Psicanálise é pseudociência? Funciona? Entenda disputa que colocou até a neta de Freud contra o avô


Lançamento de livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi motiva debates acadêmicos nas redes sociais sobre controvérsia que já dura décadas e envolveu até descendente do pai da psicanálise

Por Fabiana Cambricoli
Atualização:

A eficácia da psicanálise como tratamento para transtornos psíquicos voltou a gerar polêmica e disputas entre acadêmicos após o lançamento, no mês passado, do novo livro da microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), e do jornalista científico Carlos Orsi, diretor da mesma instituição. Na obra, eles mapeiam 12 pseudociências ou práticas que são populares no Brasil, mas que, de acordo com os autores, não possuem evidências científicas sobre sua eficácia. Entre elas, está a psicanálise.

Após o lançamento do livro e uma entrevista de Pasternak ao Estadão na qual ela detalhou algumas dessas práticas tidas como enganosas, as redes sociais foram inundadas por debates (alguns acalorados) entre acadêmicos de diferentes vertentes que defendiam ou atacavam a psicanálise.

A disputa expõe uma controvérsia que não é nova nem restrita ao Brasil. O debate sobre a eficácia da psicanálise, seus métodos e sobre a atuação de Sigmund Freud (1856-1939), médico austríaco tido como pai da técnica, gera debates na comunidade científica há décadas e teve entre suas críticas ninguém menos que uma de suas netas, Sophie Freud.

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Sophie, que foi professora de psicologia na Universidade Simmons, em Boston (EUA), morreu em junho de 2022, aos 97 anos. Em entrevistas a veículos de comunicação dos Estados Unidos, ela chegou a afirmar ser “muito cética em relação à psicanálise”, prática que classificou como uma “indulgência narcisista”.

Ela desdenhou de conceitos psicanalíticos como a “inveja do pênis” (experiência que seria vivida por meninas ao perceberem não ter o órgão) e o complexo de Édipo (momento da infância em que a criança desenvolveria amor e desejo pelo progenitor do sexo oposto) e criticou o avô por suas teorias sobre a sexualidade feminina. Em suas pesquisas na área de psicossociologia, Sophie focou em temas de proteção da infância e inserção do feminismo nas práticas do serviço social.

No Brasil, o debate se debruçou menos sobre os conceitos freudianos e mais sobre a classificação da psicanálise como ciência e as evidências científicas sobre sua eficácia. Na disputa, há divergências de entendimento mesmo entre integrantes de um grupo com a mesma linha do pensamento.

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Entre os psicanalistas, por exemplo, há aqueles que dizem que a psicanálise nem sequer se propõe a ser uma ciência, outros que afirmam que ela não pode ser avaliada cientificamente da mesma forma “dura” que tratamentos medicamentosos e um terceiro subgrupo que afirma que ela não só pode ser avaliada cientificamente como já foi testada e demonstrou bons resultados.

Entre os críticos da prática, o principal argumento é o de que psicanalistas, com frequência, se baseiam apenas nas experiências observadas em consultório para defender a eficácia da prática e são fechados à realização de testes clínicos randomizados que poderiam avaliar melhor os benefícios da terapia. Sobre as pesquisas já realizadas, dizem, as supostas evidências são frágeis e a metodologia é falha.

O médico austríaco Sigmund Freud, tido como o pai da psicanálise Foto: Domínio público
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É possível medir a eficácia de uma psicoterapia?

Presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), Carmen Mion afirma que sistemas complexos como a mente e as emoções humanas não devem ser encarados de uma forma “binária e reducionista”, na qual somente evidências objetivas seriam aceitas. “Nas ciências humanas, as questões de escala e complexidade requerem outras aproximações à realidade, considerando-se sobretudo aspectos multiformes e dinâmicos da mente humana”, afirmou ela, em entrevista por e-mail.

De acordo com Carmen, a evidência da psicanálise “baseia-se na experiência do encontro entre duas pessoas, analista e analisando, onde as emoções vividas possam ser observadas e mencionadas, podendo assim se tornarem claras e conscientes, contribuindo para o desenvolvimento da personalidade e não apenas para a remissão de sintomas dolorosos”.

