciso se colocar no lugar da pessoa para ver o mundo de outra forma. No caso das crianças, diz, é preciso imaginar como é ter pequenas e cansadas pernas, e o sentimento de solidão à noite, quando são postas para dormir, por exemplo. “Precisamos imaginar como eles se sentem com isso, e precisamos sentir isso com eles.”

Pela primeira vez no País, ela recebeu o Estadão na The School of Life Brasil, na Vila Madalena, em São Paulo. A convite do braço brasileiro da organização educacional internacional — da qual é embaixadora —, Philippa veio para palestrar na 6ª edição do G.A.T.E. Academy - Global Access Through Education, que ocorreu na quinta-feira, 28, promovido pelo STB, consultoria em educação internacional, em parceria com o JK Iguatemi.

Também autora dos livros “Como manter a mente sã” e “O livro que você gostaria que todas as pessoas que você ama lessem (e talvez algumas que você não ame)” — ambos traduzidos para o português e publicados pela Companhia das Letras — e de uma coluna semanal no jornal The Guardian em que ajuda leitores a lidarem com problemas pessoais, ela conversou sobre como ajudar crianças a entenderem seus sentimentos e criar limites de forma gentil, sem deixar de oferecer um espaço seguro para os pequenos.

Confira a entrevista:

Você diz que “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” é para pais que ‘não apenas amam seus filhos, mas querem gostar deles também’. É possível amar uma pessoa sem gostar dela? Quanto essa contradição pode prejudicar o desenvolvimento de uma criança?

Sim. Precisamos gostar dos nossos filhos, assim como amamos eles. Muitas vezes, amamos porque são parte de nós, porque temos um vínculo que é, de certa forma, biológico. Mas, para gostarmos de nossos filhos, precisamos ver o mundo do ponto de vista deles, além do nosso.

Precisamos imaginar como é ter pequenas perninhas cansadas nos sustentando. Precisamos imaginar como é sentir-se completamente sozinho e viver apenas no presente quando colocamos as crianças para dormir à noite. Precisamos imaginar como eles se sentem com isso, e precisamos sentir isso com eles.

Quando você gosta de alguém, vivencia os sentimentos em sintonia com essa pessoa. Se você não gosta de alguém, só quer resolver a pessoa, como se fosse uma tarefa ou um problema. Se você é tratado como uma tarefa ou um problema, isso vai afetá-lo. Você pode acabar sentindo que é menos do que bom o suficiente. Pode não se sentir aceito. Para nos sentirmos aceitos, precisamos que gostem de nós.

'Para nos sentirmos aceitos, precisamos que gostem de nós', diz Philippa Foto: Léo Souza/Estadão

A senhora escreve que os rótulos de “bons pais”/”maus pais” não ajudam em nada…

Não suporto esses rótulos. Sou uma boa mãe? Sou um bom pai? Não suporto esses rótulos porque eles tornam a parentalidade uma performance. Eu performei bem? Pare com isso. Simplesmente pare com isso.

Não se trata de ser uma boa mãe ou um bom pai, é sobre ter o melhor relacionamento possível com seu filho. Precisamos focar em coisas como: “Eu tenho um bom relacionamento com meu filho?” “Eu gosto do meu filho?”

Não é sobre ser bom. Não é sobre você. A dinâmica tem que ser centrada no relacionamento, não em “eu sou muito bom nisso”.

Não vamos tomar um café com um amigo e saímos pensando: “Eu arrasei nesse café”. Porque isso soa como “eu consegui manipular aquele amigo”. Não é sobre isso. Não é assim que devemos pensar sobre essa relação.

Erros vão fazer parte do processo. Como os pais podem lidar com os erros que cometem com os filhos e quanto isso pode ser importante para o desenvolvimento das crianças?

Vamos errar. Vamos entender nossos filhos de forma errada. Vamos dar informações erradas. E, às vezes, aquela pequena criança vai dizer: “Não, papai, você está errado.” “Você errou.” E o pai precisa olhar bem para si mesmo e admitir: “Sim, eu realmente errei.”

Às vezes, me perguntam: “Mas se eu disser ao meu filho que estou errado ou que cometi um erro, ele não vai se sentir inseguro?” Eu respondo: “Não, você estará validando os instintos dele.” Ele sabe que você errou. Então, se você diz que estava certo quando estava errado, você está confundindo os instintos do seu filho. E são esses instintos que o mantêm seguro. Se você diz que preto é branco, a criança sabe que não é isso, mas é levada a acreditar no contrário, você só vai confundir a cabeça dela. Não faça isso.

