Psiquiatra alerta sobre as ‘bolhas psicológicas’ nas redes sociais: ‘Você só ouve a própria voz’


Para Petros Levounis, fenômeno pode reforçar comportamentos e colocar em xeque o trabalho de profissionais de saúde

Por Leon Ferrari
Atualização:

ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA* - O conceito de bolhas políticas nas redes sociais, nas quais os algoritmos conseguem definir as afinidades e afiliações dos usuários e, com isso, alimentá-los de conteúdo que reforça suas crenças talvez não seja estranho para a maioria dos internautas. No entanto, o psiquiatra americano Petros Levounis, ex-presidente da American Psychiatric Association e um dos autores do livro Technological Addictions, acredita que o fenômeno pode não se restringir à política, com possíveis implicações no trabalho dos profissionais de saúde mental.

“O que está se tornando cada vez mais interessante, de certa forma, são as bolhas psicológicas (psychological echo chambers, em inglês)”, destacou durante uma palestra no XL Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Brasília. “Muitos já ouviram falar das bolhas políticas. Em vez de aproximar as pessoas ao centro, essas bolhas acabam polarizando ainda mais os extremos. Comecei a perceber um problema semelhante no campo psicológico.”

“Você só ouve a própria voz.” Ele exemplifica: “Se alguém se vê principalmente como sádico, que sempre tira vantagem dos outros, e chega o momento de ser mais generoso, o algoritmo continuará sugerindo comportamentos que reforçam isso (a autopercepção sádica). Por outro lado, se alguém se considera um masoquista, que sempre foi explorado, e está na hora de se aceitar e se impor, o sistema também oferece conteúdo de reforço.”

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Com isso, ele avalia que “todo o trabalho” dos profissionais de saúde mental pode ir por água abaixo. “Nosso trabalho, que visa questionar as autopercepções das pessoas e abrir novas vias para a felicidade, se perde. Isso porque o algoritmo, em vez de trazer equilíbrio, faz exatamente o oposto, empurrando as pessoas para os extremos.”

O psiquiatra americano Petros Levounis, ex-presidente da American Psychiatric, durante o XL Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Brasília Foto: ABP/Divulgação

Levounis destaca que, como um conceito emergente — embora “nobre”, nas palavras dele —, as bolhas psicológicas ainda precisam ser melhor estudadas e compreendidas. No entanto, a ideia se torna particularmente importante ao passo que a adicção em redes sociais configura a “terceira grande forma de dependência tecnológica”, perdendo apenas para a dependência em jogos online (internet gaming) e a adicção em pornografia e sexo online (ele usa o termo guarda-chuva “cybersex”).

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Desses três, apenas o internet gaming é reconhecido formalmente como um transtorno nos manuais de psiquiatria, como o DSM-5. Levounis avalia que, apesar de cientificamente não ser possível afirmar que essas dependências comportamentais são verdadeiros transtornos mentais, no consultório, no contato com o paciente, isso pode ajudar.

“Muito do nosso trabalho como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, e do papel das famílias e da própria vida é dar uma espécie de ‘tapa’ na sua cara e te trazer de volta para a realidade

Petros Levounis, psiquiatra

Viés de confirmação

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Quando o Estadão questionou sobre impactos práticos e amplos desse fenômeno, Levounis citou os programas de bem-estar em empresas e universidades nos Estados Unidos. “Eles são extremamente divulgados e incentivados, mas, de forma geral, têm fracassado. Esse fracasso não ocorre porque os programas de bem-estar não são bons o suficiente. Na verdade, eles são excelentes. O problema é que eles atraem apenas um tipo específico de pessoa, e aqueles que mais precisam dificilmente participam.”

Segundo ele, isso ocorre porque as pessoas que mais precisam tendem a ter a autopercepção de serem “preguiçosas”. “Elas pensam: ‘se preciso de algo para ser mais feliz ou me tornar uma pessoa melhor, é trabalhar ainda mais’. E são justamente essas pessoas que já trabalham 60, 70 horas por semana, mas acreditam que o caminho para sua ‘salvação’ é continuar trabalhando arduamente.”