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Ela diz que as teorias psicanalíticas “são testadas diariamente em milhares de consultórios pela dupla analítica” e que a complexidade do objeto de estudo, no caso, a mente humana, “não comporta situações clínicas que podem ser reproduzidas ou ter os mesmos parâmetros ou testes requeridos por uma ciência de caráter positivista, cartesiano e baseado em probabilidades ou replicabilidade”.

Não é o que pensam dois pesquisadores do campo de saúde baseada em evidências e que, assim como Pasternak e Orsi, argumentam que a terapia psicanalítica ainda não conseguiu demonstrar seus benefícios. Para Daniel Gontijo, doutor em neurociências e membro fundador da Associação Brasileira de Psicologia Baseada em Evidências (ABPBE), é verdade que nem sempre se pode aplicar as mesmas ferramentas das ciências exatas na psicologia, mas é possível, diz ele, realizar estudos rigorosos para medir a evolução de pacientes com transtornos mentais que se submetem a algum tratamento psicológico.

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“Quando a gente trabalha com comportamento humano, diferentes estratégias metodológicas são requeridas, mas há como fazer um estudo rigoroso com métodos confiáveis, sim. O problema é que a psicanálise lança mão de estratégias que são obsoletas por serem mais suscetíveis a vieses na hora de estudar a mente e o comportamento humanos”, afirma.

Opinião semelhante tem o médico José Alencar, autor do Manual de Medicina Baseada em Evidências: “As críticas que fazemos não é no sentido de colocar a psicanálise como uma picaretagem. Não achamos que todos os profissionais são antiéticos. O problema é que, se ela se vende como ciência, precisa usar os melhores métodos para buscar evidências científicas, que são os ensaios clínicos. Se ela é vendida em consultórios, ensinada em universidades, tem que ter a humildade científica de pesquisar sua eficácia, de mensurar isso”, afirma ele, justificando o porquê de a prática ser classificada como pseudociência por alguns pesquisadores.

Para Alencar, o argumento de que os benefícios da psicanálise só podem ser vistos na prática clínica são equiparáveis à postura de médicos que defendiam a cloroquina e outros remédios ineficazes contra a covid-19 durante a pandemia, por verem seus pacientes melhorarem após o uso das drogas. Isso, porém, não era suficiente para declarar a eficácia daqueles medicamentos por não ser possível garantir que o desfecho satisfatório ocorria por causa do remédio ou porque a doença regrediria espontaneamente mesmo - o que acontece na grande maioria dos casos.

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É por isso que, na Medicina e Psicologia Baseada em Evidências, é considerado padrão-ouro de pesquisa os estudos clínicos randomizados, controlados e com cegamento. Isso quer dizer que a terapia a ser testada deve ser oferecida a um grupo de pacientes enquanto outro grupo (o controle) receberá um placebo. Essa divisão dos pacientes entre os grupos deve ser feita de forma aleatória, geralmente por sorteio (randomizada), para evitar vieses, e os pacientes, quando possível, não saberão se fazem parte do grupo que está, de fato, recebendo o tratamento ou um placebo, daí o termo cegamento.

Segundo especialistas, é possível aplicar esse padrão-ouro de pesquisa também aos testes de tratamentos psicológicos. “Há como estabelecer desfechos a serem avaliados mesmo com esse aspecto subjetivo do comportamento humano. É possível, por exemplo, fazer uma avaliação de sintomas de ansiedade e depressão a cada sessão, avaliar o desempenho do paciente em diferentes contextos sociais, verificar escalas de bem-estar. Dá até para definir como placebo uma interação com um ator que se passaria por um psicoterapeuta, por exemplo”, diz Gontijo.

Mas o que dizem os estudos clínicos feitos?

De acordo com Rogerio Lerner, professor do Instituto de Psicologia da USP responsável pela disciplina da pós-graduação que busca justamente avaliar ensaios clínicos randomizados e estudos neurocientíficos na obtenção de evidências em psicanálise, já há uma série de estudos clínicos realizados que comprovam os benefícios da psicanálise.

“As evidências são robustas no tratamento da depressão, ansiedade e com estudos clínicos randomizados, com grupo controle, cegamento e análise estatística de dados, inclusive estudos que não foram publicados em periódicos ligados a sociedades de psicanálise”, afirma.

Ele cita, entre os trabalhos, uma revisão sistemática publicada em 2014 no periódico Lancet Psychiatry, em que os pesquisadores, ao analisar 64 estudos clínicos randomizados, concluíram que as psicoterapias psicodinâmicas, grupo em que a psicanálise está incluída, tiveram resultados equivalentes à terapia cognitivo-comportamental para os transtornos mentais mais comuns.