O maior erro que cometi — ou pelo menos o que lembro agora, provavelmente fiz coisas piores — foi quando eu estava caminhando com minha filha, quando ela tinha 8 anos, e ela estava cansada, queria voltar para casa. Eu disse: “Ok, você pode voltar, eu vou continuar.” Estávamos no interior e, quando cheguei em casa, ela disse: “Uma vaca me derrubou.” As vacas de lá eram muito dóceis, não selvagens. Então pensei: “Ah, eu sei o que aconteceu. Ela ficou com medo no caminho de volta e criou uma narrativa para justificar o medo.” Cabeça de psicanalista. Então perguntei: “Você sentiu medo no caminho de volta?”. Ela respondeu: “Não, não senti medo. Uma vaca me derrubou”. Eu disse: “Aham, ok”.

Ela sabia que eu não tinha acreditado. Claro, as vacas não eram agressivas, se você se aproxima delas, geralmente fogem. Algumas semanas depois, meu cadarço desamarrou no campo. Eu me agachei para amarrar, uma vaca veio com a cabeça e me derrubou. Pensei: “Entendi”. Quando você é mais baixo que as vacas, elas pensam que podem te vencer e acabam te derrubando. Não de forma agressiva, mas como se estivessem brincando ou te empurrando. E pensei: “Ela é mais baixa, então, claro, foi derrubada”.

Falei para ela: “Sabe, eu não acreditei em você sobre a vaca”. E ela respondeu: “Eu sei que você não acreditou”. Eu disse: “Sinto muito, eu errei”. E expliquei: “As vacas te derrubam quando acham que são maiores que você. Embora todas as vacas sejam maiores que nós, elas parecem medir isso só pela altura.” E contei o que aconteceu comigo, quando estava agachada. Disse para ela que não sabia disso sobre as vacas antes. Depois, expliquei: “Sempre que uma vaca se aproximar, levante as mãos acima da cabeça. Elas vão achar que você é maior que elas.”

Mas ela se lembrou disso por muito tempo. A última vez que tive que me desculpar por isso, ela tinha uns 17 anos. “Você não acreditou em mim naquela vez em que a vaca me derrubou.” Então, você precisa admitir quando está errado e manter a mente aberta quando uma criança conta algo que parece inacreditável. Sei que as crianças mentem o tempo todo. É o superpoder delas e, às vezes, é bem difícil distinguir a diferença.

A revista científica The Lancet Psychiatry publicou um relatório alertando que a saúde mental de jovens de 12 a 25 anos vem se deteriorando e entrou em uma “fase perigosa”. O que está acontecendo?

O que está acontecendo é que estamos ficando excessivamente ansiosos com sentimentos desconfortáveis. Estamos acreditando que deveríamos nos sentir felizes, contentes, sem medo e sem estresse o tempo todo. E quando experimentamos sentimentos desconfortáveis normais — um pouco de estresse, preocupação ou insegurança —, em vez de aceitar que isso faz parte da vida, que o sofrimento faz parte da vida, e que esses são sentimentos desconfortáveis, estamos patologizando-os. Estamos dando a eles rótulos, como se fossem transtornos de saúde mental.

Em vez de pensar “estou me sentindo triste porque algumas coisas não estão dando certo para mim” e em vez de conter esses sentimentos desconfortáveis, os pais entram em pânico e terceirizam seus filhos para que outras instâncias lidem com os sentimentos desconfortáveis daquelas crianças. Tristeza, estresse e desespero são completamente normais e uma resposta saudável ao mundo em que vivemos. Mas estamos patologizando esses sentimentos.

Eu vou além: estamos comodificando esses sentimentos ao transformar angústias normais em patologias. Estamos criando um problema e buscamos instâncias externas para resolvê-lo. E esses agentes estão comodificando o sofrimento, ganhando dinheiro com ele.

As empresas farmacêuticas, por exemplo, lucram com medicamentos para crianças que nunca demonstraram melhora no longo prazo. Claro, no curto prazo pode haver alguma melhora, mas os medicamentos não ensinam às crianças que seus sentimentos são normais e que elas podem lidar com eles. Não estamos ensinando resiliência ao sugerir que um sentimento desconfortável não é normal.