“Muito do nosso trabalho como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, e do papel das famílias e da própria vida é dar uma espécie de ‘tapa’ na sua cara e te trazer de volta para a realidade; enquanto as mídias sociais têm um papel poderoso de empurrá-lo para uma viés de confirmação (das suas próprias crenças).

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IA e o Efeito Mandela

Os possíveis efeitos tecnológicos no comportamento humano foram destaque no Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Em outra mesa-redonda, o psiquiatra Vinicius Almeida Santos, preceptor da residência médica em psiquiatria pelo SUS Bahia, falou sobre como a inteligência artificial pode potencializar a criação de “memórias falsas”.

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É o que acontece no chamado “efeito Mandela”. Vencedor do Nobel da Paz, Nelson Mandela passou décadas em cárcere. Talvez por isso muitas pessoas acreditassem que ele estava morto e se surpreenderam com as notícias da morte do ativista em 2013. Assim, surgiu o termo “efeito Mandela”, para denominar o fenômeno no qual, coletivamente, pessoas dão como certo algo que nunca ocorreu.

Outro exemplo clássico de memória falsa: o que a Rainha Má diz ao Espelho Mágico em “Branca de Neve”? “Se você responder ‘espelho, espelho meu’, você está diante de um efeito Mandela ou falsas memórias.” Na verdade, ela diz “escravo do espelho mágico.”

Nesse sentido, Santos se preocupa com as alucinações das inteligências artificiais – espécie de erro que faz com que a resposta fornecida seja incorreta ou sem sentido, como no episódio em que a IA do Google, Gemini, sugeriu usar cola branca para fazer pizza. “Com base em manuais de sobrevivência, a inteligência artificial do Google recomendou beber urina para tratar pedras nos rins, se ela estiver clara”, comentou.

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Santos se mostrou particularmente preocupado com os mais jovens. “Hoje, temos como um grande desafio gerações mais novas em uma quebra contínua com o legado das gerações passadas”, comentou. “O efeito de falsas memórias pode colocar em xeque anos de estudo e pesquisa.”

*O repórter viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatra

ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA* - O conceito de bolhas políticas nas redes sociais, nas quais os algoritmos conseguem definir as afinidades e afiliações dos usuários e, com isso, alimentá-los de conteúdo que reforça suas crenças talvez não seja estranho para a maioria dos internautas. No entanto, o psiquiatra americano Petros Levounis, ex-presidente da American Psychiatric Association e um dos autores do livro Technological Addictions, acredita que o fenômeno pode não se restringir à política, com possíveis implicações no trabalho dos profissionais de saúde mental.

“O que está se tornando cada vez mais interessante, de certa forma, são as bolhas psicológicas (psychological echo chambers, em inglês)”, destacou durante uma palestra no XL Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Brasília. “Muitos já ouviram falar das bolhas políticas. Em vez de aproximar as pessoas ao centro, essas bolhas acabam polarizando ainda mais os extremos. Comecei a perceber um problema semelhante no campo psicológico.”

“Você só ouve a própria voz.” Ele exemplifica: “Se alguém se vê principalmente como sádico, que sempre tira vantagem dos outros, e chega o momento de ser mais generoso, o algoritmo continuará sugerindo comportamentos que reforçam isso (a autopercepção sádica). Por outro lado, se alguém se considera um masoquista, que sempre foi explorado, e está na hora de se aceitar e se impor, o sistema também oferece conteúdo de reforço.”

Com isso, ele avalia que “todo o trabalho” dos profissionais de saúde mental pode ir por água abaixo. “Nosso trabalho, que visa questionar as autopercepções das pessoas e abrir novas vias para a felicidade, se perde. Isso porque o algoritmo, em vez de trazer equilíbrio, faz exatamente o oposto, empurrando as pessoas para os extremos.”