Outro estudo, diz Lerner, este publicado no respeitado portal científico Cochrane, mostrou que a psicoterapia psicodinâmica “teve um efeito estatisticamente significativo na redução de várias condições clínicas, como sintomas psiquiátricos gerais (não psicóticos), ansiedade e depressão, bem como problemas interpessoais e ajustamento social”, destacou.

“A psicanálise tem uma importante função na abordagem da dor psíquica, dos transtornos mentais, e dos sofrimentos humanos colaborando para que possamos transformar as dores do viver em condições de suportar as dificuldades da vida. Ela promove o desenvolvimento emocional e psíquico, um autoconhecimento profundo”, defende Ana Stucchi Vannucchi, diretora científica da SBPSP, também citando alguns desses estudos.

Para os críticos da psicanálise, no entanto, embora os estudos devam ser reconhecidos como passos na busca de respostas sobre a eficácia da psicanálise, a metodologia dos trabalhos é falha e eles não servem para comprovar os benefícios da prática. “A revisão sistemática publicada no Lancet Psychiatry é de péssima qualidade, apenas citando narrativamente diversos estudos. Um editorial publicado em resposta descreve essa pobreza metodológica”, diz Alencar, referindo-se a um texto publicado no próprio periódico criticando o estudo.

Sobre o estudo da Cochrane, Alencar afirma que ele tem limitações importantes que impedem associá-lo de forma indubitável à eficácia da psicanálise. “Há uma enorme quantidade de artigos comparando diferentes tipos de tratamento com outros diferentes tipos, ficando difícil definir exatamente sobre o que essas revisões estão falando”, diz Alencar.

O próprio texto da Cochrane admite que, considerando “a limitação dos dados, a perda de significância em algumas medidas no acompanhamento de longo prazo e a heterogeneidade entre os estudos, esses achados devem ser interpretados com cautela”.

Sem estudos robustos suficientes para comprovar a eficácia da psicanálise ou mesmo para descartá-la como terapia contra transtornos mentais, os especialistas alegam ser importante a realização de mais testes que tenham a prática como objeto de investigação.

Os defensores da psicanálise, por sua vez, dizem que é irresponsável tentar estigmatizar a terapia como pseudociência em um cenário de aumento de problemas de saúde mental e dificuldade de acesso da população a uma atenção especializada. “Isso pode aumentar o estigma e o preconceito que já cercam os transtornos psíquicos e agravar o problema da hipermedicalização desses pacientes”, diz Lerner.

Já os críticos não chegam a recomendar aos pacientes que abandonem seus psicanalistas, mas sugerem que a falta de evidências robustas seja considerada nas escolhas individuais de busca por tratamentos. “Acredito que a maioria das pessoas envolvidas no debate não está sugerindo que ela seja proibida. Nosso papel é muito mais informar a população sobre quais terapias são bem fundamentadas cientificamente para que essas pessoas tomem decisões mais conscientes sobre sua saúde mental”, diz Gontijo.

A eficácia da psicanálise como tratamento para transtornos psíquicos voltou a gerar polêmica e disputas entre acadêmicos após o lançamento, no mês passado, do novo livro da microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), e do jornalista científico Carlos Orsi, diretor da mesma instituição. Na obra, eles mapeiam 12 pseudociências ou práticas que são populares no Brasil, mas que, de acordo com os autores, não possuem evidências científicas sobre sua eficácia. Entre elas, está a psicanálise.

Após o lançamento do livro e uma entrevista de Pasternak ao Estadão na qual ela detalhou algumas dessas práticas tidas como enganosas, as redes sociais foram inundadas por debates (alguns acalorados) entre acadêmicos de diferentes vertentes que defendiam ou atacavam a psicanálise.

A disputa expõe uma controvérsia que não é nova nem restrita ao Brasil. O debate sobre a eficácia da psicanálise, seus métodos e sobre a atuação de Sigmund Freud (1856-1939), médico austríaco tido como pai da técnica, gera debates na comunidade científica há décadas e teve entre suas críticas ninguém menos que uma de suas netas, Sophie Freud.