Mas algumas crianças podem precisar e se beneficiar deles…

Deixe-me questionar isso um pouco. Nos anos 1980, apenas uma em mil crianças era diagnosticada com algo como TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). O que aconteceu foi que os critérios para definir o TDAH se tornaram cada vez mais amplos. E agora os neurodivergentes estão ultrapassando os neurotípicos. As crianças mudaram ou fomos nós que mudamos nossa visão sobre crianças que gostam de correr e têm dificuldade para se concentrar e estamos patologizando isso?

Sim, estamos patologizando. Talvez uma em mil crianças realmente se beneficie de medicamentos como Ritalina. Mas, mesmo com isso, acredito que existem maneiras melhores de lidar com nossas crianças enquanto elas passam por fases e etapas em que têm dificuldade de concentração. Além disso, estamos estabelecendo parâmetros muito estreitos sobre o que é normal para crianças. Queremos que elas se encaixem, não causem problemas e sigam um sistema escolar que talvez nem mesmo seja adequado para elas.

'À medida que seu filho cresce, ofereça sempre um espaço seguro para os sentimentos dele', diz Philippa Foto: Léo Souza/Estadão

Não estamos permitindo que crianças tenham sentimentos que categorizamos como ruins ou o problema é que estamos diagnosticando em excesso?

Ambos. Estamos ficando com medo de sentimentos desconfortáveis. E as redes sociais parecem criar marcas específicas para certos tipos de transtornos mentais. TDAH, por exemplo. Não estou falando sobre angústia muito, muito grave. Isso sempre existiu. Mas coisas como ideação suicida são ampliadas pelas redes sociais. As pessoas veem coisas nas redes sociais e pensam: “Eu tenho isso, eu tenho isso, eu tenho isso”. E isso é contagioso. É uma contaminação social, e estamos exigindo que os médicos resolvam. Muito disso pode ser resolvido em casa, se os pais tiverem confiança para ouvir, acolher e não entrar em pânico.

Para conter os sentimentos do seu filho, você precisa ser capaz de gerenciar os seus próprios. E existem três maneiras principais de lidar com os sentimentos.

Suponha que seu filho venha até você com um dedo cortado. Uma criança pequena chega e diz: “Eu machuquei meu dedo, está cortado”. As três formas de lidar com isso são:

  1. “Isso é só um arranhão, não dói.” Você afasta a criança e ela fica sozinha com o sentimento dela, o que não é bom.
  2. “Oh, meu Deus, você cortou seu dedo! Oh, não, vamos para o hospital! Oh, meu Deus, isso é uma tragédia!” Isso amplifica o sofrimento da criança.
  3. Abaixar-se no nível da criança e dizer: “Oh, você cortou o dedo? Um arranhão assim pode realmente doer. Deixe-me colocar um curativo e dar um beijinho. Pode ser?”

À medida que seu filho cresce, ofereça sempre um espaço seguro para os sentimentos dele. Não estou falando sobre não ter limites. As pessoas acham que, porque eu acredito em ser gentil, gostar dos filhos e ser amigo deles, isso significa que não acredito em limites. Eu não sou contra limites. Limites são realmente importantes.

E você deve estabelecer seus limites antes de ultrapassá-los. Se você está muito cansado para brincar com seu filho às 20h30, e vai perder a paciência e dizer “não aguento mais”, então você precisa garantir que ele esteja dormindo às 20h. Você faz isso dizendo a ele: “Quero que você esteja na cama às 20h e dormindo, porque estou muito cansado para continuar com isso.”

Você não define a criança quando estabelece um limite, você se define. Então, se você ficar muito cansado brincando no parque com seu filho, diga: “Vamos embora em dois minutos, porque estou com frio e cansado”. Você não diz: “Vamos embora em dois minutos porque você já teve o suficiente”. Nós nos definimos quando colocamos um limite, não a criança.

Se definirmos nossos filhos e dissermos “você sempre faz uma cena sobre isso”, “pare de fazer cena”, isso não é muito gentil. Mas, se você disser “eu não consigo ouvir mais sobre isso, eu vejo que você está muito chateado, mas eu simplesmente não quero ouvir mais sobre isso”, é diferente. Não estamos dizendo que eles são ruins, estamos nos definindo de forma que continuamos acessíveis. Se dissermos “eu sinto que meu limite é...”, então eles podem confiar em nós.

Logo nas primeiras páginas de “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” (Companhia das Letras), a psicoterapeuta britânica Philippa Perry afirma que a obra foi criada “para os pais que não apenas amam seus filhos, mas querem gostar deles também”.