O psiquiatra americano Petros Levounis, ex-presidente da American Psychiatric, durante o XL Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Brasília Foto: ABP/Divulgação

Levounis destaca que, como um conceito emergente — embora “nobre”, nas palavras dele —, as bolhas psicológicas ainda precisam ser melhor estudadas e compreendidas. No entanto, a ideia se torna particularmente importante ao passo que a adicção em redes sociais configura a “terceira grande forma de dependência tecnológica”, perdendo apenas para a dependência em jogos online (internet gaming) e a adicção em pornografia e sexo online (ele usa o termo guarda-chuva “cybersex”).

Desses três, apenas o internet gaming é reconhecido formalmente como um transtorno nos manuais de psiquiatria, como o DSM-5. Levounis avalia que, apesar de cientificamente não ser possível afirmar que essas dependências comportamentais são verdadeiros transtornos mentais, no consultório, no contato com o paciente, isso pode ajudar.

“Muito do nosso trabalho como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, e do papel das famílias e da própria vida é dar uma espécie de ‘tapa’ na sua cara e te trazer de volta para a realidade

Petros Levounis, psiquiatra

Viés de confirmação

Quando o Estadão questionou sobre impactos práticos e amplos desse fenômeno, Levounis citou os programas de bem-estar em empresas e universidades nos Estados Unidos. “Eles são extremamente divulgados e incentivados, mas, de forma geral, têm fracassado. Esse fracasso não ocorre porque os programas de bem-estar não são bons o suficiente. Na verdade, eles são excelentes. O problema é que eles atraem apenas um tipo específico de pessoa, e aqueles que mais precisam dificilmente participam.”

Segundo ele, isso ocorre porque as pessoas que mais precisam tendem a ter a autopercepção de serem “preguiçosas”. “Elas pensam: ‘se preciso de algo para ser mais feliz ou me tornar uma pessoa melhor, é trabalhar ainda mais’. E são justamente essas pessoas que já trabalham 60, 70 horas por semana, mas acreditam que o caminho para sua ‘salvação’ é continuar trabalhando arduamente.”

“Muito do nosso trabalho como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, e do papel das famílias e da própria vida é dar uma espécie de ‘tapa’ na sua cara e te trazer de volta para a realidade; enquanto as mídias sociais têm um papel poderoso de empurrá-lo para uma viés de confirmação (das suas próprias crenças).

IA e o Efeito Mandela

Os possíveis efeitos tecnológicos no comportamento humano foram destaque no Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Em outra mesa-redonda, o psiquiatra Vinicius Almeida Santos, preceptor da residência médica em psiquiatria pelo SUS Bahia, falou sobre como a inteligência artificial pode potencializar a criação de “memórias falsas”.

É o que acontece no chamado “efeito Mandela”. Vencedor do Nobel da Paz, Nelson Mandela passou décadas em cárcere. Talvez por isso muitas pessoas acreditassem que ele estava morto e se surpreenderam com as notícias da morte do ativista em 2013. Assim, surgiu o termo “efeito Mandela”, para denominar o fenômeno no qual, coletivamente, pessoas dão como certo algo que nunca ocorreu.

Outro exemplo clássico de memória falsa: o que a Rainha Má diz ao Espelho Mágico em “Branca de Neve”? “Se você responder ‘espelho, espelho meu’, você está diante de um efeito Mandela ou falsas memórias.” Na verdade, ela diz “escravo do espelho mágico.”

Nesse sentido, Santos se preocupa com as alucinações das inteligências artificiais – espécie de erro que faz com que a resposta fornecida seja incorreta ou sem sentido, como no episódio em que a IA do Google, Gemini, sugeriu usar cola branca para fazer pizza. “Com base em manuais de sobrevivência, a inteligência artificial do Google recomendou beber urina para tratar pedras nos rins, se ela estiver clara”, comentou.

Santos se mostrou particularmente preocupado com os mais jovens. “Hoje, temos como um grande desafio gerações mais novas em uma quebra contínua com o legado das gerações passadas”, comentou. “O efeito de falsas memórias pode colocar em xeque anos de estudo e pesquisa.”