Sophie, que foi professora de psicologia na Universidade Simmons, em Boston (EUA), morreu em junho de 2022, aos 97 anos. Em entrevistas a veículos de comunicação dos Estados Unidos, ela chegou a afirmar ser “muito cética em relação à psicanálise”, prática que classificou como uma “indulgência narcisista”.

Ela desdenhou de conceitos psicanalíticos como a “inveja do pênis” (experiência que seria vivida por meninas ao perceberem não ter o órgão) e o complexo de Édipo (momento da infância em que a criança desenvolveria amor e desejo pelo progenitor do sexo oposto) e criticou o avô por suas teorias sobre a sexualidade feminina. Em suas pesquisas na área de psicossociologia, Sophie focou em temas de proteção da infância e inserção do feminismo nas práticas do serviço social.

No Brasil, o debate se debruçou menos sobre os conceitos freudianos e mais sobre a classificação da psicanálise como ciência e as evidências científicas sobre sua eficácia. Na disputa, há divergências de entendimento mesmo entre integrantes de um grupo com a mesma linha do pensamento.

Entre os psicanalistas, por exemplo, há aqueles que dizem que a psicanálise nem sequer se propõe a ser uma ciência, outros que afirmam que ela não pode ser avaliada cientificamente da mesma forma “dura” que tratamentos medicamentosos e um terceiro subgrupo que afirma que ela não só pode ser avaliada cientificamente como já foi testada e demonstrou bons resultados.

Entre os críticos da prática, o principal argumento é o de que psicanalistas, com frequência, se baseiam apenas nas experiências observadas em consultório para defender a eficácia da prática e são fechados à realização de testes clínicos randomizados que poderiam avaliar melhor os benefícios da terapia. Sobre as pesquisas já realizadas, dizem, as supostas evidências são frágeis e a metodologia é falha.

O médico austríaco Sigmund Freud, tido como o pai da psicanálise Foto: Domínio público

É possível medir a eficácia de uma psicoterapia?

Presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), Carmen Mion afirma que sistemas complexos como a mente e as emoções humanas não devem ser encarados de uma forma “binária e reducionista”, na qual somente evidências objetivas seriam aceitas. “Nas ciências humanas, as questões de escala e complexidade requerem outras aproximações à realidade, considerando-se sobretudo aspectos multiformes e dinâmicos da mente humana”, afirmou ela, em entrevista por e-mail.

De acordo com Carmen, a evidência da psicanálise “baseia-se na experiência do encontro entre duas pessoas, analista e analisando, onde as emoções vividas possam ser observadas e mencionadas, podendo assim se tornarem claras e conscientes, contribuindo para o desenvolvimento da personalidade e não apenas para a remissão de sintomas dolorosos”.

Ela diz que as teorias psicanalíticas “são testadas diariamente em milhares de consultórios pela dupla analítica” e que a complexidade do objeto de estudo, no caso, a mente humana, “não comporta situações clínicas que podem ser reproduzidas ou ter os mesmos parâmetros ou testes requeridos por uma ciência de caráter positivista, cartesiano e baseado em probabilidades ou replicabilidade”.

Não é o que pensam dois pesquisadores do campo de saúde baseada em evidências e que, assim como Pasternak e Orsi, argumentam que a terapia psicanalítica ainda não conseguiu demonstrar seus benefícios. Para Daniel Gontijo, doutor em neurociências e membro fundador da Associação Brasileira de Psicologia Baseada em Evidências (ABPBE), é verdade que nem sempre se pode aplicar as mesmas ferramentas das ciências exatas na psicologia, mas é possível, diz ele, realizar estudos rigorosos para medir a evolução de pacientes com transtornos mentais que se submetem a algum tratamento psicológico.

“Quando a gente trabalha com comportamento humano, diferentes estratégias metodológicas são requeridas, mas há como fazer um estudo rigoroso com métodos confiáveis, sim. O problema é que a psicanálise lança mão de estratégias que são obsoletas por serem mais suscetíveis a vieses na hora de estudar a mente e o comportamento humanos”, afirma.

Opinião semelhante tem o médico José Alencar, autor do Manual de Medicina Baseada em Evidências: “As críticas que fazemos não é no sentido de colocar a psicanálise como uma picaretagem. Não achamos que todos os profissionais são antiéticos. O problema é que, se ela se vende como ciência, precisa usar os melhores métodos para buscar evidências científicas, que são os ensaios clínicos. Se ela é vendida em consultórios, ensinada em universidades, tem que ter a humildade científica de pesquisar sua eficácia, de mensurar isso”, afirma ele, justificando o porquê de a prática ser classificada como pseudociência por alguns pesquisadores.