À primeira vista, pode parecer confuso, afinal, é possível amar alguém sem gostar? Para ela, sim. “Quando você gosta de alguém, sente-se em sintonia com essa pessoa. Se você não gosta de alguém, só quer resolver a pessoa, como se fosse uma tarefa ou um problema”, explica.

Para gostar de alguém, é preciso se colocar no lugar da pessoa para ver o mundo de outra forma. No caso das crianças, diz, é preciso imaginar como é ter pequenas e cansadas pernas, e o sentimento de solidão à noite, quando são postas para dormir, por exemplo. “Precisamos imaginar como eles se sentem com isso, e precisamos sentir isso com eles.”

Pela primeira vez no País, ela recebeu o Estadão na The School of Life Brasil, na Vila Madalena, em São Paulo. A convite do braço brasileiro da organização educacional internacional — da qual é embaixadora —, Philippa veio para palestrar na 6ª edição do G.A.T.E. Academy - Global Access Through Education, que ocorreu na quinta-feira, 28, promovido pelo STB, consultoria em educação internacional, em parceria com o JK Iguatemi.

Também autora dos livros “Como manter a mente sã” e “O livro que você gostaria que todas as pessoas que você ama lessem (e talvez algumas que você não ame)” — ambos traduzidos para o português e publicados pela Companhia das Letras — e de uma coluna semanal no jornal The Guardian em que ajuda leitores a lidarem com problemas pessoais, ela conversou sobre como ajudar crianças a entenderem seus sentimentos e criar limites de forma gentil, sem deixar de oferecer um espaço seguro para os pequenos.

Confira a entrevista:

Você diz que “O livro que você gostaria que seus pais tivessem lido” é para pais que ‘não apenas amam seus filhos, mas querem gostar deles também’. É possível amar uma pessoa sem gostar dela? Quanto essa contradição pode prejudicar o desenvolvimento de uma criança?

Sim. Precisamos gostar dos nossos filhos, assim como amamos eles. Muitas vezes, amamos porque são parte de nós, porque temos um vínculo que é, de certa forma, biológico. Mas, para gostarmos de nossos filhos, precisamos ver o mundo do ponto de vista deles, além do nosso.

Precisamos imaginar como é ter pequenas perninhas cansadas nos sustentando. Precisamos imaginar como é sentir-se completamente sozinho e viver apenas no presente quando colocamos as crianças para dormir à noite. Precisamos imaginar como eles se sentem com isso, e precisamos sentir isso com eles.

Quando você gosta de alguém, vivencia os sentimentos em sintonia com essa pessoa. Se você não gosta de alguém, só quer resolver a pessoa, como se fosse uma tarefa ou um problema. Se você é tratado como uma tarefa ou um problema, isso vai afetá-lo. Você pode acabar sentindo que é menos do que bom o suficiente. Pode não se sentir aceito. Para nos sentirmos aceitos, precisamos que gostem de nós.

'Para nos sentirmos aceitos, precisamos que gostem de nós', diz Philippa Foto: Léo Souza/Estadão

A senhora escreve que os rótulos de “bons pais”/”maus pais” não ajudam em nada…

Não suporto esses rótulos. Sou uma boa mãe? Sou um bom pai? Não suporto esses rótulos porque eles tornam a parentalidade uma performance. Eu performei bem? Pare com isso. Simplesmente pare com isso.

Não se trata de ser uma boa mãe ou um bom pai, é sobre ter o melhor relacionamento possível com seu filho. Precisamos focar em coisas como: “Eu tenho um bom relacionamento com meu filho?” “Eu gosto do meu filho?”

Não é sobre ser bom. Não é sobre você. A dinâmica tem que ser centrada no relacionamento, não em “eu sou muito bom nisso”.

Não vamos tomar um café com um amigo e saímos pensando: “Eu arrasei nesse café”. Porque isso soa como “eu consegui manipular aquele amigo”. Não é sobre isso. Não é assim que devemos pensar sobre essa relação.

Erros vão fazer parte do processo. Como os pais podem lidar com os erros que cometem com os filhos e quanto isso pode ser importante para o desenvolvimento das crianças?

Vamos errar. Vamos entender nossos filhos de forma errada. Vamos dar informações erradas. E, às vezes, aquela pequena criança vai dizer: “Não, papai, você está errado.” “Você errou.” E o pai precisa olhar bem para si mesmo e admitir: “Sim, eu realmente errei.”