*O repórter viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatra

ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA* - O conceito de bolhas políticas nas redes sociais, nas quais os algoritmos conseguem definir as afinidades e afiliações dos usuários e, com isso, alimentá-los de conteúdo que reforça suas crenças talvez não seja estranho para a maioria dos internautas. No entanto, o psiquiatra americano Petros Levounis, ex-presidente da American Psychiatric Association e um dos autores do livro Technological Addictions, acredita que o fenômeno pode não se restringir à política, com possíveis implicações no trabalho dos profissionais de saúde mental.

“O que está se tornando cada vez mais interessante, de certa forma, são as bolhas psicológicas (psychological echo chambers, em inglês)”, destacou durante uma palestra no XL Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Brasília. “Muitos já ouviram falar das bolhas políticas. Em vez de aproximar as pessoas ao centro, essas bolhas acabam polarizando ainda mais os extremos. Comecei a perceber um problema semelhante no campo psicológico.”

“Você só ouve a própria voz.” Ele exemplifica: “Se alguém se vê principalmente como sádico, que sempre tira vantagem dos outros, e chega o momento de ser mais generoso, o algoritmo continuará sugerindo comportamentos que reforçam isso (a autopercepção sádica). Por outro lado, se alguém se considera um masoquista, que sempre foi explorado, e está na hora de se aceitar e se impor, o sistema também oferece conteúdo de reforço.”

Com isso, ele avalia que “todo o trabalho” dos profissionais de saúde mental pode ir por água abaixo. “Nosso trabalho, que visa questionar as autopercepções das pessoas e abrir novas vias para a felicidade, se perde. Isso porque o algoritmo, em vez de trazer equilíbrio, faz exatamente o oposto, empurrando as pessoas para os extremos.”

O psiquiatra americano Petros Levounis, ex-presidente da American Psychiatric, durante o XL Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Brasília Foto: ABP/Divulgação

Levounis destaca que, como um conceito emergente — embora “nobre”, nas palavras dele —, as bolhas psicológicas ainda precisam ser melhor estudadas e compreendidas. No entanto, a ideia se torna particularmente importante ao passo que a adicção em redes sociais configura a “terceira grande forma de dependência tecnológica”, perdendo apenas para a dependência em jogos online (internet gaming) e a adicção em pornografia e sexo online (ele usa o termo guarda-chuva “cybersex”).

Desses três, apenas o internet gaming é reconhecido formalmente como um transtorno nos manuais de psiquiatria, como o DSM-5. Levounis avalia que, apesar de cientificamente não ser possível afirmar que essas dependências comportamentais são verdadeiros transtornos mentais, no consultório, no contato com o paciente, isso pode ajudar.

“Muito do nosso trabalho como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, e do papel das famílias e da própria vida é dar uma espécie de ‘tapa’ na sua cara e te trazer de volta para a realidade

Petros Levounis, psiquiatra

Viés de confirmação

Quando o Estadão questionou sobre impactos práticos e amplos desse fenômeno, Levounis citou os programas de bem-estar em empresas e universidades nos Estados Unidos. “Eles são extremamente divulgados e incentivados, mas, de forma geral, têm fracassado. Esse fracasso não ocorre porque os programas de bem-estar não são bons o suficiente. Na verdade, eles são excelentes. O problema é que eles atraem apenas um tipo específico de pessoa, e aqueles que mais precisam dificilmente participam.”

Segundo ele, isso ocorre porque as pessoas que mais precisam tendem a ter a autopercepção de serem “preguiçosas”. “Elas pensam: ‘se preciso de algo para ser mais feliz ou me tornar uma pessoa melhor, é trabalhar ainda mais’. E são justamente essas pessoas que já trabalham 60, 70 horas por semana, mas acreditam que o caminho para sua ‘salvação’ é continuar trabalhando arduamente.”