Para Alencar, o argumento de que os benefícios da psicanálise só podem ser vistos na prática clínica são equiparáveis à postura de médicos que defendiam a cloroquina e outros remédios ineficazes contra a covid-19 durante a pandemia, por verem seus pacientes melhorarem após o uso das drogas. Isso, porém, não era suficiente para declarar a eficácia daqueles medicamentos por não ser possível garantir que o desfecho satisfatório ocorria por causa do remédio ou porque a doença regrediria espontaneamente mesmo - o que acontece na grande maioria dos casos.

É por isso que, na Medicina e Psicologia Baseada em Evidências, é considerado padrão-ouro de pesquisa os estudos clínicos randomizados, controlados e com cegamento. Isso quer dizer que a terapia a ser testada deve ser oferecida a um grupo de pacientes enquanto outro grupo (o controle) receberá um placebo. Essa divisão dos pacientes entre os grupos deve ser feita de forma aleatória, geralmente por sorteio (randomizada), para evitar vieses, e os pacientes, quando possível, não saberão se fazem parte do grupo que está, de fato, recebendo o tratamento ou um placebo, daí o termo cegamento.

Segundo especialistas, é possível aplicar esse padrão-ouro de pesquisa também aos testes de tratamentos psicológicos. “Há como estabelecer desfechos a serem avaliados mesmo com esse aspecto subjetivo do comportamento humano. É possível, por exemplo, fazer uma avaliação de sintomas de ansiedade e depressão a cada sessão, avaliar o desempenho do paciente em diferentes contextos sociais, verificar escalas de bem-estar. Dá até para definir como placebo uma interação com um ator que se passaria por um psicoterapeuta, por exemplo”, diz Gontijo.

Mas o que dizem os estudos clínicos feitos?

De acordo com Rogerio Lerner, professor do Instituto de Psicologia da USP responsável pela disciplina da pós-graduação que busca justamente avaliar ensaios clínicos randomizados e estudos neurocientíficos na obtenção de evidências em psicanálise, já há uma série de estudos clínicos realizados que comprovam os benefícios da psicanálise.

“As evidências são robustas no tratamento da depressão, ansiedade e com estudos clínicos randomizados, com grupo controle, cegamento e análise estatística de dados, inclusive estudos que não foram publicados em periódicos ligados a sociedades de psicanálise”, afirma.

Ele cita, entre os trabalhos, uma revisão sistemática publicada em 2014 no periódico Lancet Psychiatry, em que os pesquisadores, ao analisar 64 estudos clínicos randomizados, concluíram que as psicoterapias psicodinâmicas, grupo em que a psicanálise está incluída, tiveram resultados equivalentes à terapia cognitivo-comportamental para os transtornos mentais mais comuns.

Outro estudo, diz Lerner, este publicado no respeitado portal científico Cochrane, mostrou que a psicoterapia psicodinâmica “teve um efeito estatisticamente significativo na redução de várias condições clínicas, como sintomas psiquiátricos gerais (não psicóticos), ansiedade e depressão, bem como problemas interpessoais e ajustamento social”, destacou.

“A psicanálise tem uma importante função na abordagem da dor psíquica, dos transtornos mentais, e dos sofrimentos humanos colaborando para que possamos transformar as dores do viver em condições de suportar as dificuldades da vida. Ela promove o desenvolvimento emocional e psíquico, um autoconhecimento profundo”, defende Ana Stucchi Vannucchi, diretora científica da SBPSP, também citando alguns desses estudos.

Para os críticos da psicanálise, no entanto, embora os estudos devam ser reconhecidos como passos na busca de respostas sobre a eficácia da psicanálise, a metodologia dos trabalhos é falha e eles não servem para comprovar os benefícios da prática. “A revisão sistemática publicada no Lancet Psychiatry é de péssima qualidade, apenas citando narrativamente diversos estudos. Um editorial publicado em resposta descreve essa pobreza metodológica”, diz Alencar, referindo-se a um texto publicado no próprio periódico criticando o estudo.