Às vezes, me perguntam: “Mas se eu disser ao meu filho que estou errado ou que cometi um erro, ele não vai se sentir inseguro?” Eu respondo: “Não, você estará validando os instintos dele.” Ele sabe que você errou. Então, se você diz que estava certo quando estava errado, você está confundindo os instintos do seu filho. E são esses instintos que o mantêm seguro. Se você diz que preto é branco, a criança sabe que não é isso, mas é levada a acreditar no contrário, você só vai confundir a cabeça dela. Não faça isso.

O maior erro que cometi — ou pelo menos o que lembro agora, provavelmente fiz coisas piores — foi quando eu estava caminhando com minha filha, quando ela tinha 8 anos, e ela estava cansada, queria voltar para casa. Eu disse: “Ok, você pode voltar, eu vou continuar.” Estávamos no interior e, quando cheguei em casa, ela disse: “Uma vaca me derrubou.” As vacas de lá eram muito dóceis, não selvagens. Então pensei: “Ah, eu sei o que aconteceu. Ela ficou com medo no caminho de volta e criou uma narrativa para justificar o medo.” Cabeça de psicanalista. Então perguntei: “Você sentiu medo no caminho de volta?”. Ela respondeu: “Não, não senti medo. Uma vaca me derrubou”. Eu disse: “Aham, ok”.

Ela sabia que eu não tinha acreditado. Claro, as vacas não eram agressivas, se você se aproxima delas, geralmente fogem. Algumas semanas depois, meu cadarço desamarrou no campo. Eu me agachei para amarrar, uma vaca veio com a cabeça e me derrubou. Pensei: “Entendi”. Quando você é mais baixo que as vacas, elas pensam que podem te vencer e acabam te derrubando. Não de forma agressiva, mas como se estivessem brincando ou te empurrando. E pensei: “Ela é mais baixa, então, claro, foi derrubada”.

Falei para ela: “Sabe, eu não acreditei em você sobre a vaca”. E ela respondeu: “Eu sei que você não acreditou”. Eu disse: “Sinto muito, eu errei”. E expliquei: “As vacas te derrubam quando acham que são maiores que você. Embora todas as vacas sejam maiores que nós, elas parecem medir isso só pela altura.” E contei o que aconteceu comigo, quando estava agachada. Disse para ela que não sabia disso sobre as vacas antes. Depois, expliquei: “Sempre que uma vaca se aproximar, levante as mãos acima da cabeça. Elas vão achar que você é maior que elas.”

Mas ela se lembrou disso por muito tempo. A última vez que tive que me desculpar por isso, ela tinha uns 17 anos. “Você não acreditou em mim naquela vez em que a vaca me derrubou.” Então, você precisa admitir quando está errado e manter a mente aberta quando uma criança conta algo que parece inacreditável. Sei que as crianças mentem o tempo todo. É o superpoder delas e, às vezes, é bem difícil distinguir a diferença.

A revista científica The Lancet Psychiatry publicou um relatório alertando que a saúde mental de jovens de 12 a 25 anos vem se deteriorando e entrou em uma “fase perigosa”. O que está acontecendo?

O que está acontecendo é que estamos ficando excessivamente ansiosos com sentimentos desconfortáveis. Estamos acreditando que deveríamos nos sentir felizes, contentes, sem medo e sem estresse o tempo todo. E quando experimentamos sentimentos desconfortáveis normais — um pouco de estresse, preocupação ou insegurança —, em vez de aceitar que isso faz parte da vida, que o sofrimento faz parte da vida, e que esses são sentimentos desconfortáveis, estamos patologizando-os. Estamos dando a eles rótulos, como se fossem transtornos de saúde mental.

Em vez de pensar “estou me sentindo triste porque algumas coisas não estão dando certo para mim” e em vez de conter esses sentimentos desconfortáveis, os pais entram em pânico e terceirizam seus filhos para que outras instâncias lidem com os sentimentos desconfortáveis daquelas crianças. Tristeza, estresse e desespero são completamente normais e uma resposta saudável ao mundo em que vivemos. Mas estamos patologizando esses sentimentos.

Eu vou além: estamos comodificando esses sentimentos ao transformar angústias normais em patologias. Estamos criando um problema e buscamos instâncias externas para resolvê-lo. E esses agentes estão comodificando o sofrimento, ganhando dinheiro com ele.

As empresas farmacêuticas, por exemplo, lucram com medicamentos para crianças que nunca demonstraram melhora no longo prazo. Claro, no curto prazo pode haver alguma melhora, mas os medicamentos não ensinam às crianças que seus sentimentos são normais e que elas podem lidar com eles. Não estamos ensinando resiliência ao sugerir que um sentimento desconfortável não é normal.

