A Associação Médica Brasileira (AMB) e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) atualizaram o estudo Demografia Médica no Brasil após a divulgação de novos dados populacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Como o recenseamento contabilizou 10 milhões de pessoas a menos em relação às estimativas anteriores, os pesquisadores concluíram que, atualmente, o Brasil tem 2,69 médicos para 1 mil habitantes, ao invés de 2,56, como aparecia no documento divulgado em fevereiro.
Com a taxa, o Brasil se equipara a países populosos como Estados Unidos e Japão, e se aproxima de nações como Canadá e Reino Unido, com sistema públicos de referência para o Sistema Único de Saúde (SUS). Apesar do importante avanço no número de médicos – que dobrou nas últimas décadas –, a desigualdade na distribuição desses profissionais entre regiões e cidades de interior e capitais continua a ser um problema.
O novo boletim também traz um raio-x inédito da distribuição de médicos especialistas no Brasil: o índice é de 1,58 para cada 1 mil habitantes. A percepção é de que o aumento no número de formados em Medicina não tem sido acompanhado pela abertura de vagas de residência e, com isso, os pesquisadores alertam que o contingente de médicos especializados pode ser insuficiente.
Censo do IBGE
O estudo foi atualizado à luz do Censo do IBGE divulgado em junho. Os dados mostram uma população brasileira de 203 milhões em 2022, cerca de 10 milhões a menos do que as estimativas anteriores, que foram base para a Demografia Médica divulgada no início do ano.
Como houve mudança em apenas um denominador, os números finais não ficaram tão diferentes assim. O País segue com 545 767 médicos, por exemplo. Porém, a taxa de profissionais por cada 1 mil habitantes passou de 2,56 para 2,69.
De acordo com o boletim, entre 1950 a 2022, a população brasileira cresceu 291%. No mesmo período, o total de médicos subiu 2 301%. Vale destaque às décadas entre 2000 e 2022, quando a quantidade desses profissionais mais do que dobrou no Brasil.
Apesar de esse salto ser importante, pois nos aproxima de países como EUA, Japão e Canadá, ele não conseguiu por si só resolver um grave problema: os médicos estão mal distribuídos pelo País, com concentração em determinadas regiões. Esse fator inclusive dificulta a comparação com o cenário internacional.
Trocando em miúdos, o que isso significa? “Temos uma superassistência em locais que já são privilegiados por natureza, pela qualidade de vida da sua população, e, em outras áreas, uma absoluta desassistência”, resume César Eduardo Fernandes, presidente da AMB. “Devido à essa desassistência, você posterga diagnósticos e tratamentos, e essa população vive sob um risco evitável”, acrescenta.
Mário Scheffer, coordenador da pesquisa e professor da FMUSP, acrescenta um “agravante” à situação: “Temos uma uma maior concentração de médicos no setor privado do que no SUS proporcionalmente às populações cobertas. O setor privado cobre de 25% a 27% dos brasileiros”. Esse dado em questão não aparece no boletim, mas é estudado pelo professor.
Desigualdade regional em números
Para ter ideia, 61,5% dos médicos estão onde vivem 29% da população – ou seja, nas 41 cidades com mais de 500 mil habitantes. Nos municípios com até 20 mil habitantes, onde residem, ao todo, 15,8% dos cidadãos brasileiros, estão apenas 2,8% dos profissionais.
De olho nas regiões do território nacional, Norte e Nordeste são as únicas abaixo da taxa nacional, com 1,65 e 2,09 médicos por 1 mil habitantes, respectivamente. Cave frisar que essa é a primeira vez que a região nordestina ultrapassa os 2 médicos por 1 mil habitantes – contudo, há diferenças entre os nove Estados.
Especialistas também estão concentrados
No boletim, um médico é considerado especialista se concluiu um programa de Residência Médica ou obteve título junto às sociedades médicas filiadas à AMB, e os demais são considerados generalistas. Segundo o levantamento, a taxa de profissionais de especialidade por cada 1 mil habitantes é de 1,58.
Assim como no caso dos médicos generalistas, o boletim revela uma desigualdade na distribuição de especialistas nas unidades da federação (nesse caso, o padrão internacional é olhar a taxa a cada 100 mil habitantes). Por exemplo: a taxa de cirurgiões, que inclui médicos de 16 especialidades envolvidas com cirurgias, é seis vezes menor no Pará (10,46) em relação ao Distrito Federal (60,84). A densidade de anestesiologistas no Maranhão (4,40) é cinco vezes menor que no Rio de Janeiro (22,54).
Essa realidade tem um impacto direto em um problema agravado pela pandemia, que é a fila de espera por atendimento e tratamento especializado no SUS. “Hoje, mesmo com adoção de política de incentivo financeiro (Programa Nacional de Redução das Filas), os gestores estão com dificuldade de contratar especialistas para os procedimentos médicos que são responsáveis pela grande fila de espera do SUS”, diz Scheffer.
“E essa escassez poderá aumentar se políticas de expansão (nas especialidades) não forem tomadas”, fala o professor. “A população brasileira está envelhecendo, e (com isso) temos um aumento das doenças crônicas, como câncer, diabetes, hipertensão e obesidade. Isso indica que teremos maior demanda de médicos especialistas.”
Ao contrário do número de alunos na graduação de Medicina que tiveram um incremento quase “explosivo” nos últimos anos, o total de residentes mantém-se na casa dos 40 mil desde 2018. O número até cresceu, mas nem perto do que se vê em relação aos graduandos.
Mais 1 milhão de médicos até 2035
Conforme já havia mostrado o Estadão, o volume de novos médicos passou a ter aumento expressivo a partir de 2020. O período coincide com a graduação dos alunos das dezenas de novos cursos abertos a partir de 2013, com a criação do programa Mais Médicos, que expandiu os vagas de Medicina no País.
O novo boletim projeta que entre 1 milhão e 1,3 milhão de novos médicos devem se formar até 2035. O boletim cria três cenários possíveis. No mais “conservador”, prevê, para os próximos 12 anos, o mesmo patamar de novas vagas de graduação observado entre 2018 e 2023, período marcado por relativa “moratória” na abertura de cursos. Nele, o número chegaria a 1.041.608. A depender de decisões judiciais sobre a criação de cursos e das regras do Ministério da Educação, ele pode chegar a 1.362.269.
Embora isso pareça animador, porque a taxa de médicos por 1 mil habitantes pode chegar a 6,3, a AMB está preocupada com a “qualidade” desses profissionais. “Estamos muito inseguros com o médico que está sendo oferecido à população, particularmente nesses últimos 10 anos, em que vimos uma proliferação desordenada de escolas médicas”, diz Fernandes.
Segundo ele, hoje, a qualidade do médico é “presumida”, ou seja, após o período de graduação ou de residência, ele recebe o título e pode exercer a profissão. “Já passou da hora de nós fazermos um exame de proficiência médica à semelhança do que se faz com os advogados.”
Como resolver a desigualdade?
Apesar de a formação de médicos e da especialização deles ser importante para enfrentar a desigualdade na distribuição pelo País, é essencial, conforme os pesquisadores, uma política de incentivo de fixação desses profissionais em locais onde há escassez. “Tem que ser uma política de Estado, não de governo”, fala Fernandes.
“A culpa não é do médico. Ele é um indivíduo prestador de serviço que tem as mesmas necessidades que qualquer outro cidadão. Ele precisa ser incentivado por meio de uma política de Estado para que possa fazer uma carreira para a vida inteira, e não de caráter efêmero, baseada em quatro anos, por exemplo”, completa.