Sobre o estudo da Cochrane, Alencar afirma que ele tem limitações importantes que impedem associá-lo de forma indubitável à eficácia da psicanálise. “Há uma enorme quantidade de artigos comparando diferentes tipos de tratamento com outros diferentes tipos, ficando difícil definir exatamente sobre o que essas revisões estão falando”, diz Alencar.

O próprio texto da Cochrane admite que, considerando “a limitação dos dados, a perda de significância em algumas medidas no acompanhamento de longo prazo e a heterogeneidade entre os estudos, esses achados devem ser interpretados com cautela”.

Sem estudos robustos suficientes para comprovar a eficácia da psicanálise ou mesmo para descartá-la como terapia contra transtornos mentais, os especialistas alegam ser importante a realização de mais testes que tenham a prática como objeto de investigação.

Os defensores da psicanálise, por sua vez, dizem que é irresponsável tentar estigmatizar a terapia como pseudociência em um cenário de aumento de problemas de saúde mental e dificuldade de acesso da população a uma atenção especializada. “Isso pode aumentar o estigma e o preconceito que já cercam os transtornos psíquicos e agravar o problema da hipermedicalização desses pacientes”, diz Lerner.

Já os críticos não chegam a recomendar aos pacientes que abandonem seus psicanalistas, mas sugerem que a falta de evidências robustas seja considerada nas escolhas individuais de busca por tratamentos. “Acredito que a maioria das pessoas envolvidas no debate não está sugerindo que ela seja proibida. Nosso papel é muito mais informar a população sobre quais terapias são bem fundamentadas cientificamente para que essas pessoas tomem decisões mais conscientes sobre sua saúde mental”, diz Gontijo.

A eficácia da psicanálise como tratamento para transtornos psíquicos voltou a gerar polêmica e disputas entre acadêmicos após o lançamento, no mês passado, do novo livro da microbiologista Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC), e do jornalista científico Carlos Orsi, diretor da mesma instituição. Na obra, eles mapeiam 12 pseudociências ou práticas que são populares no Brasil, mas que, de acordo com os autores, não possuem evidências científicas sobre sua eficácia. Entre elas, está a psicanálise.

Após o lançamento do livro e uma entrevista de Pasternak ao Estadão na qual ela detalhou algumas dessas práticas tidas como enganosas, as redes sociais foram inundadas por debates (alguns acalorados) entre acadêmicos de diferentes vertentes que defendiam ou atacavam a psicanálise.

A disputa expõe uma controvérsia que não é nova nem restrita ao Brasil. O debate sobre a eficácia da psicanálise, seus métodos e sobre a atuação de Sigmund Freud (1856-1939), médico austríaco tido como pai da técnica, gera debates na comunidade científica há décadas e teve entre suas críticas ninguém menos que uma de suas netas, Sophie Freud.

Sophie, que foi professora de psicologia na Universidade Simmons, em Boston (EUA), morreu em junho de 2022, aos 97 anos. Em entrevistas a veículos de comunicação dos Estados Unidos, ela chegou a afirmar ser “muito cética em relação à psicanálise”, prática que classificou como uma “indulgência narcisista”.

Ela desdenhou de conceitos psicanalíticos como a “inveja do pênis” (experiência que seria vivida por meninas ao perceberem não ter o órgão) e o complexo de Édipo (momento da infância em que a criança desenvolveria amor e desejo pelo progenitor do sexo oposto) e criticou o avô por suas teorias sobre a sexualidade feminina. Em suas pesquisas na área de psicossociologia, Sophie focou em temas de proteção da infância e inserção do feminismo nas práticas do serviço social.

No Brasil, o debate se debruçou menos sobre os conceitos freudianos e mais sobre a classificação da psicanálise como ciência e as evidências científicas sobre sua eficácia. Na disputa, há divergências de entendimento mesmo entre integrantes de um grupo com a mesma linha do pensamento.

Entre os psicanalistas, por exemplo, há aqueles que dizem que a psicanálise nem sequer se propõe a ser uma ciência, outros que afirmam que ela não pode ser avaliada cientificamente da mesma forma “dura” que tratamentos medicamentosos e um terceiro subgrupo que afirma que ela não só pode ser avaliada cientificamente como já foi testada e demonstrou bons resultados.

Entre os críticos da prática, o principal argumento é o de que psicanalistas, com frequência, se baseiam apenas nas experiências observadas em consultório para defender a eficácia da prática e são fechados à realização de testes clínicos randomizados que poderiam avaliar melhor os benefícios da terapia. Sobre as pesquisas já realizadas, dizem, as supostas evidências são frágeis e a metodologia é falha.