“Muito do nosso trabalho como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, e do papel das famílias e da própria vida é dar uma espécie de ‘tapa’ na sua cara e te trazer de volta para a realidade; enquanto as mídias sociais têm um papel poderoso de empurrá-lo para uma viés de confirmação (das suas próprias crenças).

IA e o Efeito Mandela

Os possíveis efeitos tecnológicos no comportamento humano foram destaque no Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Em outra mesa-redonda, o psiquiatra Vinicius Almeida Santos, preceptor da residência médica em psiquiatria pelo SUS Bahia, falou sobre como a inteligência artificial pode potencializar a criação de “memórias falsas”.

É o que acontece no chamado “efeito Mandela”. Vencedor do Nobel da Paz, Nelson Mandela passou décadas em cárcere. Talvez por isso muitas pessoas acreditassem que ele estava morto e se surpreenderam com as notícias da morte do ativista em 2013. Assim, surgiu o termo “efeito Mandela”, para denominar o fenômeno no qual, coletivamente, pessoas dão como certo algo que nunca ocorreu.

Outro exemplo clássico de memória falsa: o que a Rainha Má diz ao Espelho Mágico em “Branca de Neve”? “Se você responder ‘espelho, espelho meu’, você está diante de um efeito Mandela ou falsas memórias.” Na verdade, ela diz “escravo do espelho mágico.”

Nesse sentido, Santos se preocupa com as alucinações das inteligências artificiais – espécie de erro que faz com que a resposta fornecida seja incorreta ou sem sentido, como no episódio em que a IA do Google, Gemini, sugeriu usar cola branca para fazer pizza. “Com base em manuais de sobrevivência, a inteligência artificial do Google recomendou beber urina para tratar pedras nos rins, se ela estiver clara”, comentou.

Santos se mostrou particularmente preocupado com os mais jovens. “Hoje, temos como um grande desafio gerações mais novas em uma quebra contínua com o legado das gerações passadas”, comentou. “O efeito de falsas memórias pode colocar em xeque anos de estudo e pesquisa.”

*O repórter viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatra

ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA* - O conceito de bolhas políticas nas redes sociais, nas quais os algoritmos conseguem definir as afinidades e afiliações dos usuários e, com isso, alimentá-los de conteúdo que reforça suas crenças talvez não seja estranho para a maioria dos internautas. No entanto, o psiquiatra americano Petros Levounis, ex-presidente da American Psychiatric Association e um dos autores do livro Technological Addictions, acredita que o fenômeno pode não se restringir à política, com possíveis implicações no trabalho dos profissionais de saúde mental.

“O que está se tornando cada vez mais interessante, de certa forma, são as bolhas psicológicas (psychological echo chambers, em inglês)”, destacou durante uma palestra no XL Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Brasília. “Muitos já ouviram falar das bolhas políticas. Em vez de aproximar as pessoas ao centro, essas bolhas acabam polarizando ainda mais os extremos. Comecei a perceber um problema semelhante no campo psicológico.”

“Você só ouve a própria voz.” Ele exemplifica: “Se alguém se vê principalmente como sádico, que sempre tira vantagem dos outros, e chega o momento de ser mais generoso, o algoritmo continuará sugerindo comportamentos que reforçam isso (a autopercepção sádica). Por outro lado, se alguém se considera um masoquista, que sempre foi explorado, e está na hora de se aceitar e se impor, o sistema também oferece conteúdo de reforço.”

Com isso, ele avalia que “todo o trabalho” dos profissionais de saúde mental pode ir por água abaixo. “Nosso trabalho, que visa questionar as autopercepções das pessoas e abrir novas vias para a felicidade, se perde. Isso porque o algoritmo, em vez de trazer equilíbrio, faz exatamente o oposto, empurrando as pessoas para os extremos.”