Mas algumas crianças podem precisar e se beneficiar deles…

Deixe-me questionar isso um pouco. Nos anos 1980, apenas uma em mil crianças era diagnosticada com algo como TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). O que aconteceu foi que os critérios para definir o TDAH se tornaram cada vez mais amplos. E agora os neurodivergentes estão ultrapassando os neurotípicos. As crianças mudaram ou fomos nós que mudamos nossa visão sobre crianças que gostam de correr e têm dificuldade para se concentrar e estamos patologizando isso?

Sim, estamos patologizando. Talvez uma em mil crianças realmente se beneficie de medicamentos como Ritalina. Mas, mesmo com isso, acredito que existem maneiras melhores de lidar com nossas crianças enquanto elas passam por fases e etapas em que têm dificuldade de concentração. Além disso, estamos estabelecendo parâmetros muito estreitos sobre o que é normal para crianças. Queremos que elas se encaixem, não causem problemas e sigam um sistema escolar que talvez nem mesmo seja adequado para elas.

'À medida que seu filho cresce, ofereça sempre um espaço seguro para os sentimentos dele', diz Philippa Foto: Léo Souza/Estadão

Não estamos permitindo que crianças tenham sentimentos que categorizamos como ruins ou o problema é que estamos diagnosticando em excesso?

Ambos. Estamos ficando com medo de sentimentos desconfortáveis. E as redes sociais parecem criar marcas específicas para certos tipos de transtornos mentais. TDAH, por exemplo. Não estou falando sobre angústia muito, muito grave. Isso sempre existiu. Mas coisas como ideação suicida são ampliadas pelas redes sociais. As pessoas veem coisas nas redes sociais e pensam: “Eu tenho isso, eu tenho isso, eu tenho isso”. E isso é contagioso. É uma contaminação social, e estamos exigindo que os médicos resolvam. Muito disso pode ser resolvido em casa, se os pais tiverem confiança para ouvir, acolher e não entrar em pânico.

Para conter os sentimentos do seu filho, você precisa ser capaz de gerenciar os seus próprios. E existem três maneiras principais de lidar com os sentimentos.

Suponha que seu filho venha até você com um dedo cortado. Uma criança pequena chega e diz: “Eu machuquei meu dedo, está cortado”. As três formas de lidar com isso são:

  1. “Isso é só um arranhão, não dói.” Você afasta a criança e ela fica sozinha com o sentimento dela, o que não é bom.
  2. “Oh, meu Deus, você cortou seu dedo! Oh, não, vamos para o hospital! Oh, meu Deus, isso é uma tragédia!” Isso amplifica o sofrimento da criança.
  3. Abaixar-se no nível da criança e dizer: “Oh, você cortou o dedo? Um arranhão assim pode realmente doer. Deixe-me colocar um curativo e dar um beijinho. Pode ser?”

À medida que seu filho cresce, ofereça sempre um espaço seguro para os sentimentos dele. Não estou falando sobre não ter limites. As pessoas acham que, porque eu acredito em ser gentil, gostar dos filhos e ser amigo deles, isso significa que não acredito em limites. Eu não sou contra limites. Limites são realmente importantes.

E você deve estabelecer seus limites antes de ultrapassá-los. Se você está muito cansado para brincar com seu filho às 20h30, e vai perder a paciência e dizer “não aguento mais”, então você precisa garantir que ele esteja dormindo às 20h. Você faz isso dizendo a ele: “Quero que você esteja na cama às 20h e dormindo, porque estou muito cansado para continuar com isso.”

Você não define a criança quando estabelece um limite, você se define. Então, se você ficar muito cansado brincando no parque com seu filho, diga: “Vamos embora em dois minutos, porque estou com frio e cansado”. Você não diz: “Vamos embora em dois minutos porque você já teve o suficiente”. Nós nos definimos quando colocamos um limite, não a criança.

Se definirmos nossos filhos e dissermos “você sempre faz uma cena sobre isso”, “pare de fazer cena”, isso não é muito gentil. Mas, se você disser “eu não consigo ouvir mais sobre isso, eu vejo que você está muito chateado, mas eu simplesmente não quero ouvir mais sobre isso”, é diferente. Não estamos dizendo que eles são ruins, estamos nos definindo de forma que continuamos acessíveis. Se dissermos “eu sinto que meu limite é...”, então eles podem confiar em nós.

Entrevista por Leon Ferrari

Repórter de Saúde e Bem-Estar. É formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Menção honrosa do 40º Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.

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