O médico austríaco Sigmund Freud, tido como o pai da psicanálise Foto: Domínio público

É possível medir a eficácia de uma psicoterapia?

Presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), Carmen Mion afirma que sistemas complexos como a mente e as emoções humanas não devem ser encarados de uma forma “binária e reducionista”, na qual somente evidências objetivas seriam aceitas. “Nas ciências humanas, as questões de escala e complexidade requerem outras aproximações à realidade, considerando-se sobretudo aspectos multiformes e dinâmicos da mente humana”, afirmou ela, em entrevista por e-mail.

De acordo com Carmen, a evidência da psicanálise “baseia-se na experiência do encontro entre duas pessoas, analista e analisando, onde as emoções vividas possam ser observadas e mencionadas, podendo assim se tornarem claras e conscientes, contribuindo para o desenvolvimento da personalidade e não apenas para a remissão de sintomas dolorosos”.

Ela diz que as teorias psicanalíticas “são testadas diariamente em milhares de consultórios pela dupla analítica” e que a complexidade do objeto de estudo, no caso, a mente humana, “não comporta situações clínicas que podem ser reproduzidas ou ter os mesmos parâmetros ou testes requeridos por uma ciência de caráter positivista, cartesiano e baseado em probabilidades ou replicabilidade”.

Não é o que pensam dois pesquisadores do campo de saúde baseada em evidências e que, assim como Pasternak e Orsi, argumentam que a terapia psicanalítica ainda não conseguiu demonstrar seus benefícios. Para Daniel Gontijo, doutor em neurociências e membro fundador da Associação Brasileira de Psicologia Baseada em Evidências (ABPBE), é verdade que nem sempre se pode aplicar as mesmas ferramentas das ciências exatas na psicologia, mas é possível, diz ele, realizar estudos rigorosos para medir a evolução de pacientes com transtornos mentais que se submetem a algum tratamento psicológico.

“Quando a gente trabalha com comportamento humano, diferentes estratégias metodológicas são requeridas, mas há como fazer um estudo rigoroso com métodos confiáveis, sim. O problema é que a psicanálise lança mão de estratégias que são obsoletas por serem mais suscetíveis a vieses na hora de estudar a mente e o comportamento humanos”, afirma.

Opinião semelhante tem o médico José Alencar, autor do Manual de Medicina Baseada em Evidências: “As críticas que fazemos não é no sentido de colocar a psicanálise como uma picaretagem. Não achamos que todos os profissionais são antiéticos. O problema é que, se ela se vende como ciência, precisa usar os melhores métodos para buscar evidências científicas, que são os ensaios clínicos. Se ela é vendida em consultórios, ensinada em universidades, tem que ter a humildade científica de pesquisar sua eficácia, de mensurar isso”, afirma ele, justificando o porquê de a prática ser classificada como pseudociência por alguns pesquisadores.

Para Alencar, o argumento de que os benefícios da psicanálise só podem ser vistos na prática clínica são equiparáveis à postura de médicos que defendiam a cloroquina e outros remédios ineficazes contra a covid-19 durante a pandemia, por verem seus pacientes melhorarem após o uso das drogas. Isso, porém, não era suficiente para declarar a eficácia daqueles medicamentos por não ser possível garantir que o desfecho satisfatório ocorria por causa do remédio ou porque a doença regrediria espontaneamente mesmo - o que acontece na grande maioria dos casos.

É por isso que, na Medicina e Psicologia Baseada em Evidências, é considerado padrão-ouro de pesquisa os estudos clínicos randomizados, controlados e com cegamento. Isso quer dizer que a terapia a ser testada deve ser oferecida a um grupo de pacientes enquanto outro grupo (o controle) receberá um placebo. Essa divisão dos pacientes entre os grupos deve ser feita de forma aleatória, geralmente por sorteio (randomizada), para evitar vieses, e os pacientes, quando possível, não saberão se fazem parte do grupo que está, de fato, recebendo o tratamento ou um placebo, daí o termo cegamento.