O psiquiatra americano Petros Levounis, ex-presidente da American Psychiatric, durante o XL Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Brasília Foto: ABP/Divulgação

Levounis destaca que, como um conceito emergente — embora “nobre”, nas palavras dele —, as bolhas psicológicas ainda precisam ser melhor estudadas e compreendidas. No entanto, a ideia se torna particularmente importante ao passo que a adicção em redes sociais configura a “terceira grande forma de dependência tecnológica”, perdendo apenas para a dependência em jogos online (internet gaming) e a adicção em pornografia e sexo online (ele usa o termo guarda-chuva “cybersex”).

Desses três, apenas o internet gaming é reconhecido formalmente como um transtorno nos manuais de psiquiatria, como o DSM-5. Levounis avalia que, apesar de cientificamente não ser possível afirmar que essas dependências comportamentais são verdadeiros transtornos mentais, no consultório, no contato com o paciente, isso pode ajudar.

“Muito do nosso trabalho como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, e do papel das famílias e da própria vida é dar uma espécie de ‘tapa’ na sua cara e te trazer de volta para a realidade

Petros Levounis, psiquiatra

Viés de confirmação

Quando o Estadão questionou sobre impactos práticos e amplos desse fenômeno, Levounis citou os programas de bem-estar em empresas e universidades nos Estados Unidos. “Eles são extremamente divulgados e incentivados, mas, de forma geral, têm fracassado. Esse fracasso não ocorre porque os programas de bem-estar não são bons o suficiente. Na verdade, eles são excelentes. O problema é que eles atraem apenas um tipo específico de pessoa, e aqueles que mais precisam dificilmente participam.”

Segundo ele, isso ocorre porque as pessoas que mais precisam tendem a ter a autopercepção de serem “preguiçosas”. “Elas pensam: ‘se preciso de algo para ser mais feliz ou me tornar uma pessoa melhor, é trabalhar ainda mais’. E são justamente essas pessoas que já trabalham 60, 70 horas por semana, mas acreditam que o caminho para sua ‘salvação’ é continuar trabalhando arduamente.”

“Muito do nosso trabalho como psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, e do papel das famílias e da própria vida é dar uma espécie de ‘tapa’ na sua cara e te trazer de volta para a realidade; enquanto as mídias sociais têm um papel poderoso de empurrá-lo para uma viés de confirmação (das suas próprias crenças).

IA e o Efeito Mandela

Os possíveis efeitos tecnológicos no comportamento humano foram destaque no Congresso Brasileiro de Psiquiatria. Em outra mesa-redonda, o psiquiatra Vinicius Almeida Santos, preceptor da residência médica em psiquiatria pelo SUS Bahia, falou sobre como a inteligência artificial pode potencializar a criação de “memórias falsas”.

É o que acontece no chamado “efeito Mandela”. Vencedor do Nobel da Paz, Nelson Mandela passou décadas em cárcere. Talvez por isso muitas pessoas acreditassem que ele estava morto e se surpreenderam com as notícias da morte do ativista em 2013. Assim, surgiu o termo “efeito Mandela”, para denominar o fenômeno no qual, coletivamente, pessoas dão como certo algo que nunca ocorreu.

Outro exemplo clássico de memória falsa: o que a Rainha Má diz ao Espelho Mágico em “Branca de Neve”? “Se você responder ‘espelho, espelho meu’, você está diante de um efeito Mandela ou falsas memórias.” Na verdade, ela diz “escravo do espelho mágico.”

Nesse sentido, Santos se preocupa com as alucinações das inteligências artificiais – espécie de erro que faz com que a resposta fornecida seja incorreta ou sem sentido, como no episódio em que a IA do Google, Gemini, sugeriu usar cola branca para fazer pizza. “Com base em manuais de sobrevivência, a inteligência artificial do Google recomendou beber urina para tratar pedras nos rins, se ela estiver clara”, comentou.

Santos se mostrou particularmente preocupado com os mais jovens. “Hoje, temos como um grande desafio gerações mais novas em uma quebra contínua com o legado das gerações passadas”, comentou. “O efeito de falsas memórias pode colocar em xeque anos de estudo e pesquisa.”

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