Segundo especialistas, é possível aplicar esse padrão-ouro de pesquisa também aos testes de tratamentos psicológicos. “Há como estabelecer desfechos a serem avaliados mesmo com esse aspecto subjetivo do comportamento humano. É possível, por exemplo, fazer uma avaliação de sintomas de ansiedade e depressão a cada sessão, avaliar o desempenho do paciente em diferentes contextos sociais, verificar escalas de bem-estar. Dá até para definir como placebo uma interação com um ator que se passaria por um psicoterapeuta, por exemplo”, diz Gontijo.

Mas o que dizem os estudos clínicos feitos?

De acordo com Rogerio Lerner, professor do Instituto de Psicologia da USP responsável pela disciplina da pós-graduação que busca justamente avaliar ensaios clínicos randomizados e estudos neurocientíficos na obtenção de evidências em psicanálise, já há uma série de estudos clínicos realizados que comprovam os benefícios da psicanálise.

“As evidências são robustas no tratamento da depressão, ansiedade e com estudos clínicos randomizados, com grupo controle, cegamento e análise estatística de dados, inclusive estudos que não foram publicados em periódicos ligados a sociedades de psicanálise”, afirma.

Ele cita, entre os trabalhos, uma revisão sistemática publicada em 2014 no periódico Lancet Psychiatry, em que os pesquisadores, ao analisar 64 estudos clínicos randomizados, concluíram que as psicoterapias psicodinâmicas, grupo em que a psicanálise está incluída, tiveram resultados equivalentes à terapia cognitivo-comportamental para os transtornos mentais mais comuns.

Outro estudo, diz Lerner, este publicado no respeitado portal científico Cochrane, mostrou que a psicoterapia psicodinâmica “teve um efeito estatisticamente significativo na redução de várias condições clínicas, como sintomas psiquiátricos gerais (não psicóticos), ansiedade e depressão, bem como problemas interpessoais e ajustamento social”, destacou.

“A psicanálise tem uma importante função na abordagem da dor psíquica, dos transtornos mentais, e dos sofrimentos humanos colaborando para que possamos transformar as dores do viver em condições de suportar as dificuldades da vida. Ela promove o desenvolvimento emocional e psíquico, um autoconhecimento profundo”, defende Ana Stucchi Vannucchi, diretora científica da SBPSP, também citando alguns desses estudos.

Para os críticos da psicanálise, no entanto, embora os estudos devam ser reconhecidos como passos na busca de respostas sobre a eficácia da psicanálise, a metodologia dos trabalhos é falha e eles não servem para comprovar os benefícios da prática. “A revisão sistemática publicada no Lancet Psychiatry é de péssima qualidade, apenas citando narrativamente diversos estudos. Um editorial publicado em resposta descreve essa pobreza metodológica”, diz Alencar, referindo-se a um texto publicado no próprio periódico criticando o estudo.

Sobre o estudo da Cochrane, Alencar afirma que ele tem limitações importantes que impedem associá-lo de forma indubitável à eficácia da psicanálise. “Há uma enorme quantidade de artigos comparando diferentes tipos de tratamento com outros diferentes tipos, ficando difícil definir exatamente sobre o que essas revisões estão falando”, diz Alencar.

O próprio texto da Cochrane admite que, considerando “a limitação dos dados, a perda de significância em algumas medidas no acompanhamento de longo prazo e a heterogeneidade entre os estudos, esses achados devem ser interpretados com cautela”.

Sem estudos robustos suficientes para comprovar a eficácia da psicanálise ou mesmo para descartá-la como terapia contra transtornos mentais, os especialistas alegam ser importante a realização de mais testes que tenham a prática como objeto de investigação.

Os defensores da psicanálise, por sua vez, dizem que é irresponsável tentar estigmatizar a terapia como pseudociência em um cenário de aumento de problemas de saúde mental e dificuldade de acesso da população a uma atenção especializada. “Isso pode aumentar o estigma e o preconceito que já cercam os transtornos psíquicos e agravar o problema da hipermedicalização desses pacientes”, diz Lerner.

Já os críticos não chegam a recomendar aos pacientes que abandonem seus psicanalistas, mas sugerem que a falta de evidências robustas seja considerada nas escolhas individuais de busca por tratamentos. “Acredito que a maioria das pessoas envolvidas no debate não está sugerindo que ela seja proibida. Nosso papel é muito mais informar a população sobre quais terapias são bem fundamentadas cientificamente para que essas pessoas tomem decisões mais conscientes sobre sua saúde mental”, diz Gontijo.

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